segunda-feira, 15 de abril de 2019

Superpoderes



Todo mundo acha que ter superpoderes é o máximo. Hoje em dia não tem um que se levante mais pra pegar o controle da TV. Ou tem levitação, ou usa eletromagnetismo, ou simplesmente assiste por telepatia. Argh!
Outro dia eu tava no quarto e meu irmão passou na velocidade da luz só pra me dar um peteleco e voltar. Não mereço essas coisas! E nem preciso dessa droga de superpoderes. Ah, não mesmo. Melhor fazer minhas coisas com calma, levantar, ler meus livros, olhar pras estrelas a noite, fazer a janta, dormir. O problema maior mesmo é ter que cuidar desse meu irmão idiota.
Meus pais saíram de novo em uma missão “pra salvar o universo”. Cara, quem aguenta isso? Eles não param uma semana direito em casa. Aí fico eu aqui de empregado cuidando desse animal. E eu sinceramente não entendo porque o Altair não se cuida. Caramba, ele é super-rápido! Não dá pelo menos pra passar uma vassoura na casa na velocidade da luz? Ajudaria muito! Ouviu Altair? Ei! Para de levantar essa poeira todo, seu mongo! Melhor voltar pra cama e continuar minha leitura, melhor do que aturar esse peste.
Oi, Estevão!
Ai, meu pai do céu! – e lá foi meu livro voando pelos ares. – Mariela! Já falei que não gosto dessas coisas! Não te ensinaram que não é educado se teleportar pro quarto dos outros?
Ah, mas é que eu usei meu escaneamento mental e vi que você tava sem fazer nada.
Ai, lá vem você de novo – eu revirei os olhos – o que foi dessa vez?
Você não quer brincar de salvar o universo?
Mas o que tem de errado com você? Não dá pra brincar de alguma coisa mais simples?
O Altair já gritou lá de fora:
Vem, Mariela! Vamos abrir um portal pra algum lugar!
Você vem ou não? – Mariela me perguntou.
Eu não tenho superpoderes, não consigo brincar disso e você sabe.
E eu não sei porque você acha que só gente com superpoderes pode brincar. Tô indo.
E desapareceu.
__________________________
Eu estava a caminho da quitanda enquanto a frase de Mariela ainda ecoava na minha cabeça. Eu sei que ela tinha razão, mas… olha! Quem é o animal que deixou cair essa moeda na minha cabeça:
Olhe por onde voa! – eu gritei e peguei a moeda.
Continuando. Onde eu estava? Ah, sim. Pois é. Mas como eu vou brincar se não tem ninguém sem superpoderes pra me fazer companhia? Eu apanho do meu próprio irmãozinho, todo mundo consegue fazer alguma coisa impressionante e o melhor que eu faço é cozinhar ao mesmo tempo que assisto vídeos. Que há de bom nisso? Foi aí que aconteceu.
Mariela surgiu na minha frente, com olhos assustados:
Estevão, por favor vem, é o Altair.
Que aconteceu? – eu perguntei, quase desesperado.
Vem logo! – ela segurou minha mão e me teleportou pra uma caverna cheia de lava. O calor estava terrível e eu teria desmaiado não fosse ela lançar um feitiço para me proteger. A caverna tremia e Altair estava em pé, gritando, do outro lado de um grande abismo.
Ele não consegue voltar, – disse Mariela – precisamos trazer ele de volta.
Nesse instante Estevão não teve outra reação senão:
E porque diabos você não se teleportou pra lá?! O que você espera que eu faça?
Ela apontou para o grande abismo e eu vi. Havia pedras flutuantes que poderiam facilmente ser escaladas e levar ao outro lado. Do outro lado vi que Altair tentava encostar nessas pedras, mas tão logo ele as tocava, elas desapareciam. Estava preso ali.
Nem eu nem ele conseguimos pisar nas pedras e meu teleporte não funciona pra atravessar, tem algo impedindo. Se a gente chamasse algum adulto ficaríamos encrencados, então resolvi chamar você. Nós só estávamos explorando, aí saímos correndo, mas o Altair caiu e quando eu vi já estava aqui do outro lado e o coitado tá lá preso e eu não sei o que fazer!
