sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Resenha - Como contar um conto

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Como contar um conto. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 1997.


Pois é. Prosseguindo com a leitura de metalivros. Livros sobre livros. Na última resenha falei do maravilhoso livro de Stephen King. Resolvi continuar com a leitura dos mestres e fui pro meu xará García Márquez. Como, a princípio, só escrevi contos até hoje, pensei que esse título bem sugestivo pudesse ser diretamente mais útil. 

O livro em si não é sobre contos. Na verdade é uma compilação de uma oficina que García Márquez dava para alunos de cinema. As aulas, na verdade, são para escrever roteiros. Tudo bem que os roteiros são para filmes de, no máximo, 30 minutos, o que implica em praticamente fazer... um conto. Então há sim paralelos que podem ser traçados, mas tudo tem que ser visto na ótico de que é uma oficina para roteiristas.

Por um lado, é bem legal ver a conversa de mentes produzindo em conjunto diversas histórias, pensando em cenas, cortes, ângulos e uma história que seja plausível e concisa. Por outro lado, se você compra o livro para aprender a fazer contos, terá uma grande decepção. Porque em determinado ponto do livro você percebe que está praticamente apenas lendo a conversa de outras pessoas.

Outro exemplo. Enquanto King diz que não acha necessária e às vezes nem suporta descrições de figurino, preferindo deixar para imaginação do leitor, García Márquez já afirma que isso é necessário, claro, porque o visual é muito importante na tela do cinema, isso pode definir coisas. Outro contraste que se faz presente com King, é que García Márquez está fazendo um trabalho colaborativo com alunos da Oficina; escrever roteiros pode ser um trabalho de equipe, enquanto escrever romances é um trabalho absolutamente pessoal.

A seguir, vou reproduzir algumas das lições que reuni na leitura do livro, como um fichamento mesmo. 


#Revisões
  • Se uma cena não funciona, procure outra. Na maior parte das vezes, a outra é melhor.
  • É preciso aprender a jogar fora
    • Um bom escritor se conhece pelo que ele joga no lixo. As outras pessoas nunca vão saber, mas ele vai.
    • É preciso ter coragem pra fazer isso e ouvir opiniões, refletir sobre elas
    • Mesmo que todo mundo ache as coisas boas, o escritor deve ser capaz de colocá-las em dúvida
      • Eu lembro que na composição musical temos isso também. Às vezes temos uma ideia muito boa e queremos colocá-la na obra de qualquer jeito. Mas temos que ver se aquilo realmente se encaixa.
      • García Márquez diz que no começo isso dói mesmo, mas depois o escritor se acostuma. Ele alerta também ao perigo de querer guardar as coisas pra "usar depois" e acabar forçando aquilo na história
  • Conforme a história vai se ajustando, os defeitos vão ficando mais evidentes
    • As revisões devem servir pra deixar a história mais atraente e coerente
    • Não se pode alterar o essencial da história.

#Contando o conto
  • Crie a história. Os detalhes virão depois.
    • Aliás, meu xará reforça em diversos momentos a importância da estrutura. Com isso em mãos e bem definido, o autor pode escrever seguro. 
    • García Márquez diz que o gênero da história deve ser definido logo no começo. Não há nada pior do que uma comédia não-planejada, por exemplo.
    • Não dê título à história. Ele surgirá naturalmente.
  • Não há nada pior do que uma história curta que foi alongada. Se é curta, que seja, então.
  • Estabeleça as regras do jogo e siga-as.
    • A partir do momento que você estabelece as premissas e o leitor aceita, pronto. É o que King chama de "falar a verdade". Você se compromete com o que propôs.
      • Agora não vá tentar mudar as regras no meio do caminho, se comprometa.
      • Você pode fazer o que quiser, mas dentro da lógica que você mesmo impôs.
  • Aprenda a resumir. Meu xará diz que uma história só existe quando puder ser contada em uma página.
    • Diferente de King, García Márquez sugere que se faça uma síntese do roteiro ou um passo-a-passo do que acontece
      • Não sei se meu xará faz isso porque é um roteiro (que vai pras telas) ou se esse é o estilo dele mesmo. Eu particularmente ainda prefiro King. Tenho medo de que planejar demais deixe o texto pouco flexível e muito quadradinho.
      • Por outro lado, García Márquez tem um bom argumento, pois estamos falando de contos, não de romances. Logo, talvez seja preferível manter e estruturar uma boa linha de ação e depois ir complicando conforme se revisa.
    • O resumo pode ser: você quer contar exatamente o quê?
  • Comece a escrever com as coisas que conhece (tio King deu essa dica também!)
    • Aproveite suas experiências pessoais
    • Quando tiver esgotado isso, comece a explorar aquilo que não conhece diretamente
  • Fazer um arquivo com personagens que não usou, pra aproveitar em outro momento
    • Em alguma medida, todo personagem protagonista que criamos acaba sendo nós mesmos
  • Se você pode contar uma história de maneira simples, não tem por que complicar ela.
  • Meu xará também não gosta do recurso do flashback (que tio King também não curte).

