segunda-feira, 27 de julho de 2020

Resenha - A revolução dos bichos

ORWELL, George. A revolução dos bichos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


Gente do céu. Só não li mais rápido porque o tempo não deixou. Mas pense num outro livro que foi num tapa. Não é à toa que Orwell é aclamado por tantos como um dos principais escritores do século XX. O cara não era apenas talentoso, mas extremamente sagaz no uso de suas habilidades literárias.

Neste livro, um grupo de bichos reúnem-se numa granja para expulsar os humanos e instaurarem, eles próprios, um governo liderado por animais em que todos são iguais e se promova a liberdade plena. Livres dos homens e das opressões do sistema anterior, porém, os animais logo descobrem que o novo sistema instalado não é em nada melhor que o anterior, chegando até a ser pior. A essência do livro está resumida numa citação da página 106: 
"Todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que outros."
De cara, portanto, vocês já sabem qual é o teor do livro. Ele fala de tiranias e absolutismos, mas numa perfeita sátira ao governo da União Soviética no anos 1940! Sim, porque o autor nem tenta esconder que é exatamente este o seu propósito. Este é com certeza o principal pano pra manga deste livro, mas vou deixar pra abordar isso no final. 

Quero começar dizendo que não sou de julgar muito aspectos físicos do livro. Vez ou outra aponto uma capa e talz, mas dessa vez eu preciso tirar o chapéu pra Companhia das Letras. Rapaz, o papel desse livro é de extrema qualidade, fiquei até impressionado em ver um papel dessa gramatura em uma edição que não fosse comemorativa ou algo assim. Aliás, a edição do livro é de 2007, mas a reimpressão é de 2020. Cheirando a novo.

Quanto ao estilo literário, tem algo que choca logo no começo. É uma fábula! Eu não consigo acreditar, mas é isso mesmo. O livro é uma fábula escrita de uma maneira simplesmente genial. Não é à toa que tanto falam deste livro. Aliás, o título em inglês é Animal Farm: a fairy story. 

Eu pensei que os parágrafos longos do texto acabassem tornando-se um empecilho pra mim, mas como são bem construídos, eles não se tornam cansativos. Além disso, como o livro tem um tom de fábula que vai do começo ao fim, a leitura é impressionante de tão leve. Só pra complementar essa questão de ritmo de leitura, em alguns momentos acho que a tradução deixou a desejar. Não é que estivesse ruim, é que a expressões que poderiam ser traduzidas de outra maneira para deixar o texto mais fluido.

Passando ao enredo em si, logo nas primeiras páginas o livro quase me perdeu, por conta da propaganda ideológica forte. Na verdade o meu medo era que aquilo fosse se manter; mas como foi algo bem pontual, deu pra seguir em frente. E, olha... ainda bem que eu segui em frente!

A guinada no meio do livro, quando os animais percebem que o seu mundo ideal não era aquilo que imaginavam, foi muito bem escrita. É chocante como num único parágrafo (tá certo que ele era bem grande) o autor consegue exprimir ao mesmo tempo o sentimento de desilusão e medo pelo futuro. Ali fica bem claro um divisor de águas. 

Mas, claro, são as interpretações do texto que mais enobrecem essa obra. Como é uma crítica aberta ao regime socialista da União Soviética, o livro teve várias utilizações e interpretações ao longo dos anos, até mesmo com dificuldades de publicação num primeiro momento. E aqui o limiar é muito tênue, porque as pessoas verão na obra aquilo que quiserem ver. 

Se por um lado rechaçam o o regime socialista, dirão que a obra mostra de modo muito claro como este modelo de governo é pernicioso e não traz benefícios à população no fim das contas. Por outro, quem defende o socialismo de modo ideológico, dirá que a obra não critica o socialismo em si, mas sim o socialismo stanlinista. E aí, meus caros, podem vir mil interpretações. Mas quero destacar as palavras do próprio autor:
"Tornei-me pró-socialista mais por desgosto com a maneira como setores mais pobres os trabalhadores industriais eram oprimidos e negligenciados do que devido a qualquer admiração teórico por uma sociedade planificada." (p. 142)
Lemos estas palavras num prefácio que o mesmo escreveu à edição ucraniana de 1947. Edição esta que foi traduzida e distribuída ilegalmente na União Soviética que, claro, não aprovava em nada a obra. O que o autor destaca também é que, não apenas a URSS, mas até outros países democráticos não viam com bons olhos a distribuição de uma obra que poderia prejudicar um aliado (ainda que aliado por pouco tempo).

