sábado, 6 de abril de 2019

Resenha - O grande abismo

LEWIS, C. S. O grande abismo. São Paulo: Vida, 2006.


Há uma grande cidade. Nesta cidade, basta você pensar e pode construir uma casa fenomenal. A cidade é infinita e habitada por diversas personalidades. Há muitas ruas, todas com casas enormes e fantásticas. Mas as casas não protegem da chuva, do vento e todos na cidade vivem em constante discussões. Vizinhos se odeiam, amigos se desentendem, namorados não conseguem conversar. Esta cidade infinita, lugar onde está o protagonista da história, é nada mais, nada menos, que o Inferno.

Ou Purgatório, como Lewis chama, de maneira pueril (uma vez que o livro é obra de ficção, não de teologia). Ali parou um ônibus e todos são convidados a embarcar, para atravessar o Grande Abismo. Ao atravessar uma gigantesca separação, os passageiros chegam no Vale da Sombra da Vida. Ali, eles poderão seguir viagem, se quiserem, para as montanhas, onde conhecerão a Verdade. Mas não é tão simples.

Eles são Fantasmas, não são corpóreos, mas tudo ali é físico. Árvores, pássaros, cachoeiras, rios e outros animais. Caminhar naquele lugar é um sofrimento, porque a relva sob seus pés parece um tapete de pregos, dói. Uma única folha parece pesar uma tonelada e você teria que usar de toda sua força apenas para levantá-la. 

E é neste lugar que se passa toda a aventura do protagonista. Ali, ele e os outros Fantasmas que desceram do ônibus têm a oportunidade de explorar e até ficar por lá, se quiserem. Ou melhor, se conseguirem se desvencilhar das coisas que os seguram. O que Lewis nos mostra, porém, é que eles não querem se desvencilhar de nenhuma dessas coisas. Os Fantasmas encontram ali Pessoas, gente de carne e osso, que os reconhece do tempo que estavam em vida e os convidam a abandonar o passado para viver um futuro glorioso. O problema é que praticamente nenhum deles consegue.

Neste livro, Lewis faz uso da ficção fantástica para traçar alegorias sensacionais sobre Céu, Inferno, bem e mal. Há muitos assuntos, que diferentes personagens encarnam, tratando de pecados cultivados na terra e carregados até o inferno. Ah, mas não pense que são aqueles pecados tenebrosos. Não. 

Pode ser um pregador que se tornou apóstata, porque (imagine só), ele defendia sua opinião, seu ponto de vista e todos tinham que respeitar o que ele falasse. Pena que nada do que falava era a Verdade, ainda que ele estivesse convicto disso. A isto somam-se críticas à teologia liberal e até mesmo, pasmem, algumas indiretas ao que apenas 20 anos mais tarde seria conhecido como "pós-modernismo". Vejam esse trecho, em que um Fantasma conversa com uma Pessoa: 
               "Ah! Mas é preciso que todos interpretemos essas lindas palavras à nossa moda! Para mim não existe algo como uma resposta final. O vento livre da pesquisa deve sempre continuar soprando através da mente, não é mesmo? 'Prove todas as coisas'... viajar na expectativa é melhor do que chegar."
               "Se isso fosse verdade, e se se soubesse que era verdade, como poderia alguém viajar na esperança de algo? Nada haveria a ser esperado."
Escrito em 1945, o livro faz menção aos horrores das Guerras e à desesperança que elas trouxeram. Há menções aos católicos e aos protestantes. Como dá pra ver aí em cima, penso que a tradução não ficou das melhores (o "se se" aparecendo aí). Sei que não ficou errada, mas há trechos que precisei pensar no que o autor tinha escrito em inglês para ter uma noção mais clara. Talvez valesse a pena parafrasear alguns trechos. Ah, mas isso é tão pequeno perto de algo tão belo.

E a beleza de tudo está no misto de filosofia e teologia que o livro traz, imbuídos da belíssima literatura do autor. Por que há Inferno? Por que as Pessoas no Céu não fazem alguma coisa para resgatar as outras? Por que as pessoas que visitam o Vale da Sombra da Vida não escolhem todas ficar por lá? O que as impede? Estas e várias outras perguntas são respondidas no livro. Vou finalizar só ressaltando uma dessas muitas interações entre Pessoa e Fantasma.

Um Fantasma encontra uma Pessoa e ambos se reconhecem. Em vida, eram pintores. O Fantasma, maravilhado com o Vale, fala que gostaria de ter um pincel e um quadro, para registrar aquilo. A Pessoa então explica que, mesmo que ele tivesse, não valeria de nada, porque ele não conseguia de fato ver, ele precisava se tornar uma Pessoa, um ser de verdade, não um mero espectro. O Fantasma então concorda em seguir a Pessoa (ou Espírito) até as montanhas, onde conhecerá a Verdade. O problema é que sua motivação está errada:
               "Está querendo dizer que não existem homens de renome?"
       "Todos são famosos. Todos são conhecidos, lembrados, reconhecidos pela única Mente que pode fazer um juízo perfeito". 
               "Oh, naturalmente, neste sentido..." disse o Fantasma.
        "Não pare", falou o Espírito, procurando levá-lo ainda adiante.
           "Devemos então contentar-nos com a nossa reputação entre a posteridade.", disse o Fantasma.
               "Meu amigo, você não sabe?"
               "Sei o quê?"
          "Que você e eu já fomos completamente esquecidos na terra?"
                "Eh? O que disse?", exclamou o Fantasma, desvencilhando o braço. "Está insinuando que aqueles malditos neoregionalistas venceram afinal?"
          "É isso mesmo!", afirmou o Espírito, sacudindo-se novamente de riso e espargindo luz. "Ninguém daria nada por qualquer quadro meu ou mesmo seu na Europa ou na América hoje. Estamos completamente fora de moda."
              "Preciso ir-me imediatamente!", replicou o Fantasma. "Solte-me! Diabos, tenho meu dever quanto ao futuro da Arte. Preciso voltar aos meus amigos. Tenho de escrever um artigo. Vamos fazer um manifesto. Vamos começar um jornal. Conseguir toda publicidade que pudermos. Solte-me. Isto não é brincadeira!"
               E, sem esperar pela resposta do Espírito, o espectro desapareceu.
Caríssimos, o que será nossa arte e nosso legado daqui a 200 anos, quando não mais existirmos? Para quem escrevemos? Se for para os homens, estamos fadados a ser como o Fantasma, eternamente desapontados; se for para a única Mente para a qual vale a pena escrever qualquer coisa, então seremos como o Espírito, eternamente satisfeito com sua arte. 

Este trecho tocou-me sobremaneira, porque, talvez, eu estivesse perdendo o foco da coisa. A partir daqui devo olhar as coisas com outros olhos. Não há separação entre o eu artista e o eu pessoa, somos um só. E dessa maneira também deve ser nossa arte. 

C. S. Lewis, que cara fantástico. E viveu na mesma época de Érico Veríssimo. Será que foi preciso grandes guerras ou recessões para criar homens como vocês? Será que pode ainda haver, hoje, resquícios desse dom maravilhoso? Minha oração é que tudo que eu escrevo seja útil. Não para os homens, mas para a Verdade. Eita, que responsabilidade. E que privilégio.

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