#Além da escrita
  • Se você trabalhou bem no dia, descanse. Tenha domínio pra não se deixar levar.
    • García Márquez trabalhava de manhã, até duas ou três da tarde. Depois que terminava, não pensava mais nisso até o dia seguinte. Com isso conseguia descansar melhor.
    • Pode até haver quem consiga trabalhar o dia inteiro e não se canse. Mas meu xará pergunta: e vale a pena?
  • No cinema, muitas vezes o trabalho do roteirista é alterado pelo diretor, por questões alheias ao texto. E García Márquez disse que isso também acontece no mercado editorial.
    • Muitas vezes o diagramador de livros percebe que sobra uma linha para outra página, por exemplo. Então vai lá e mexe no espaçamento para economizar papel.
      • Mas isso altera a estrutura visual do texto. É uma economia de milhares de papeis para o editor e sua gráfica, mas pode significar perda na qualidade do texto.
      • É preciso respeitar as pulsações internas do texto.
#Por fim

No fundo, o livro não é didático. Penso que o título foi misleading pois acabei criando expectativa que não foi atingida. Não obstante, é possível ainda retirar algumas verdades. Gostei de saber que muito do que vi aqui já tinha aprendido com meu parça Steve. 

Por fim, Gabriel García Márquez diz que a verdadeira criação implica em riscos, em incertezas. Será que vai ficar bom? Será que vou conseguir? Será que a história ficou coesa? Todo esse grau de "será que?" é terrível, diz meu xará, mas ao mesmo tempo é necessária para fazer algo que valha a pena ser lido. Não precisamos ter medo da insegurança. Vamos escrever!

sábado, 4 de agosto de 2018

Resenha - Sobre a Escrita III

KING, Stephen. Sobre a escrita: a arte em memórias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.


Pois bem. Chegamos então à terceira e última parte da resenha desse livro incrível de Stephen King, em que nos dá dicas de como escrever, dicas de como encarar a arte de escrever e, o que considero o mais importante, nos dá insights sobre a sua vida. Ele dá um resumo autobiográfico daqueles momentos marcantes em sua vida que ele imagina que tiveram impacto na sua carreira de escritor. Hoje vou abordar duas seções do livro dele de uma vez, que estão intimamente ligadas.


CURRÍCULO E SOBRE A VIDA: UM POSTSCRIPTUM

Steve nos apresenta o que chama de seu "currículo". Ele conta histórias da sua infância, como a babá que peidava na sua cara (sim, ele usa essas palavras) e mesmo o terrível episódio da agulha no seu ouvido por conta de um tratamento médico. Em todos esses momentos a linguagem de Steve é a mais despojada possível. Parece que ele está conversando com um velho amigo. Eu.

Nós aprendemos que durante uma boa parte da infância de Steve ele foi dado à leitura, várias revistas em quadrinhos e livros fizeram parte de seus dias solitários quando ficou doente. Isso caminhou naturalmente para o dia em que ele resolveu escrever uma história por ele mesmo. Sua mãe depois ficara um pouco decepcionada em saber que a primeira história do filho teria sido copiada de uma revista em quadrinho, então ela o encorajou a escrever a sua própria história.

Na vida de Steve foram marcantes as palavras de encorajamento que recebeu, primeiro da sua mãe e depois de sua esposa. Isso fica nítido no discurso dele e mostra o quando pequenas palavras podem fazer a diferença na vida de uma pessoa.