Aliás, falando dos apêndices (que, nesta edição, incluem os dois prefácios do autor), é totalmente descartável aquele posfácio de Christopher Hitchens que, embora seja um importante crítico literário do século passado, em pouco ou quase nada acrescenta às palavras do próprio autor sobre a obra.

E, retornando mais uma vez a essas palavras, choca mais uma vez notar como erros do passado continuam presentes no futuro. Parece que a humanidade está fadada à cegueira mesmo, não tem jeito. Tolos são aqueles que ainda insistem em negar os efeitos perenes do pecado na humanidade como um todo:
"Além disso, os trabalhadores e os intelectuais de um país como a Inglaterra não compreendem que a URSS de hoje é totalmente diferente do que foi em 1917. Em parte porque não querem compreender (ou seja, porque querem acreditar que, em algum lugar, existe de fato um país realmente socialista), e em parte porque, acostumados a relativas liberdade e moderação na vida pública, o totalitarismo lhes é completamente incompreensível." (p. 144)
Quando nos defrontamos com a natureza humana desta forma e vemos que fatos como estes não são de um passado distante, porém de menos de um século atrás!, percebemos que, cada vez mais, nossa esperança não pode estar posta nos homens ou suas ideologias. Enquanto Deus não for o guia de todas as nossas atitudes, viveremos desesperançados neste mundo caído, onde a natureza hobbesiana nunca falha: o homem é o lobo do homem. 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Resenha - O conto da aia

ATWOOD, Margaret. O conto da aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.


Gente do céu. Que furacão foi esse? Li o livro todo em 02 dias? Foi isso mesmo, produção? Eita, acho que foi mesmo. Simplesmente devorei este livro que me cativou de uma maneira que eu não esperava. Pena que a autora escorregou nos 45 do segundo tempo. Mas isso eu vou explicar com calma. Vamos à resenha.

Pra quem não conhece, O conto da aia é uma distopia teocrática. Só essa premissa já achei bem interessante. Em vez de focar numa distopia cuja ideologia política é o motor da centralização do poder, a autora utiliza um fundo religioso para criar a mesma atmosfera de medo e opressão que é tão característica da distopia.

Além disso, o livro obedece aos pré-requisitos do gênero, incluindo aí uma sociedade funcionalista (em que as mulheres eram categorizadas de acordo com sua "utilidade") e a objetificação dos personagens em diferentes momentos, especialmente para justificar fins escusos. 

Por conta disso, acompanhar a trama de Offred ("nome" da personagem principal) e a sua realidade na República de Gileade, uma ditadura que se instaurou nos Estados Unidos após o assassinato do Presidente e a derrubada do Congresso, reorganizando a sociedade com base em princípios extremistas inspirados nas ideias do Antigo Testamento da Bíblia.

Quero começar falando um pouco de aspectos do texto em si, sem entrar ainda no estilo da autora ou no conteúdo da história. Eu peguei uma edição de excelente qualidade, muito bem trabalhada. Livro novinho, papel e espaçamento agradáveis com uma letra de tamanho adequado. Não há o que reclamar aqui.

Mas logo no começo já percebo algumas coisas que apontam para o teor do livro. Além de um ou outro advérbio de modo em excesso, vejo a ânsia da autora em mostrar uma nova abordagem: "Nossa olha para mim, olha como sou moderna, olha como não respeito o recuo dos parágrafos, olha como não respeito o uso do travessão, olha como uso meia risca e em outros momentos sequer uso. Olha como sou moderna." 😂😂

Brincadeiras à parte, eu entendo o porquê dessas escolhas. Ela estava numa época em que a literatura pedia algumas coisas como essa (década de 1980). Ela não foi pioneira neste sentido, mas vê-se que era um marco mexer não só com o enredo ou partes da história, mas com a própria estrutura do texto visual também.

Agora eu percebi mais de uma vez, porém deixei de lado porque achei que era só impressão. Mas não era: o livro tem erros de digitação. Por exemplo na página 102: "quacres" para, na linha seguinte, corrigir e usar "Quakers". Sei que é algo pequeno, mas estamos falando da Rocco, que não é uma editora pequena e não deveria ter deixado isso passar. E não foi só essa, claro.