Eu percebi que ela estava à beira das lágrimas, realmente estava assustada. Então percebi que mesmo com todos os seus poderes, Mariela não passava de uma criança, que nem eu.
Tá, vai ficar tudo bem. Será que eu consigo pisar nas pedras?
Ela limitou-se a fungar e dar de ombros. O único jeito era tentar. Caminhei entre as pedras, evitando a lava escorrendo pelas frestas e cheguei à beirada do abismo. Olhei para baixo e engoli em seco. GLUP! Quando eu chegasse do outro lado ia dar um senhor peteleco nesse Altair. Mas agora não era hora pra pensar nisso. Havia uma pedra flutuante próxima, eu estiquei a perna e com o pé alcancei a pedra. Senti-a firme sob meu pé. Dei uma olhada para Mariela.
Acho que vai funcionar – eu disse, sentindo outro tremor na caverna.
Ela lançou-me um olhar cheio de esperança e lá fui eu. Subi na primeira pedra. Ela balançou um pouco, mas me firmei. A meio metro estava a próxima. Pulei de novo. Estava indo bem. Consegui escalar com facilidade. Até que isso era divertido! Não fosse, claro, o abismo que parecia me chamar ali embaixo. Quando estava na penúltima pedra, me desequilibrei e quase caí. Agarrei com força e consegui me segurar. Só deu pra ver a moeda que peguei caindo para o abismo. Sabe o que deu medo? Não ouvi ela tilintar no chão. Continuei firme e cheguei do outro lado:
Maninho! – Altair me apertou com força e começou a chorar. Nossa, meu irmãozinho estava em perigo. Naquela hora percebi também que a gente tem que ajudar todo mundo, mesmo quando parece que a gente não consegue. E a caverna tremeu de novo.
Como a gente vai voltar? – eu perguntei.
Eu acho que se eu for com você, as pedras ficam.
Vamos tentar.
Dito e feito. Pisamos na primeira pedra e ela ficou sólida e firme. Estava dando certo. O sorriso de alívio do meu irmão me deu coragem pra seguir em frente. Pisamos mais outra pedra. Mais uma, outra, e outra. Vamos conseguir! Espera… o que é isso? Porque está tudo tremendo?
Quem se atreve a adentrar meu covil? – uma voz profunda, tão profunda quanto o abismo debaixo de nós fez tudo vibrar – E se atrevem a jogar seu lixo na minha casa? Ora! Uma moeda humana! São aqueles moleques nojentos de novo! Dessa vez vocês não escapam! ROOAARR.
E um calor fenomenal começou a vir do abismo, acompanhado de uma forte luz alaranjada.
Corre! – gritou Altair. Eu apertei com força a mão dele e pulamos o mais rápido por cima nas pedras. Quando já estávamos na última pedra, Altair se desequilibrou e soltou minha mão. Vi quando ele atravessou a pedra e caiu em direção ao abismo.
Não! NÃO! – eu gritei e me lancei o mais rápido que pude na direção dele. Agarrei-o pela mão. Pendurado como estava, ele sentia mais do que eu a presença do ser maligno que nos perseguia.
Estevão, eu ajudo! – Mariela gritou pra mim. Ela estava na beirada do abismo tentando encostar na pedra, pra me alcançar. Entendi o plano dela. Com toda a pouca força que ainda tinha, enquanto segurava Altair, estiquei a perna pra beirada do abismo.
GRRR! Vocês não vão escapar! Seus vermes!
Ahhhh! – gritava Altair. Foi bem na hora que eu senti o toque de Mariela no meu pé.
Tira a gente daq… – e antes de terminar a frase estávamos de novo no quintal de casa. Estevão ainda gritando e Mariela chorando.
Desculpa, a gente não sabia que ia ser assim, desculpa.
Maninho, maninho.
Os dois me abraçaram com força. Foi uma aventura e tanto. Engraçado que mesmo sem poderes eu consegui ajudar eles. Como são as coisas, né? O que mais me surpreendeu foi quando os dois me olharam e disseram juntos:
Meu herói.