Embora Steve não tivesse vivido ainda na era de ouro da televisão, sua adolescência foi marcada pelo cinema e, em especial (adivinhem!) filmes de terror e também ficção científica. Conta-nos ele que era parte de sua rotina ir aos finais de semana ao único cinema na região para apreciar as telonas. Teve até uma vez que ele resolveu transformar um livro em filme, na época da escola, e foi sucesso durante um breve tempo, sem saber que estava plagiando tudo.

Uma coisa que me impressionou na história de Steve, é que ele não é um grande gênio, por assim dizer. Ele teve um começo igual a nós. Ele escrevia para revistas literárias e recebia muitas cartas negativas; conseguiu um emprego num jornal local e o editor precisava corrigir muito do que ele escrevia. Ele tinha um prego na parede de seu quarto onde pendurava as cartas de rejeição; em determinado momento foram tantas que precisou trocar o prego por um mais firme.

Quando trabalhou no jornal local, Steve aprendeu algumas importantes lições como as que já nos ensinou (e mencionei em posts passados): é possível reduzir; escreva com a porta fechada e reescreva com a porta aberta. O editor explicou a ele que quando se escreve alguma coisa pela primeira vez, aquilo é só seu (a porta fechada); mas depois que você compartilha isso (a porta aberta), então passa a ser de todos. Por isso reescrever com a porta aberta é importante: você descobre o que realmente escreveu e se conseguiu escrever direito.

Um outro ponto alto na história da vida de Steve é seu encontro com Tabitha Spruce (ou Tabby, para íntimos), que tornou-se sua esposa e a maior companheira da sua carreira literária. Pra ser bem sincero, surpreende-me como a história desses dois ainda não virou um romance. É absolutamente linda! E é provavelmente a melhor parte do livro. 

Sabe, é muito legal ver um grande escritor sendo gente como a gente. Casando, tendo filhos, vivendo com pouca grana, tendo que ralar pra conseguir alguma coisa. O grande livro que estreou King foi Carrie, a Estranha. Sabe como começou? Ele teve uma ideia e escreveu no papel, mas achou que não ia dar futuro. Sua mulher estava limpando a escrivaninha quando viu as folhas de papel amassado, ela abriu pra ler e falou pra Steve: 
-- Porque você não escreve mais sobre isso, quero saber o que vai acontecer.
-- Mas Tabby, o que eu sei sobre meninas durante a escola?
-- Não se preocupe, eu te ajudo com isso
Steve ia jogar o papel fora. Ele ia desistir da ideia. Tabby, com suas palavras de encorajamento foi quem mudou o curso das coisas! E depois que Steve escreveu o livro e enviou para editora, Tabby perguntou quanto eles conseguiriam ganhar com aquilo. Steve disse que, no máximo, uns 60 mil dólares. Tabby quase caiu pra trás: era muita grana! Mas Steve explicou que mesmo que ganhassem tudo isso, pelo contrato, 50% era da editora. Mas, ainda assim!

Um dia Steve estava sozinho em casa e recebeu uma ligação. Era da editora. O editor pediu pra ele sentar, porque precisava contar o que aconteceu. Steve ficou nervoso e o editor falou: "Steve, conseguimos vender os direitos do seu livro." Steve pediu para saber como tinha sido, e o editor respondeu: "Vendemos por 400 mil dólares".

King nos conta que ele pediu pro editor repetir isso umas dez vezes até acreditar de verdade. 400 mil! Ele havia conseguido 200 mil dólares de uma vez, por conta do contrato! Mas era mais do que o sêxtuplo do que estava esperando! Steve conta que ficou angustiado porque sua esposa não estava em casa e precisava compartilhar as boas novas com ela. Quando finalmente chegou, ele fez ela sentar e contou a novidade. Tabby levantou-se, olhou ao redor para o apartamento minúsculo e feio, para os dois filhos brincando na sala, abraçou Steve, e chorou.

Um outro aspecto interessante da vida de Steve é que, tendo mulher e filhos, ele não podia só escrever (pelo menos não a princípio). Ele precisava trabalhar. Conta-nos que durante um tempo trabalhou dobrando lençóis em lavanderias enquanto sua mulher trabalhava no Dunkin Donuts. Ele escrevia depois do trabalho e às vezes na hora do almoço também. Em outro momento da sua vida, precisou dar aulas para poder se sustentar.

