segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Resenha – O falecido Mattia Pascal

PIRANDELLO, Luigi. O falecido Mattia Pascal. São Paulo: Abril, 2010.


Esta é mais uma das gratas surpresas que só leitores-compradores-compulsivos conseguem ter: encontrei este livro na estante e sequer lembro de quando o obtive. Por certo ocorreu por conta da edição de colecionador da Abril para clássicos.

Já começando por este tópico, a edição, devo dizer que, na verdade, comprei alguns livros dessa edição no passado só pelo ímpeto de comprar. Olhando hoje, nem me agrada muito essa capa de toque áspero. É capa dura? É. Mas pra mim é desagradável segurar o livro por um longo tempo com esse toque estranho. Além disso, também me desagrada que a capa é difícil de ver, a tinta se desgasta rápido e o título some. 

Ainda sobre a edição, achei ridícula a escolha do editor em colocar notas de rodapé dentro do texto corrido. Meu amigo, você quer se amostrar e ensinar o leitor? Primeiro pergunte se ele quer aprender. Segundo, se você realmente acha necessária colocar essas notas informativas, pelo menos o faça inserindo-as como notas de fim. Aí quem realmente quiser vai lá e procura. Quem quiser só ler não precisa ser incomodado por elas.

Penso que o único ponto positivo foi o marca-página em forma de fita já costurado com o livro, hoje reconheço que é uma vantagem tê-lo sempre à mão.

Bom, mas partindo para o deleite que foi encontrar esse livro na estante. Primeiro que eu nem sabia quem era Pirandello, nunca vi mais gordo. Mas o estilo despojado do narrador Mattia Pascal me conquistou logo cedo. Ele é irônico, direto e cheio de comédia. Como não gostar? Não fica enrolando, fala o que tem que falar. Esse é dos meus. Bem-humorado e genuíno, parece que é uma pessoa de verdade, não uma construção.

A história também é fascinante. Mattia Pascal é um zé mané que se vê preso num casamento difícil, sem grana e num trabalho bosta. Até o dia que a sorte bate à porta. Dão-no como morto quase no mesmo dia em que ele ganha uma fortuna. De repente está livre da mulher, da sogra, dos credores, do trabalho e da vida de mesmice. Ele poderia ser quem quisesse, onde quisesse.

Deveras Mattia Pascal se vê livre. O problema é que depois ele se vê preso em outro tipo de liberdade. Sem documentos, sem possibilidade de criar novas amizades (uma vez que, como ele mesmo disse, amizade implica em intimidade – e ele não pode revelar demais quem ele de fato é), criou uma persona, Adriano Meis, e com ele tentar viver uma nova vida.

São muitos os dilemas que Mattia Pascal tem que enfrentar vivendo essa nova vida. Até o próprio ato de criar uma nova persona, que tivesse novos trejeitos, uma nova pessoa de fato, é um grande suplício. Na ânsia pela liberdade, ele se vê afogado pelas possibilidades e a limitação que elas podem trazer:
Nada se cria, é verdade, que não possua uma raiz qualquer, mais ou menos profunda, na realidade; mesmo as coisas mais estranhas podem ser verdade, aliás, nenhuma imaginação consegue conceber certas loucuras, certo os acontecimentos inacreditáveis desencadeiam-se e saltam do seio tumultuoso da vida; como e quanto a realidade pulsante mostra-se diferente das invenções que dela podemos extrair! De quantas coisas substanciais, pequeninas e inimagináveis, nossas invenções necessitam para se tornarem a própria realidade de onde foram extraídas, de quantos fios que aprendam na complicadíssima teia da existência, fios que nós rompemos para que ela possa se tornar a coisa em si! (p. 112)
Peço desculpas pela citação longa. É que achei ela tão bonita e ela falou de modo tão direto ao meu coração de escritor, que não pude evitar o registro completo dela. 

A própria questão da inverossimilhança foi alvo de discussões após o livro ser lançado. Muitos críticos rechaçaram Pirandello por conta dos exageros e absurdos pelos quais Mattia Pascal passou. Porém o próprio autor destacou que a vida, não raro, é mais inverossímil do que a ficção. 

Num apêndice do livro, Pirandello relata a história de um homem casado e adúltero que, vendo a insustentabilidade da relação à três, reúne mulher e amante no mesmo lugar para decidirem o que fazer quanto àquela situação. Após conversar, os três decidem que devem tirar as próprias vidas. Cada um vai para sua casa com este fim. 