Conto congratulado com Menção Honrosa no VI Concurso Literário Icoense (CLIC), em Fevereiro de 2019.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Resenha - Cartas do inferno

LEWIS, C. S. Cartas do inferno. Exilado dos Livros: 2017.


Um demônio chamado Screwtape, Sua Abismal Sublimidade Subsecretário, de uma importante repartição pública do Inferno, tem o infeliz dever de ensinar a seu sobrinho, Wormwood, o caminho da pedras de um verdadeiro demônio tentador. O jovem é inexperiente, e essas correspondências serão de grande utilidade para que o mancebo alcance um lugar de destaque entre os demônios.

Esta é a premissa do livro. De uma maneira jocosa, o livro disserta sobre vários temas da vida cristã por meio deste diálogo (monólogo) entre os personagens. Lewis, um bom entendedor da burocracia, acredita que os piores demônios são aqueles que trabalham em escritórios e tem a capacidade de decidir sobre as tarefas infernais. Nas suas próprias palavras:
A verdade, porém, é que os maiores males e crimes são criados, arquitetados e executados em escritórios bem limpos, atapetados, refrigerados e bem iluminados por homens de colarinho branco, unhas bem cuidadas; estão sempre bem barbeados e jamais precisam elevar seu tom de voz.
Publicado originalmente no jornal The Guardian (jornal britânico criado em 1936), Lewis reúne as cartas para compor um livro em 1942. Esse contexto é suficiente para apontar para as guerras e rumores de guerras que permeavam o continente na época. Mas, não se engane, esse livro trata de um tipo de guerra, mas nem de perto daquela que os homens lutam entre si.

Com muita paciência, Screwtape dá dicas a Wormwood de como tratar o caso do seu último "paciente", um jovem cristão que mora com a mãe. Screwtape, observando sempre os princípios do Pai Que Está Abaixo, instrui o sobrinho a livrar seu paciente das influências do "Inimigo" (o próprio Deus), destacando manobras para manipular o paciente e desviar-lhe o caminho.

A princípio com uma premissa muito interessante, o livro logo se tornou um pouco entediante pra mim. Veja bem, não é que o livro seja entediante, é só que, nas circunstâncias, tornou-se. Explico. Eu quero ler literatura, ficção, romances, dramas, comédias. Não quero ler teologia. Se eu quisesse (o que faço até com certa frequência), eu pegaria um livro de teologia. Simbolismos não são problema nenhum pra mim. Mas, isto, quando eles estão em segundo plano, como símbolos

Não obstante, o livro traz algumas verdades muito interessantes. Há dicas de Lewis sobre relacionamentos, conflitos, ciência, leitura, pensamentos e ações; no fundo, cada carta é uma pequena dissertação sobre estes temas (e vários outros que não citei). Como um demônio poderia de maneira mais eficiente influenciar a vida de uma pessoa para levá-la a pecar? Esta é a pergunta primordial que rege o pensamento de Screwtape ao instruir Wormoood. Há frases muito interessantes, como:
"Deus bate à porta, ao passo que o Diabo a arromba."
"Em síntese, Deus se compraz em pedir ao homem sua individualidade, mas tão logo o homem a cede, o maior prazer de Deus é devolvê-la aprimorada".
"Nós [os demônios] somos vazios e queremos nos encher através deles [os humanos], Ele é pleno e assim transborda."
Lewis traz preciosas verdades à tona e destaca algo que hoje vários movimentos têm deturpado: há uma batalha espiritual acontecendo. Muitas dicas de Screwtape, por exemplo, são no sentido de: "Não deixe que seus pensamentos se aproximem minimamente dela. Envolva-a na penumbra." O maior trabalho do inimigo não é nos assustar, "possuir" pessoas ou criar guerras. Tratei disso extensamente no blog Ideias e Ideais quando escrevi dois posts só sobre "demônios". Lewis acerta na mosca quando Screwtape diz a seu sobrinho:
É divertido como os mortais sempre nos pintam como 'colocando coisas em suas mentes': na realidade, nosso melhor trabalho consiste justamente em evitar que certas coisas cheguem a suas mentes."
Ao final, me pergunto em que blog deveria estar este post (risos). E, mesmo que eu tenha dito a palavra "entediante", foi tudo uma questão de expectativa, porque o livro é fantástico. É engraçado ver um demônio experiente criticando o jovem por suas "mancadas", dando dicas do tipo "Fale com o demônio tal, que ele pode te ensinar melhor" ou citar órgãos como a Polícia Infernal.