Ora! Essa não é a vida de todos nós, aspirantes? Foi pra mim um grande incentivo saber que um grande nome da literatura contemporânea não nasceu com isso, ele ascendeu. Isso significa que eu posso também! Significa que você pode também! Tem vários trechos do livro em que me emociona ver Steve como pai carregando fraldas sujas, enquanto o outro menino vomita, a mãe carregando algumas compras que caem no chão. Isso é a vida! Essa é a nossa vida! E saber que não existe passe de mágica ou um grande poder que muda tudo: é trabalho duro! É esforço! E isso eu posso fazer!

E na vida de Steve isso foi uma grande verdade. Quando ele começou não era o famoso "Stephen King". Ele mesmo diz, quando enviou Carrie para tentar uma editora, que ele era "apenas um peixe pequeno em um rio bem caudaloso". King não tinha renome, ele teria que construir isso aos poucos.

Voltando um pouco, volto a falar da história de amor de Steve e Tabby. Tem uma outra parte da vida de Steve que é bem marcante: ele se tornou alcoólatra e viciado em cocaína. Pois é, eu também não sabia. Nesta época da vida, já firmado como escritor, ele se justificava na armadilha do "artista incurável", como se a verdadeira arte viesse da dor, das drogas e o sofrimento fosse condição sine qua non para se poder fazer arte (em parte influenciado por Hemingway e outros do pós-guerra que se deixavam levar e marcaram esse estereótipo).

Tabby precisou reunir família e amigos para organizar um grupo de intervenção e fazer Steve sair dessa vida. Ela deu-lhe um ultimato: ir para a reabilitação e receber ajuda ou dar o fora de casa. Bum! Caramba... nessa hora eu me coloquei no lugar de Steve: "Caramba, mas minha vida é minha arte, eu não posso perder isso". Sabe? É um turning point na vida do artista. Pensei logo nos filmes e como o artista abandona tudo e todos pela arte: mas isso era apenas o estereótipo e eu estava me deixando levar por ele, confirmando-o.

Sabe o que Steve decidiu? Nas suas palavras: "Eu temia não ser mais capaz de trabalhar se parasse de  beber e de me drogar, mas decidi (de novo, tanto quanto eu era capaz de decidir alguma coisa em meu estado mental atormentado e deprimido) que trocaria a escrita pelo casamento e pela chance de ver meus filhos crescerem."

Meu Deus! Família é tudo! Não existe essa de que o artista tem que se isolar do mundo, que tem que decepcionar meio mundo de gente, como se a boa arte viesse da dor! Não! Olha o exemplo de Stephen King! Ele decidiu o que era mais importante e investiu nisso. Que exemplo! E, claro, que ele nunca parou de escrever. Depois que se limpou das drogas, sua escrita voltou meio hesitante, mas ele persistiu e seu estilo voltou firme como nunca!

Esse episódio na vida de Steve ensinou uma importante lição: a mesa de escrever não fica no centro da sala. Ela fica no canto. E ela está no canto porque quando você for escrever, deve lembrar a razão de ela não estar no centro da sala: "A vida não é um suporte à arte. É exatamente o contrário."

Steve tem também alguns posicionamentos interessantes sobre a arte. Por exemplo, numa época em que arte eram pretensos poetas falando de um mundo nebuloso, como se a arte viesse de algum lugar além, inalcançável; poetas incapazes de sequer explicar a mecânica de sua criação. Ele condena isso, tal como faço! Não há nada pior do que "arte pela arte", como fim em si mesma! A arte é feita por nós, para nós!

Quando ele escrevia, tinha uma percepção interessante que o que o escritor pensa do seu personagem não necessariamente é o que o leitor vai pensar. E muitas vezes não querer investir numa história só porque ela é emocional ou é criativamente custosa é uma péssima ideia. Steve encoraja a não termos medo de nossos sentimentos, mas aprender a usá-los.