Passando ao estilo da autora, é aqui que as coisas ficam cada vez mais fascinantes. As descrições da autora podem parecer supérfluas no primeiro momento. Mas na verdade, servem a um propósito muito bem desenhado, que é mostrar como, na privação de liberdade, até as coisas mais simples fazem falta.

Tem algo que ela faz de modo consciente (me parece) e que ajuda demais a manter o clima de suspense/dúvida durante todo o livro: ela nunca aborda o assunto diretamente. Se a mulher está numa casa e tem alguma coisa estranha acontecendo, ela não fala dessa coisa. Ela fala do que a mulher está sentindo, de memórias que ela teve antes, descreve algum objeto que traz reminiscências, seja lá o que for. Mas ela não aborda de modo direto a coisa em si e, quando o faz, é por meio de algum personagem ou mesmo nessas reminiscências do passado. Essa sutileza ajuda a deixar o leitor constantemente ligado, pra tentar compreender aquilo que ainda ficou sobrando.

Bom, mas tenho certeza que é o conteúdo do livro, por meio da história e dos vários temas inseridos nela, que é o grande foco de todas as discussões e repercussões que aconteceram depois. Como a história é contada do ponto de vista de uma mulher e a grande temática do livro se dá na objetificação desta, muitos chamam o livro de uma "distopia feminista". Mas é a própria autora que diz que este termo não está correto:
Texto original: "In a feminist dystopia pure and simple, all of the men would have greater rights than all of the women. It would be two-layered in structure: top layer men, bottom layer women. But Gilead is the usual kind of dictatorship: shaped like a pyramid, with the powerful of both sexes at the apex,
Tradução livre: "Numa distopia feminista pura e simples, todos os homens teriam mais direitos que todas as mulheres. Seria uma estrutura de duas camadas: homens no topo, mulheres embaixo. Mas Gileade é o tipo comum de ditadura: em forma de pirâmide, com os poderosos de ambos os sexos no topo," (entrevista concedida do The Guardian)
Tendo posto essa questão de lado, aí sim podemos mergulhar em temas mais profundos como a própria organização da sociedade e a dominação do ser humano pelo próprio ser humano (eita natureza hobbesiana, hein?). 

Tem algo muito tenso que acontece durante a história, que poderia até ser considerado inverossímil: o lento e constante cerceamento das liberdades individuais. Porém é ainda mais terrível do que parece, por que se você ler "O pianista" perceberá que não é só verossímil, como já até aconteceu.

Definitivamente não é um livro para menores. Embora os trechos explícitos sejam bem curtos, é a atmosfera do livro que serve a um propósito mais pesado. Tudo é tenso. E isto é excelente para construção do tônus de livro de modo geral. Não se enganem, o livro não é nada ruim. Só não é para crianças ou adolescentes.

Nesse quesito de organização da sociedade, algo que é muito claro na abordagem de Atwood é seu argumento quanto à inevitabilidade da natureza (neste caso, dos impulsos sexuais) e a constante necessidade do ser humano de dominar o lado mais selvagem da sua própria natureza:
"Você não pode controlar o que sente, disse Moira certa ocasião, mas pode controlar como se comporta." (p. 230)
Por conta da temática sexual tão forte e a dominação na história ter cunho religioso, muitos podem querer interpretar isso de forma incorreta, tal como fazem na leitura de uma "distopia feminista". É importante olharmos para a obra e vermos o que ela revela por si, não o queremos enxergar nela. 

Digo isto porque não creio que a autora abomine a religião, como possa parecer. Porque ela deixa bem claro que o que aconteceu na história foi um mau uso da religião, havendo inclusive outros grupos religiosos na trama que foram importantes (quakers) e outros citados como "inimigos" do novo governo fanático. Taí, é isso. O problema não é a religião, mas o fanatismo. E é a própria autora que confirma isso:
Texto original: "I don't consider these people to be Christians because they do not have at the core of their behavior and ideologies what I, in my feeble Canadian way, would consider to be the core of Christianity,” 
Tradução livre: "Eu não considero estas pessoas como Cristãs porque elas não tem no âmago de seu comportamento e ideologias o que eu, na meu humilde entendimento canadense, considero como sendo o âmago do Cristianismo," (conforme entrevista que ela deu nesta ocasião)
Agora, infelizmente, o livro terminou pra mim com um problema. E vejam bem, não tem nada a ver com o enredo. Tem a ver com o que eu caracterizei como "escorregadas literárias" da autora. E olhe que, via de regra, isso não é problema. Aliás, é muito comum nós encontrarmos em diferentes livros algum detalhe que não nos agrade. Mas, quando a história é muito boa, conseguimos deixar isso de lado e seguir em frente. O problema é que Atwood cometeu três erros desse tipo um atrás do outro... e logo no final.