O livro é escrito para cristãos e mostra os perigos que estão escondidos numa vida de falsa religião, mecanizações ritualísticas e o slow fade que é deixar-se levar para os caminhos errados. Lewis não tem pena de citar alguns nomes e correntes filosóficas que condena e há muito de sua conjuntura inserida no texto. Não obstante, é uma leitura muito boa. 
 
Ah! E sabe o jovem que mora com a mãe e tal? Ele se apaixona por uma cristã, passa a frequentar a igreja, conhece plenamente a Deus e escapa pelos dedos de Wormwood. Ops! Más notícias para o tentador. Agora ele próprio servirá de alimento para alguém. Quem será? Pelo que entendi, o próprio tio o aguarda, o afetuoso Screwtape.

sábado, 6 de abril de 2019

Resenha - O grande abismo

LEWIS, C. S. O grande abismo. São Paulo: Vida, 2006.


Há uma grande cidade. Nesta cidade, basta você pensar e pode construir uma casa fenomenal. A cidade é infinita e habitada por diversas personalidades. Há muitas ruas, todas com casas enormes e fantásticas. Mas as casas não protegem da chuva, do vento e todos na cidade vivem em constante discussões. Vizinhos se odeiam, amigos se desentendem, namorados não conseguem conversar. Esta cidade infinita, lugar onde está o protagonista da história, é nada mais, nada menos, que o Inferno.

Ou Purgatório, como Lewis chama, de maneira pueril (uma vez que o livro é obra de ficção, não de teologia). Ali parou um ônibus e todos são convidados a embarcar, para atravessar o Grande Abismo. Ao atravessar uma gigantesca separação, os passageiros chegam no Vale da Sombra da Vida. Ali, eles poderão seguir viagem, se quiserem, para as montanhas, onde conhecerão a Verdade. Mas não é tão simples.

Eles são Fantasmas, não são corpóreos, mas tudo ali é físico. Árvores, pássaros, cachoeiras, rios e outros animais. Caminhar naquele lugar é um sofrimento, porque a relva sob seus pés parece um tapete de pregos, dói. Uma única folha parece pesar uma tonelada e você teria que usar de toda sua força apenas para levantá-la. 

E é neste lugar que se passa toda a aventura do protagonista. Ali, ele e os outros Fantasmas que desceram do ônibus têm a oportunidade de explorar e até ficar por lá, se quiserem. Ou melhor, se conseguirem se desvencilhar das coisas que os seguram. O que Lewis nos mostra, porém, é que eles não querem se desvencilhar de nenhuma dessas coisas. Os Fantasmas encontram ali Pessoas, gente de carne e osso, que os reconhece do tempo que estavam em vida e os convidam a abandonar o passado para viver um futuro glorioso. O problema é que praticamente nenhum deles consegue.

Neste livro, Lewis faz uso da ficção fantástica para traçar alegorias sensacionais sobre Céu, Inferno, bem e mal. Há muitos assuntos, que diferentes personagens encarnam, tratando de pecados cultivados na terra e carregados até o inferno. Ah, mas não pense que são aqueles pecados tenebrosos. Não. 