Pra finalizar essa parte depois fazer uma pequena conclusão, vale mencionar outro episódio da vida de Steve, esse bem recente. Ele foi atropelado e quase morreu. Não estou nem brincando, foi por muito acaso que conseguiu sobreviver, tendo fraturado diversos pontos das pernas, costelas, pulmão perfurado e por aí vai. Foi feia a coisa. 

Ele ainda estava consciente quando o colocaram no helicóptero para levá-lo ao hospital geral da região, o único equipado o suficiente para salvar sua vida. Quando já estava na maca, saindo do helicóptero, ele sentiu-se desfalecer, segurou o enfermeiro pelo braço e disse: "Diga à Tabby que eu a amo muito". 

Sério. Não sei como isso não virou filme de romance, sério. No momento em que ele pensa que vai morrer, que realmente pensa e até sente isso, seu pensamento não está nos seu império de livros, não está na sua grande carreira, nos seus fãs, não! Nada disso! Seu pensamento está na sua esposa, aquela que esteve ao seu lado, naquela que foi peça fundamental em toda a sua história. Não foi a escrita, foi Tabby. 

Isso me leva a uma máxima que não está no livro de King, mas ouso dizer que ele concordaria comigo: Se você está fazendo arte à custa das pessoas que te amam, você está fazendo errado. Se você não entender que sua família (e aqui entenda "família" por aqueles que te amam e te apoiam) é o mais importante, sua arte nunca vai ser plena e você vai viver buscando preencher esse vazio.


# À guisa de conclusão

Uau. Eu falei que esse era um livro e tanto. Eu falei. Não só King, quer dizer, Steve nos dá dicas práticas de como escrever melhor, também nos dá conselhos sobre a literatura de maneira geral e, por sua história, nos ensina a encarar a vida e a arte de uma maneira diferente. Pelo menos foi o que aconteceu comigo. São lições que tenho certeza que vou carregar durante toda a minha vida de artista.

Termino essa resenha com as palavras de encorajamento do próprio Steve para nós, escritores ao acaso: você pode, você deve e, se tomar coragem para começar, você vai. Escrever é mágico, é a água da vida, como qualquer outra arte criativa. A água é de graça. Então beba. Beba até ficar saciado."

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Resenha - Sobre a Escrita II

KING, Stephen. Sobre a escrita: a arte em memórias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.


Então. Continuando o post anterior, vou dar sequência à resenha desse livro do maravilhoso Stephen King. No último post falei das dicas que considerei mais diretas por parte do autor. A maioria são de aspecto prático, coisas que dá pra aplicar logo na primeira tentativa de escrita. No post de hoje vou falar do aspecto maior do livro, que, por consequência, engloba mais assuntos.

O estilo de escrita do livro é bem despojado. Não é cronológico, mas temático. Isso torna a leitura super agradável e, como disse, às vezes parece que estamos conversando com Steve, quase consigo ouvir sua voz. Vou iniciar essa parte com a pergunta "O que é escrita?" e a resposta de Steve: "Telepatia, é claro."


SOBRE A ESCRITA


A impressão de King está plenamente correta: escrita é transmissão de pensamentos de maneira quase mágica. O que ele realmente está querendo enfatizar é: não encare a página em branco de maneira leviana. Ele quer que isso seja levado a sério. Se você não quiser, tudo bem, mas então não perca seu tempo lendo o livro dele, vá fazer outra coisa.

A tese maior de Stephen King é que a boa escrita é composta por dois elementos: o domínio dos fundamentos (a caixa de ferramentas, com as ferramentas certas, nos níveis certos) e a possibilidade de, com trabalho duro e dedicação, transformar um escritor meramente competente num bom escritor. 

King tem umas premissas aqui que não sei se consigo aceitar: ele diz que um escritor ruim sempre será ruim, que não tem como mudar. E um escritor bom nunca vai ser um escritor incrível. A transição ocorre só entre o razoável para o bom. Parece meio pessimista, mas como o cara tem anos de experiência, resolvi deixar passar.