A primeira escorregada aconteceu do capítulo 40 para o 41, quando ela fez algo que quebrou o encanto para mim: o uso excessivo de ilusões, constantemente desconstruindo as cenas anteriores. Esse recurso eu acho péssimo. Porque o leitor já gastou o tempo dele lendo trechos, mergulhando na cena com a personagem, só pra logo em seguida a autora dizer: "Ah, mas não foi bem assim, na verdade aconteceu isso aqui." Aí dois parágrafos depois ela faz exatamente a mesma coisa. Criando outra ilusão!

Some-se a isto o segundo problema, que foi a quebra exagerada da quarta parede. Conquanto já tivesse feito isso no decorrer do livro, fê-lo de modo agradável, sem exagerar, adereçando de um modo que contribuísse com a história, aqui neste final gastou tempo demais utilizando esse recurso de modo mais direto do que o necessário e a troco de muito pouco ou quase nada.

A gota d'água pra mim foi o terceiro deslize: quebrar as regras do jogo que ela mesma estabeleceu. Vejam bem, durante todo o livro ela constrói as coisas com calma, devagar, mostrando as nuances da personagem e seus problemas. Não acontece nada de muito impressionante no livro, não há grandes reviravoltas nem super acontecimentos, mas a gente simplesmente fica vidrado em tudo que tá acontecendo... porque ela faz isso com uma calma agonizante! 

Mas aí ela faz isso durante o livro inteiro pra lá no final me aparecer com um apaixonamento súbito?? Oras, foi contrastante demais com o resto do livro e pareceu jogado à força pra complementar o roteiro. E pra que fim até agora eu não entendi. Em basicamente uma linha ela entregou a personagem a uma paixão que não foi abordada em nenhum outro momento!

Olha, esses três problemas não seriam nada demais se estivessem espaçados no livro. O problema é que eles vieram um atrás do outro (sério, foi logo em seguida, todos eles) e ainda muito perto do final, onde a autora não tinha mais espaço pra se recuperar. A brincadeira da autora com ilusões estragou o clímax. Porque a gente simplesmente não sabe se foi verdade ou uma mera ilusão e a nossa experiência torna-se ilusória também.

"Ah, mas isso aí foi o recurso que ela usou pra deixar o final dúbio". Então me explica porque ela acrescentou no final do livro aquela explicação metaficcional sobre os acontecimentos do próprio livro? Quando ela fez aquilo, cristalizou toda a aura de mistério que sobrou no final da trama propriamente dita. Enquanto deixou o final mais redondinho, tirou os "ecos" que poderiam reverberar daquele final.

É, meus caros. Não fosse esse problema aí no final, eu não teria praticamente nada de ruim a falar do livro. Porque pense numa leitura fantástica! Não foi à toa que devorei o livro em dois dias. E olha que faz um tempo que não conseguia uma proeza dessa. A leitura é fenomenal e, se você tiver mais de dezoito anos e uma mente pelo menos um pouquinho aberta, vale a pena a leitura.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Resenha - A volta do gato preto

VERÍSSIMO, Érico. A volta do gato preto. São Paulo: Globo, 1996.


É, meus caros. Estamos de volta para mais uma resenha do maior escritor brasileiro de todos os tempos. Confesso que estou num misto de nervosismo e tristeza. Depois deste livro, faltarão apenas mais dois para que eu termine a leitura completa de toda a obra de Érico Veríssimo. E, pra piorar, vou terminar com as autobiografias dele. Tanto a primeira parte, como a segunda, que ele não conseguiu terminar antes de morrer. Mas por enquanto vamos nos focar nesse aqui. 

A volta do gato preto é uma referência direta a Gato preto em campo de neve, ou seja, uma continuação das peripécias do autor em terras yankees nos anos 1940, dessa vez acompanhado pela esposa e os dois filhos. Engraçado como na resenha que fiz do primeiro livro, falei como o autor usou o simbolismo do gato preto contra o campo de neve para representá-lo na sua viagem. Pois bem. 