Pode ser um pregador que se tornou apóstata, porque (imagine só), ele defendia sua opinião, seu ponto de vista e todos tinham que respeitar o que ele falasse. Pena que nada do que falava era a Verdade, ainda que ele estivesse convicto disso. A isto somam-se críticas à teologia liberal e até mesmo, pasmem, algumas indiretas ao que apenas 20 anos mais tarde seria conhecido como "pós-modernismo". Vejam esse trecho, em que um Fantasma conversa com uma Pessoa: 
               "Ah! Mas é preciso que todos interpretemos essas lindas palavras à nossa moda! Para mim não existe algo como uma resposta final. O vento livre da pesquisa deve sempre continuar soprando através da mente, não é mesmo? 'Prove todas as coisas'... viajar na expectativa é melhor do que chegar."
               "Se isso fosse verdade, e se se soubesse que era verdade, como poderia alguém viajar na esperança de algo? Nada haveria a ser esperado."
Escrito em 1945, o livro faz menção aos horrores das Guerras e à desesperança que elas trouxeram. Há menções aos católicos e aos protestantes. Como dá pra ver aí em cima, penso que a tradução não ficou das melhores (o "se se" aparecendo aí). Sei que não ficou errada, mas há trechos que precisei pensar no que o autor tinha escrito em inglês para ter uma noção mais clara. Talvez valesse a pena parafrasear alguns trechos. Ah, mas isso é tão pequeno perto de algo tão belo.

E a beleza de tudo está no misto de filosofia e teologia que o livro traz, imbuídos da belíssima literatura do autor. Por que há Inferno? Por que as Pessoas no Céu não fazem alguma coisa para resgatar as outras? Por que as pessoas que visitam o Vale da Sombra da Vida não escolhem todas ficar por lá? O que as impede? Estas e várias outras perguntas são respondidas no livro. Vou finalizar só ressaltando uma dessas muitas interações entre Pessoa e Fantasma.

Um Fantasma encontra uma Pessoa e ambos se reconhecem. Em vida, eram pintores. O Fantasma, maravilhado com o Vale, fala que gostaria de ter um pincel e um quadro, para registrar aquilo. A Pessoa então explica que, mesmo que ele tivesse, não valeria de nada, porque ele não conseguia de fato ver, ele precisava se tornar uma Pessoa, um ser de verdade, não um mero espectro. O Fantasma então concorda em seguir a Pessoa (ou Espírito) até as montanhas, onde conhecerá a Verdade. O problema é que sua motivação está errada:
               "Está querendo dizer que não existem homens de renome?"
       "Todos são famosos. Todos são conhecidos, lembrados, reconhecidos pela única Mente que pode fazer um juízo perfeito". 
               "Oh, naturalmente, neste sentido..." disse o Fantasma.
        "Não pare", falou o Espírito, procurando levá-lo ainda adiante.
           "Devemos então contentar-nos com a nossa reputação entre a posteridade.", disse o Fantasma.
               "Meu amigo, você não sabe?"
               "Sei o quê?"
          "Que você e eu já fomos completamente esquecidos na terra?"
                "Eh? O que disse?", exclamou o Fantasma, desvencilhando o braço. "Está insinuando que aqueles malditos neoregionalistas venceram afinal?"
          "É isso mesmo!", afirmou o Espírito, sacudindo-se novamente de riso e espargindo luz. "Ninguém daria nada por qualquer quadro meu ou mesmo seu na Europa ou na América hoje. Estamos completamente fora de moda."
              "Preciso ir-me imediatamente!", replicou o Fantasma. "Solte-me! Diabos, tenho meu dever quanto ao futuro da Arte. Preciso voltar aos meus amigos. Tenho de escrever um artigo. Vamos fazer um manifesto. Vamos começar um jornal. Conseguir toda publicidade que pudermos. Solte-me. Isto não é brincadeira!"
               E, sem esperar pela resposta do Espírito, o espectro desapareceu.
Caríssimos, o que será nossa arte e nosso legado daqui a 200 anos, quando não mais existirmos? Para quem escrevemos? Se for para os homens, estamos fadados a ser como o Fantasma, eternamente desapontados; se for para a única Mente para a qual vale a pena escrever qualquer coisa, então seremos como o Espírito, eternamente satisfeito com sua arte. 

Este trecho tocou-me sobremaneira, porque, talvez, eu estivesse perdendo o foco da coisa. A partir daqui devo olhar as coisas com outros olhos. Não há separação entre o eu artista e o eu pessoa, somos um só. E dessa maneira também deve ser nossa arte. 