#Primeiras dicas
  • Para ser escritor, tem que ler muito e escrever muito: não há atalho.
    • Se você não tem tempo para ler, não tem tempo para escrever
    • A leitura é o centro criativo da vida do escritor.
    • A leitura serve para criar intimidade e facilidade com o processo de escrita
  • Geralmente livros ruins têm mais a ensinar que os bons
    • A boa escrita ensina sobre estilo, narração elegante, desenvolvimento de enredo e criação de personagens críveis
    • Você tem que ler de tudo e ir refinando o seu próprio trabalho no caminho
  • Ser humilhado é parte necessária na formação de todo escritor.
  • Se você quer escrever com sinceridade, seus dias como membro da sociedade estão contados

#Segundas dicas
  • Cronograma bem-definido
    • Steve começa a trabalhar num projeto e só para se for absolutamente necessário
    • A escrita é melhor quando parece um jogo: o trabalho é ficar sem trabalhar, a escrita é a diversão
    • Steve escreve 10 páginas por dia, ou cerca de 2000 palavras: só fazer as contas
      • Para nós, meros mortais, ele sugere começar com mil palavras por dia e folgas
      • Tenha metas concretas: não espere pela inspiração
  • A primeira versão de um livro não deve demorar mais que três meses
  • A maior ajuda para a produção de um livro é uma atmosfera serena: corpo e mente saudáveis
    • Sua sala de escrita não precisa ser luxuosa
    • A primeira versão deve ser escrita a portas fechadas: eliminar distrações e indica seriedade

#Terceiras dicas
  • Sobre o que você vai escrever? Sobre o que quiser: desde que conte a verdade
    • Escreva o que lhe convença: o que você conhece e gosta. A "verdade" aqui é um mundo impossível de não se acreditar.
    • Não queira impressionar amigos, parentes ou outros escritores
  • Os leitores não serão atraídos pelo seu currículo, mas pela qualidade do seu trabalho
  • A imitação estilística é uma forma honrada de começa a escrever (e meio impossível de evitar)
    • Escreva o que quiser e depois encharque a história com seu conhecimento e perspectiva pessoal
    • Escreva sobre trabalho: as pessoas adoram, sabe-se lá por quê.

#Narração
  • Estes 3 são os componentes básicos de histórias e romances: narração, descrição e diálogo
  • Steve não confia na ideia de enredo: daí preferir o termo narração
    • Primeiro porque a nossa vida não tem enredo: as coisas simplesmente acontecem às vezes
    • A construção da trama pode engessar a espontaneidade: fica artificial e dura
    • Histórias se escrevem sozinhas: o escritor tem que apenas dar o lugar para elas aparecerem
  • Steve se apoia em intuições: os livros se baseiam mais em situações que em histórias
    • A situação vem primeiro, os personagens vêm depois
    • É como desencavar um fóssil: ir descobrindo as partes aos poucos
  • A história é confiável, a trama, enganadora

#Descrição
  • É a participação sensorial da história: é a visualização do que você quer que o leitor experimente
    • O problema não só como mas também quanto fazer
    • Você precisa conseguir descrever: o leitor não pode adivinhar
      • É um olhar mental: ver e sentir tudo para poder transcrever
  • A descrição pobre deixa o leitor confuso. A descrição exagerada enterra o leitor com detalhes
    • Você não precisa descrever nos mínimos detalhes
    • Steve diz que talvez nem as características físicas da pessoa ou suas roupas sejam importantes: deixe o leitor fornecer o resto
    • As vezes a descrição exagerada congela a do leitor e foca apenas na do escritor
  • A boa descrição são apenas alguns detalhes bem escolhidos: o resto fala por si
    • Geralmente os melhores detalhes são os primeiros a lhe ocorrer
    • Isso se reflete nas ferramentas: a escrita clara tem vocabulário e imagens simples
  • O livro não se trata do cenário: e sim da história que acontece nele
  • Metáforas para descrever são válidas: mas não pode cair nos clichês!
  • O ritmo
    • É a velocidade na qual a narrativa se desenrola
      • Se for rápido demais o leitor fica pra trás
      • Se for lento demais o leitor fica impaciente
  • O pano de fundo
    • É o que aconteceu antes de sua história começar
    • Steve não gosta de flashbacks: prefere contar direto
    • Cuidado para não focar demais no pano de fundo: e não deixá-los enfadonhos

#Diálogo
  • A máxima ainda vale: "Não mostre, conte".
  • O diálogo é mais fácil de aprender quando você gosta de conversar e ouvir outros
  • A chave para bons diálogos é a honestidade
    • Seu diálogo tem que ressoar como se fosse real
    • Essas dicas também se aplicam para a construção de personagens
  • Criar personagens é descobrir eles no caminho
    • Érico Veríssimo falava isso também: os personagens tem vida própria, você tem que descobrir quem eles são e o que eles fazem. Basta dar espaço.