A esposa pega uma arma e atira contra si mesma. O marido e a amante, porém, chegam à conclusão lógica de que o motivo que os impedia de ficarem juntos sumiu e, portanto, não faz mais sentido se matar. Esta não foi uma história que ele criou, mas uma notícia publicada nos jornais de Nova York em 1921.
[...] fora da lei e fora daquela singularidades, alegres ou tristes, com as quais nós somos o que somos, meu caro senhor Pascal não é possível viver. (p. 286)
No fim das contas o livro é fascinante. Amei cada etapa de sua leitura. As reviravoltas são bem trabalhadas, a narração é bem cadenciada e a estrutura toda é bem feita. Dá gosto de acompanhar Mattia Pascal e cada virada de página renova a vontade de continuar. Fico muito contente que minha estante tenha me surpreendido de novo. Leitura totalmente recomendada.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Resenha – A vida, o universo e tudo mais

ADAMS, Douglas. A vida, o universo e tudo mais. São Paulo: Arqueiro, 2010.


Qual o limite do improvável? Quando uma série de acontecimentos tão, mas tão difíceis de acontecer deixa de ser um conjunto de improbabilidades e tornam-se uma impossibilidade? Esta foi apenas uma das muitas indagações que surgiram ao ler essa obra de absurda criatividade.

Depois de duas resenhas desta série de livros do Guia do Mochileiro das Galáxias (O guia do mochileiro das galáxias, e O restaurante do fim do universo), finalmente aprendi a ler Douglas Adams. O cara é tão absurdamente criativo, que não é palatável, não faz bem aos nervos ler mais do que quatro ou cinco páginas de uma vez, quiçá um capítulo, quando muito dois. Mais que isso o único resultado é a indigestão confusa de dois elevado à potência delta.

Foi assim que degustei essa obra. Quando minha mente não aguentava mais absorver tanta informação interessante e instigante (eita aliteração!), dei-a o benefício do descanso e revisitava o livro horas depois ou mesmo apenas no dia seguinte, quando meu cérebro teve a chance de processar (ou esquecer) as coisas que leu. Tem livros que a gente leva pra cabeceira da cama e lê um pouquinho antes de dormir. Não é esse caso. Se esse livro já é trabalhoso de ler acordado, imagine com sono.

Via de regra, sempre comento algo sobre a tradução quando esta me chama a atenção por algum motivo. Mas no caso deste livro (desta série na verdade), eu preciso citar por nome o tradutor Carlos Irineu da Costa, porque esse cara não está de pá, nem de para, ele está de PARABÉNS. Meu amigo, que sacadas geniais!

Não bastassem as traduções dos termos comuns, do estilo despojado do autor e sua sagacidade, Carlinhos ainda nos traz termos fenomenais como "Bistromática", a ciência de condução de naves espaciais por meio de robôs em um bistrô italiano; ou ainda o meu tão querido POP: "Problema de Outra Pessoa".
Um POP é alguma coisa que não podemos ver, ou não vemos, ou nosso cérebro não nos deixa ver porque pensamos que é um problema de outra pessoa. É isso que POP quer dizer: Problema de Outra Pessoa. O cérebro simplesmente o apaga, como um ponto cego. Se você olhar diretamente para ele, não verá nada, a menos que saiba exatamente o que é. A única chance é conseguir ver algo olhando de soslaio. (p. 23)
No caso do livro, o POP em questão era uma nave espacial pousada ao lado dum campo futebol lotado (críquete, pra ser mais exato, só usei o futebol pra ficar mais claro). Em outro momento do livro, coisas tão absurdas acontecem que até mesmo respirar se torna um Problema de Outra Pessoa. E este é apenas um exemplo das maluquices geniais que esse livro traz.

Não bastasse o POP, é neste livro que ele ensina a voar (muito simples, é só errar o chão), e também é aqui que Arthur Dent encontra-se com seu arqui-inimigo que ele nem sabia que tinha. Acontece que todas as vezes que aquele cara era trazido à existência (num esquema de constantes reencarnações), por algum motivo ele morria por causa de Arthur Dent. Num caso, ele era uma formiga que foi pisada por Arhtur; em outro ele era um coelho que foi atropelado pelo carro que Arthur dirigia; e naquela vez que Arthur se abaixou pra escapar de um tiro, em quem vocês acham que o tiro acertou?

É tanta coisa legal acontecendo ao mesmo tempo que a história principal, a vingança do mundo de Krikkit, acaba ficando em segundo plano. Nem por isso ela deixa de ser interessante e tampouco o livro perde sua capacidade de nos manter fixos em cada pequeno detalhe que acontece.
Há um momento em cada amanhecer no qual a luz parece flutuar e tudo parece mágico. A criação prende a respiração. (p. 38)
Como expliquei nas resenhas anteriores, seria necessária uma tese de doutorado pra abordar tudo que o livro tem. Infelizmente, mesmo tendo esta tese em mãos, a banca conseguiu cagar um argumento melhor. Desta vez, porém, consegui convencer os editores do Guia a me publicar no seu blog, com um artigo cujo título lia-se: "Mentecaptos do Universo, como eles não cansam de aparecer". Alguns dizem que foi uma crítica e que era pra eu me sentir ofendido. Na verdade, estou é lisonjeado.