O autor inicia este segundo livro falando que todo mundo achou que era justamente isso que ele queria fazer. Mas não tinha nada a ver. Ele simplesmente viu um gato preto correndo num campo de neve e aquele contraste foi tão bonito que ele resolveu usar como título. Só isso. Pelo menos é o que ele diz, haha.

Bom, assim como o primeiro, o estilo desse livro é marcado por ser um conjunto de relatos. Isso precisa ficar claro desde o começo e o leitor precisa ser paciente. Porque ainda que os relatos caminhem com um propósito, não há um senso objetivo de história, tampouco um ticking clock que imprima um senso de urgência.

Por conta disso, tem vários momentos que o excesso de descrições serve apenas pra gerar uma impressão histórica de alguns fatos e às vezes nem isso, limitando-se às impressões de Veríssimo sobre algum fato. Claro, isso é condizente não apenas com a proposta do livro, mas também com uma época em que livros eram uma importante fonte de informações. Porém pode ser entediante.

Além disso, percebe-se que Veríssimo quis dar um tom mais despojado ao livro. Isto se nota não só no estilo, mas até na revisão. Tem um bocado de advérbios de modo que achei desnecessários e umas boas aliterações que poderiam ter saído. Mas eu presumo que o autor viu isso e, por conta do estilo do livro, resolveu deixar. 

Mais perto do final do livro, Érico introduz vários pequenos ensaios sobre a vida nos EUA ou impressões do povo americano. Para isso cria um alter-ego (Tobias) e dialoga com ele. Mas, sinceramente, acho isso extremamente aborrecido. Não sei até que ponto isto fica bem num livro de memórias. Talvez seja novamente reflexo de uma época em que os livros informavam bastante ou, talvez, seja só porque o autor já estava num ponto em que podia se dar ao luxo de simplesmente colocar no livro o que quer.

Passando às impressões do autor sobre algumas coisas, se mudar com a família para um país tão diferente não deve ter sido uma tarefa fácil. Mas Érico Veríssimo já havia comentado o quão importante fora o apoio de sua esposa para sua carreira. Isto fica evidente em vários trechos do livro em que ela o apoia das maneiras mais simples. Nisto encontro um paralelo com Steohen King, para quem o apoio da esposa também foi essencial, como ele mesmo falou.

Eu sei que eu já falei isso várias vezes e até chato de tanto que eu falo. Mas é impressionante demais para não se notar. Como será que às vezes eu consigo ter as mesmas impressões de um homem vivendo em uma época tão diferente da minha? Como pode ser que a realidade do Brasil tenha se permanecido a mesma depois de mais de 80 anos, apesar de tudo? Veja esse trecho e me diga se você também não concorda:
"[...] fico a pensar no que poderia ser a nossa gente brasileira no dia em que passasse a comer direito, a ter assistência médica e mais escolas; no dia, enfim, em que a mortalidade infantil fosse reduzida ao mínimo possível, e em que houvesse melhor distribuição de oportunidades para todos..." (p. 47)
Esse tipo de reflexão social é tão certeira e terrivelmente atual que não podemos evitar a surpresa. Caramba, quem é que não concorda com ele? Quem é que não tem o mesmo sonho dele? E, o pior, quem é que não fica assombrado em ver que tantas décadas depois a situação não melhorou tanto assim?

Tendo lido Érico Veríssimo desde a infância, me pergunto até que. Eu e ele realmente pensamos de maneira igual ou a sua influência foi tão grande sobre mim que hoje reconheço nele fragmentos de coisas que penso ou acredito. Eis o grande dilema da formação do eu.

A gente precisa lembrar que o autor está nos EUA, mas num contexto de Segunda Guerra Mundial. Por isso ele sofre com as mesmas dúvidas que todos os artistas têm durante todas as suas vidas: o que um escritor, um músico, um pintor pode fazer para contribuir com a sociedade? Conclusão dele é muito simples: ele deve fazer o que pode.

Ainda sobre as impressões de Veríssimo, duas vezes Érico Veríssimo descreveu Nova Orleans. Duas vezes me deu vontade de conhecer aquele lugar pessoalmente.