#Quartas dicas
  • A prática é inestimável
  • Uma hora você precisa ler seu texto e avaliar se escreveu bem
    • Busque por padrões adjacentes para trazê-los à tona na segunda versão
    • O simbolismo é válido e muito interessante, mas não é sempre necessário
    • O excesso dele pode ser prejudicial
      • Ele deve vir para adornar e enriquecer
      • Mas o ponto máximo da história deve ser a história: mais do que isso fica artifical
  • Tema: todos os livros parecem tratar de alguma coisa
    • Sobre o quê estou escrevendo? O que me levou a escrever isso?
    • Mas o tema deve vir depois: a história é que leva a ele
      • Começar pelo tema é a receita para a má ficção
  • Bloqueio criativo: o tédio pode ser uma ferramenta para quebrar
    • Não pode frear demais a escrita: senão as coisas se embaralham e perdem o ritmo

#Versões e revisões
  • Steve recomenda duas versões e um polimento final
    • A primeira versão é a portas fechadas, a segunda com portas abertas
    • Escrever com a porta fechada força a se concentrar na história
  • A primeira versão deve ser escrita sem ajuda ou interferências
    • Resita ao impulso de pedir outras opiniões ou querer mostrar o que já fez
    • A esperança (ou o medo) do sucesso deve ser o motor 
  • Os leitores betas só podem comentar sobre o livro com você quando você estiver pronto
  • Depois que o livro estiver pronto: Descanse! Tire uns dias de folga, trabalhe em outra coisa
    • O livro deve ficar descansando também por no mínimo 6 semanas
    • Resista a tentação de revisitá-lo antes disso
    • Você não estará pronto para revisitar o projeto antigo até que já esteja bem envolvido com algum novo
  • Na primeira revisão
    • Se possível, faça tudo de uma sentada só e com portas fechadas
    • Encontre e conserte erros ortográficos, marque inconsistências, encontre os furos
      • Você está proibido de ficar deprimido ou se autoflagelar por causa dos furos
      • No caso de Steve, o maior erro geralmente está nas motivações dos personagens
    • A primeira revisão tem a ver com a caixa de ferramentas
      • A história é coerente? Essa coerência tem ritmo? Quais são os elementos recorrentes? Eles se entrelaçam e formam um tema?
      • O livro ressoa? Ele fica na mente da pessoa e no coração depois que lido?
  • Na segunda versão
    • Vai tentar reforçar o que quis dizer na primeira versão: inclusão de cenas e incidentes
    • Depois disso: vai para leitores beta
      • Todo romancista tem um Leitor Ideal: é em quem o escritor pensa quando está escrevendo alguns pontos da história
      • Quatro ou cinco betas eficientes são melhores que dezenas com comentários fracos
    • Se algumas pessoas gostam do final e outras odeiam, então está tudo bem
    • Se todas as pessoas apontarem algum problema: você tem um problema
      • Se você ver que os argumentos têm consistência: mude a história
  • Regra máxima das revisões: 2ª versão = 1ª versão - 10%
    • Todos os romances são, até certo ponto, reduzíveis

#Quintas dicas
  • Pesquisa: você terá que fazer para escrever bem
  • Distrações e interrupções rotineiras não fazem mal ao desenvolvimento do trabalho
  • Você vai questionar sua prosa e propósito várias vezes: na verdade você deveria estar escrevendo
  • Cursos de escrita criativa
    • Steve não acredita muito neles: porque muitos querem vender fórmulas mágicas
    • Mas eles no mínimo impulsionam para que a escrita seja mais séria
      • Steve argumenta que a gente não precisa que alguém nos entregue uma pasta com a etiqueta "Escritor" para acreditarmos que somos escritores
      • Pra ser bem sincero, não cheguei lá ainda.
    • Aprendemos mais lendo e escrevendo: as lições mais valiosas são as que ensinamos a nós mesmos