C. S. Lewis, que cara fantástico. E viveu na mesma época de Érico Veríssimo. Será que foi preciso grandes guerras ou recessões para criar homens como vocês? Será que pode ainda haver, hoje, resquícios desse dom maravilhoso? Minha oração é que tudo que eu escrevo seja útil. Não para os homens, mas para a Verdade. Eita, que responsabilidade. E que privilégio.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Resenha - Ed Mort e outras histórias

VERÍSSIMO, Luís Fernando. Ed Mort e outras histórias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.


Um livretinho, um livretinho de nada. Publicado pela primeira vez em 1996, tenho certeza que ainda será reeditado umas trinta vezes e não cairá no esquecimento. Porque é uma leitura tão leve, tão simples! E olha como começa: "Mort. Ed Mort. Detetive particular." Fantástico. O estilo seco e direto do filho do mestre dá o tom perfeito à comédia e o ambiente criativo de suas histórias.

O personagem mais marcante é, de longe, o detetive particular. Seu estilo mulherengo, agressivo e sem sorte, quase uma caricatura de vários seriados policiais, contribui para suas aventuras sem pé nem cabeça. Seu pequeno escritório em Copacabana, disputado por baratas e ratos, é seu quartel-general, pronto para receber o exército de mulheres que batem à sua porta para contratar os serviços. Ed queria mesmo era que elas o contratassem para dormir com elas, mas esse não é seu ramo de negócios.

O livro não fala apenas de Ed Mort, traz vários outros contos e crônicas -- vários deles com temas recorrentes, que traz certa organicidade ao livro. Essa dinâmica e fluidez é bem agradável, porque você nunca fica entediado com o mesmo assunto. Hora é uma crônica, hora é uma história sobre divórcio, hora estamos falando de um possível agente secreto em loucas aventuras e, ora, ora, quem vem lá: de novo uma história de "Mort. Ed Mort. Está na plaqueta". 

Não foi a primeira vez que li este livro. Pra ser sincero, deve ter sido a quarta ou a quinta. Mas fazer o quê se gosto de boas histórias? Há quem critique o pobre Luis Fernando pelo seu estilo meio "tirinhas de jornal", por falta de expressão melhor. "Os contos são grandes o suficiente pra você ler entre uma descarga e outra". 

Ah, cara. Não são contos profundos e nem pretendem ser! São anedotas, causos, coisas pra fazer a gente rir e se divertir, não pensar. Tem livro pra isso. Tem filme pra isso. Tem arte pra isso. Mas arte não pode ser tão séria o tempo todo. Aff, nada mais maçante do que arte séria. Há momentos e momentos. No meu caso, era hora de ler algo divertido.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Resenha - Gato preto em campo de neve

VERÍSSIMO, Érico. Gato preto em campo de neve. São Paulo: Globo, 1996.


Eu não sei como explicar essa sensação. Não sei. Vocês já sentiram como se fossem velhos amigos de alguém, mesmo sem nunca ter encontrado a pessoa? Você já encontrou pontos comuns que fazem você pensar: "Ah, olha lá, o mesmo que eu!" e depois ficou admirado com isso? Como é possível a gente ter tantas coisas em comum com alguém que já morreu há décadas e, mais, não conseguir evitar o pensamento que, se ela estivesse viva, talvez até trocassem bons dedos de prosa?

"Gato preto em campo de neve" só me revelou essas coisas sobre Érico Veríssimo. Estou chocado. Sério. Palavra que não sei explicar como isso é possível. São experiências de vida tão próximas e ao mesmo tão contrastantes que sorrio e me exaspero com a "distante proximidade" que compartilho com as experiências que Érico teve em sua viagem aos Estados Unidos, em 1941. Ah, sim, o livro trata disso.

Na época da política da "Boa Vizinhança" dos colegas norte-americanos, Érico Veríssimo foi convidado pelo governo dos EUA para uma viagem de três meses pelo país, com tudo pago. Em suas palavras, disse que foi aos EUA para: "Viajar, ver pessoas e coisas. E fazer conferências... se não houver outro remédio." E lá vai o escritor passar por Washington, Baltimore, Filadélfia, Nova York, New Haven, Boston, Chicago, Nova Orleans, e cruzar o país para terminar a viagem em São Francisco e Hollywood. 

