quinta-feira, 4 de abril de 2019

Resenha - Gato preto em campo de neve

VERÍSSIMO, Érico. Gato preto em campo de neve. São Paulo: Globo, 1996.


Eu não sei como explicar essa sensação. Não sei. Vocês já sentiram como se fossem velhos amigos de alguém, mesmo sem nunca ter encontrado a pessoa? Você já encontrou pontos comuns que fazem você pensar: "Ah, olha lá, o mesmo que eu!" e depois ficou admirado com isso? Como é possível a gente ter tantas coisas em comum com alguém que já morreu há décadas e, mais, não conseguir evitar o pensamento que, se ela estivesse viva, talvez até trocassem bons dedos de prosa?

"Gato preto em campo de neve" só me revelou essas coisas sobre Érico Veríssimo. Estou chocado. Sério. Palavra que não sei explicar como isso é possível. São experiências de vida tão próximas e ao mesmo tão contrastantes que sorrio e me exaspero com a "distante proximidade" que compartilho com as experiências que Érico teve em sua viagem aos Estados Unidos, em 1941. Ah, sim, o livro trata disso.

Na época da política da "Boa Vizinhança" dos colegas norte-americanos, Érico Veríssimo foi convidado pelo governo dos EUA para uma viagem de três meses pelo país, com tudo pago. Em suas palavras, disse que foi aos EUA para: "Viajar, ver pessoas e coisas. E fazer conferências... se não houver outro remédio." E lá vai o escritor passar por Washington, Baltimore, Filadélfia, Nova York, New Haven, Boston, Chicago, Nova Orleans, e cruzar o país para terminar a viagem em São Francisco e Hollywood. 

Érico, para mim, foi surpreendentemente corajoso e audaz em diversos momentos. Não teve medo de falar algumas frases ásperas e se aventurou em recantos bem obscuros! Na viagem a Nova York, disse que não poderia sair da cidade sem conhecer também a periferia, e mais!, foi visitar o local à noite. Eita homem de fibra... ou só um louco curioso? Sinônimos?

Eu morei nos EUA um tempo e me é chocante ver como algumas impressões de um cara que viajou para o país há 70 anos (!!) são as mesmas que eu tive. Penso que isso ajuda a elucidar um bocado sobre os pilares da cultura americana que, mesmo depois de tanto tempo, não mudaram tanto. Por outro lado, o contraste da economia é gritante! Imagine só: uma família com 3 pessoas poderia viver confortavelmente em Nova York com 350 dólares por mês! Um prato de comida luxuoso custava 2 dólares! É, meus amigos, quanto contraste!

Por outro lado, "Gato preto em campo de neve" peca justamente nesse ponto. O que acontece é simples: Érico estava numa conjuntura em que seus leitores do Brasil só poderiam conhecer os EUA se fosse por suas palavras (leitores comuns, é claro). A principal fonte de informação eram os jornais ou as telas do cinema (tudo preto e branco), que jamais revelariam aspectos do cotidiano do povo ou do lugar. Por isso, o livro tem um forte caráter enciclopédico.

Mesmo que Érico consiga descrever coisas sem ser entediante (uma de suas características mais admiráveis), para nós, em pleno século XXI, saber como são dispostas as ruas de Washington, ou ouvir falar do interior de um estúdio em Hollywood é uma perda de tempo. Meu amigo Veríssimo, se eu quiser saber disso, eu pego meu celular e procuro na internet. Logo, várias partes foram bem chatas, só salvando a leitura porque eram pinceladas pelas impressões do autor.

E essas impressões são fantásticas. Não só o que ele viu, mas também o que aconteceu com ele! Dar palestras sobre a cultura brasileira, ouvir a impressão que os americanos tinham do país. Ah! E conhecer grandes nomes da sua época! E se eu dissesse pra vocês que ele tomou chá na casa de gente como Thomas Mann, Somerset Maugham ou Orson Welles? Vocês já imaginaram o que seria sentar numa mesa e almoçar com Walt Disney, enquanto conversam sobre desenhos animados? E o que dizer de visitar um set em que ninguém menos que Alfred Hitchcock se encontra? Fantástico!

Érico e seu parceiro de viagem Malazarte (um alter ego que ele criou de si mesmo, dando a este uma personalidade mais juvenil) percorrem boa parte do território americano numa aventura e tanto. Em determinado ponto da viagem, atravessando as terras geladas entre o Leste e o Oeste, Érico nota, pela janela do trem, um grande campo de neve, com casas recortadas ao fundo, uma neblina criando o ar incólume que a paisagem traz. Um gato preto corta o tapete branco, correndo. Que cena memorável, tão bonita, tão simples, simples como as coisas da vida.

E assim o gato preto cortou o campo, destacando-se contra a paisagem branca, aprendendo alguns de seus segredos e registrando-os para sempre. Um bom historiador ou pesquisador sobre os EUA teria muito a aprender sobre uns EUA de 1941, antes mesmo de entrar na Segunda Guerra Mundial! Para mim, um mero leitor, ela revela o brasileiro, o viajante, o turista, o escritor, o curioso. É com este último que eu mais me identifico.

Há muito mais a dizer sobre o livro, sobre as aventuras que ele passou por lá, sobre encontros e impressões. Mas que graça teria se eu contasse tudo, não é? 576 páginas depois e praticamente um mês depois do último livro (embora minha leitura aqui tenha sido conturbada), quero deixar o que mais o livro tem a dizer. Na verdade, acho que é o tema sobre o qual Érico Veríssimo sempre escreveu e, por isso, eu seja tão fascinado com o que ele escreve. É simples. Ele escreve sobre esperança.

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