Quanto às poucas aventuras que quero destacar dentre os tantos que ele passou, lembro de novo aqui a época em que ele estava nos EUA. Gente, a Segunda Guerra Mundial não foi um capítulo secundário na história dos nossos vizinhos do norte. Pra vocês terem uma noção, Veríssimo estava nos EUA quando o presidente Roosevelt foi assassinado. Até seus filhos sentiram o baque que aquilo foi para a nação. Todo esse contexto de Guerra levou a momentos únicos:
"Creio não estar simplesmente fazendo uma frase se afirmar que a explosão dessa bomba sobre Hiroshima foi como o estrondo dum gongo colossal, marcando a abertura duma nova era para o mundo." (p. 516)
Mas o principal fato que gostaria de deixar registrado aqui é que Veríssimo simplesmente não apenas encontra, como é o intérprete de Villa-Lobos quando este vai aos Estados Unidos por conta de um concerto!! Eu não sei como reagir a isso. Parece um daqueles crossovers de séries ou filmes que a gente sempre espera ver. Ah! O que eu não daria pra ver estes dois lado a lado. Até Stravinsky aparece no bolo!

Mas, pelo que me parece, eles não poderiam ser mais diferentes. Enquanto estou acostumado com um Veríssimo meio cabreiro e quase recatado, encontro em Villa-Lobos um excêntrico e egocêntrico personagem. Enquanto Veríssimo admite que no começo não gostava muito de estar perto do maestro, ao final passa admirar aquela pessoa que não tem medo de falar o que pensa ou sente, sem se importar com o que os outros vão achar dele.

Sobre literatura, de modo geral (ou "dicas literárias"), Veríssimo comenta algumas coisas que eu achei digno de deixar anotado, até porque este pretende ser um blog de um escritor, rsrsrs. 
"Queres um conselho de amigo? Quando te sentires cansado, aborrecibo de toda a rotina da vida, compra umas calças amarelas." (p. 158)
"Literatura! Pura literatura. A vida não cabe assim em conceitos e imagens." (p. 189)
"O marido de Joan Bennett me oferece um cigarro. Infelizmente não fumo. Mais uma vez me convenço de que fazer a personagem fumar é um excelente recurso para o ficcionista, um jeito natural de criar pausas na narrativa." (p. 320)
Ainda sobre isso, Veríssimo deixa escapar um pouco do que sofre no Brasil em relação ao que escreve. Vejam bem, o estilo de Érico Veríssimo pode ser facilmente chamado de "realismo", porque ele não tem pena em mostrar as misérias sociais e problemas que os personagens enfrentam. Porém, isto é inserido numa época em que o governo brasileiro queria a todo custo evitar que tal imagem fosse exposta tanto para o Brasil como para o mundo. Daí muitos críticos dizerem que a literatura de Érico Veríssimo era "indecente", e que não visava os bons costumes.

Por fim, meus amigos, o que tenho a comentar não é muito profundo, mas preciso comentar. 

A verdade é que Érico Veríssimo teve uma sorte desgraçada que acho que nenhum outro brasileiro teve. Meus amigos, ele morou dois anos nos EUA com tudo pago pelo governo americano. Isto é absolutamente impensável! Com a Política da Boa Vizinhança, os EUA se aproximavam dos vizinhos sul-americanos enquanto davam a Veríssimo uma oportunidade ímpar. 

Não vou mentir, invejo-o um pouco. Quem não gostaria de 1) viver da sua arte; 2) ser pago para viajar e falar a outras pessoas sobre a sua arte? Sonhos, sonhos impossíveis.

No final do primeiro livro, minha impressão foi de que Érico Veríssimo não falava apenas de suas aventuras, mas falava de esperança (só ver lá a resenha que fiz). Mas neste aqui, eu já acho que não é bem isso. Talvez abatido pelos horrores da Guerra, o que Veríssimo faz aqui com maestria é apontar para a saudade. E disso eu entendo muito bem, Érico.

Eu morei nos EUA, terminei meu Ensino Médio lá. Ano passado (2019) fiz outra visita por conta da reunião de 10 anos do fim do Ensino Médio. Saudade é a palavra que impera quando lidamos com aquelas paisagens incríveis e com aquelas pessoas que conhecemos. Calma, não estou subestimando o Brasil. Não é isso. É o que quando a gente mora em um lugar assim, o lugar não é o lugar. O lugar são as pessoas. E é delas que sentimos mais falta. 