Érico, para mim, foi surpreendentemente corajoso e audaz em diversos momentos. Não teve medo de falar algumas frases ásperas e se aventurou em recantos bem obscuros! Na viagem a Nova York, disse que não poderia sair da cidade sem conhecer também a periferia, e mais!, foi visitar o local à noite. Eita homem de fibra... ou só um louco curioso? Sinônimos?

Eu morei nos EUA um tempo e me é chocante ver como algumas impressões de um cara que viajou para o país há 70 anos (!!) são as mesmas que eu tive. Penso que isso ajuda a elucidar um bocado sobre os pilares da cultura americana que, mesmo depois de tanto tempo, não mudaram tanto. Por outro lado, o contraste da economia é gritante! Imagine só: uma família com 3 pessoas poderia viver confortavelmente em Nova York com 350 dólares por mês! Um prato de comida luxuoso custava 2 dólares! É, meus amigos, quanto contraste!

Por outro lado, "Gato preto em campo de neve" peca justamente nesse ponto. O que acontece é simples: Érico estava numa conjuntura em que seus leitores do Brasil só poderiam conhecer os EUA se fosse por suas palavras (leitores comuns, é claro). A principal fonte de informação eram os jornais ou as telas do cinema (tudo preto e branco), que jamais revelariam aspectos do cotidiano do povo ou do lugar. Por isso, o livro tem um forte caráter enciclopédico.

Mesmo que Érico consiga descrever coisas sem ser entediante (uma de suas características mais admiráveis), para nós, em pleno século XXI, saber como são dispostas as ruas de Washington, ou ouvir falar do interior de um estúdio em Hollywood é uma perda de tempo. Meu amigo Veríssimo, se eu quiser saber disso, eu pego meu celular e procuro na internet. Logo, várias partes foram bem chatas, só salvando a leitura porque eram pinceladas pelas impressões do autor.

E essas impressões são fantásticas. Não só o que ele viu, mas também o que aconteceu com ele! Dar palestras sobre a cultura brasileira, ouvir a impressão que os americanos tinham do país. Ah! E conhecer grandes nomes da sua época! E se eu dissesse pra vocês que ele tomou chá na casa de gente como Thomas Mann, Somerset Maugham ou Orson Welles? Vocês já imaginaram o que seria sentar numa mesa e almoçar com Walt Disney, enquanto conversam sobre desenhos animados? E o que dizer de visitar um set em que ninguém menos que Alfred Hitchcock se encontra? Fantástico!

Érico e seu parceiro de viagem Malazarte (um alter ego que ele criou de si mesmo, dando a este uma personalidade mais juvenil) percorrem boa parte do território americano numa aventura e tanto. Em determinado ponto da viagem, atravessando as terras geladas entre o Leste e o Oeste, Érico nota, pela janela do trem, um grande campo de neve, com casas recortadas ao fundo, uma neblina criando o ar incólume que a paisagem traz. Um gato preto corta o tapete branco, correndo. Que cena memorável, tão bonita, tão simples, simples como as coisas da vida.

E assim o gato preto cortou o campo, destacando-se contra a paisagem branca, aprendendo alguns de seus segredos e registrando-os para sempre. Um bom historiador ou pesquisador sobre os EUA teria muito a aprender sobre uns EUA de 1941, antes mesmo de entrar na Segunda Guerra Mundial! Para mim, um mero leitor, ela revela o brasileiro, o viajante, o turista, o escritor, o curioso. É com este último que eu mais me identifico.

Há muito mais a dizer sobre o livro, sobre as aventuras que ele passou por lá, sobre encontros e impressões. Mas que graça teria se eu contasse tudo, não é? 576 páginas depois e praticamente um mês depois do último livro (embora minha leitura aqui tenha sido conturbada), quero deixar o que mais o livro tem a dizer. Na verdade, acho que é o tema sobre o qual Érico Veríssimo sempre escreveu e, por isso, eu seja tão fascinado com o que ele escreve. É simples. Ele escreve sobre esperança.