No final das contas, a gente tem saudade de sorrisos, abraços, conversas e oportunidades. Mas a vida precisa seguir em frente. O jeito então é sacudir os ombros e olhar pra cima, na esperança de que a saudade nos traga pra sempre bons momentos.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Resenha - Gente e bichos

VERÍSSIMO, Érico. Gente e bichos. São Paulo: Globo, 1996.


E aí, meu povo! Mais uma vez uma resenha do maior escritor brasileiro de todos os tempos (quem não concorda, paciência kkkkkk). Dessa vez temos uma obra de Érico Veríssimo voltada para o público infantil! A versatilidade do autor em abordar de modo adequado este público não deu brecha para que a qualidade caísse, pelo contrário, abriu portas para novas formas de conhecê-lo.
"O galo era um sujeito vaidoso, cantava com o tenor e sabia sempre as horas direitinho - isso só porque tinha engolido um relógio despertador. O burro pensava que era muito importante: contava histórias para os outros bichos, assim como eu estou contando agora para vocês. (A diferença é que eu ainda não sei sacudir as orelhas nem zurrar; estou aprendendo.)" p. 35-36
São apenas 6 histórias, o livro é curtinho. Mas elas são bem encorpadas e há sub-historias dentro delas, o que ajuda a preencher o livro. Por outro lado, as letras grandes nas páginas apontam para uma jogada do editor pro livro ganhar um pouco mais de peso, literalmente falando. E pelo que entendi, algumas dessas histórias na verdade funcionavam como folhetos à parte, tendo sido reunidas neste livro.

As histórias de modo geral caminham num meio termo entre fábula e simples histórias infantis. Chega perto da fábula por conta dos animais antropomorfizados, por outro lado se afasta por não ter um fundo moral evidente na maioria das histórias. O que Veríssimo queria – e sempre quis, na verdade – era simplesmente escrever boas histórias. Isto é dito por ele mesmo em outros lugares e confirmado por seu filho Luis Fernando em comentários à Folha de São Paulo.

É interessante notar o contexto das coisas, sabe? Este o livro é muito fofinho, mas tendo sido escrito nos anos 1930, tem algumas coisas que hoje certamente não seriam aceitas na sociedade contemporânea nem a pau, como a história do bullying que fizeram com o Tucano-Narigão na história do Urso-Com-Música-na-Barriga.

Agora, o uso do idioma por Érico Veríssimo é algo que não cansa de me impressionar. Se por um lado vemos algumas obras dele em que precisamos entender palavras mais pelo contexto do que pelo significado (uma vez que não estamos muito acostumados a elas), por outro ele é capaz de uma informalidade que foi uma das marcas que o fez cair no gosto do grande público (da sua época e agora). Falo tudo isso só por causa da seguinte frase: "Sabem duma?" (p. 93, ao iniciar uma peripécia de um personagem).

Eu falo com tanto gosto desse autor e é até engraçado. Ele morreu em 1975, quando nem se cogitava que eu nascesse. E mesmo assim tem momentos em Érico Veríssimo que me dá uma saudade estranha. É uma saudade de algo que eu nunca tive, sei lá, talvez a oportunidade de encontrá-lo, de conhecê-lo, de conversar com ele. Esse sentimento apareceu quando eu li esse trecho:
"QUE É BIOGRAFIA?
           Biografia é a história da vida duma pessoa, dum animal ou uma coisa. Esta história que vocês estão lendo conta a vida do elefante Basílio; logo, é uma biografia.
             Em geral a gente só conta a vida dos homens importantes, dos santos, dos exploradores, dos generais, dos reis, dos inventores, dos artistas, etc...
        O elefante Basílio não é santo, não é explorador, não é general, não é rei, não é inventor, não é artista e também não é etc...
           Por que é, então, que eu estou aqui contando a história da vida dele?
           A razão é simples: o elefante Basílio é um sujeito muito bom. O elefante Basílio tem uma vida cheia de aventuras. O elefante Basílio é um amigo sincero. O elefante Basílio é, enfim, o tipo do herói esquecido." (p. 117)
Ah, meus amigos. Digam que eu estou errado. Digam que não é singular a capacidade do autor de capturar estas belezas simples do cotidiano de maneira fantástica, ao ponto de criar uma verdadeira fantasia do cotidiano? Digam que não vale a pena ler Érico Veríssimo. Ah... são coisas que não dá pra dizer. Eis o maior autor da literatura brasileira.