#Mercado literário
  • É bom ter um agente literário se o seu trabalho for vendável
  • No começo é preciso ser seu próprio agente
    • Ler revistas que publicam o que você escreve
    • Se você for contista iniciante procure "pequenas revistas"
    • Leia o mercado
  • Enviar histórias sem ler o mercado é como jogar dardos numa sala escura: pode até acertar, mas não vai ser merecido e 90% das vezes não vai funcionar
  • Importante explorar a Rede de Parceiros
  • Uma boa apresentação é importante
    • Quando enviar um texto (sinopse) deve mandar breve apresentação e agradecer o editor
    • Um novato não vai receber atenção a não ser que pareça profissional
  • Desconfie de agentes que cobram para ler o seu trabalho
  • Não faça pelo dinheiro. Faça pela diversão.

#Sobre a escrita

Pois é pessoal. Esse é o âmago do livro de King. Fiz essa resenha no estilo fichamento mesmo, porque tem muita coisa aí que não dá pra perder. São lições valiosas e olha que eu nem cobri tudo, várias coisas estão superficiais, afinal, é só uma resenha. Ou seja, leiam o livro!

No próximo post vou concluir a resenha falando da parte autobiográfica do livro. Não vou entrar tanto em detalhes da vida de King, senão em apontar algumas coisas que ele disse que me fizeram refletir não apenas sobre a carreira do autor, mas, principalmente, a do artista.

Resenha - Sobre a Escrita I

KING, Stephen. Sobre a escrita: a arte em memórias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.


Então, né. Essa será uma das resenhas mais importantes que vou fazer, presumo. Um dos grandes mestres da literatura contemporânea (pelo menos um que fez um bom sucesso) dando dicas de escrita, compartilhando com a gente parte de suas memórias, parte de sua trajetória até chegar onde chegou. É envolvente, é emocionante, é realmente muito diferente do que já li. Eu sabia que era um livro sobre escrita, sobre livros, porém mais de uma vez me peguei lendo simplesmente como se fosse uma conversa com Steve (sim, chamo-o assim agora).

Por isso vou dividir essa resenha em pelo menos duas partes. Vou começar com a parte mais técnica mesmo que -- por incrível que pareça -- considerei a segunda melhor do livro. Depois vou passar para as partes da vida de Stephen King, os pequenos detalhes que ele falou que me fizeram enxergar não só a vida do escritor (em si) de maneira diferente, mas até desconstruir alguns mitos sobre a arte e o artista de uma forma geral. No post de agora vou falar da seção do livro chamada "Caixa de Feramentas". Vamos lá.


A CAIXA DE FERRAMENTAS


Steve nos ensina que todo bom escritor deve carregar sua caixa de ferramentas para onde for. Mesmo que no final ele use apenas uma chave de fenda, não tem como saber se vai precisar do martelo ou a chave inglesa. Ele divide a caixa de ferramentas em três níveis (tipo aqueles níveis das caixas cheias de ferramentas, que se abrem), vou apontar cada um deles e as ferramentas que encontramos em cada nível.

#O primeiro nível: vocabulário e gramática

Como qualquer caixa, você tem que saber o limite de coisas que consegue carregar nela, mas isso é algo que só você poderá descobrir. Um pressuposto básico da caixa de ferramentas é que no primeiro nível têm que estar as ferramentas mais acessíveis. Essas são as ferramentas que você sempre vai usar quando estiver escrevendo, não tem como fugir delas. Assim, é natural que o vocabulário vá ser a primeira das ferramentas. Porém, aqui vão as dicas:
  1. Não tente enfeitar seu vocabulário, use o que for natural para você. Nada de tentar enfeitar.
  2. Use a primeira palavra que vier a cabeça se ela resolver a parada. Se não resolver, use a segunda que vier à cabeça.
A outra ferramenta básica, da qual não se pode preceder, é a gramática (e sem fazer cara feia!). Você pode até argumentar que fugir da gramática pode ser utilizado na escrita e Steve concorda com você. Mas ele tem uma ressalva: pra você quebrar as regras, você tem que ter certeza do que está fazendo, e isso só vai ser possível se você conhecer a gramática. As dicas:
  1. Sempre é mais provável que o escritor se saia melhor se seguir as regras
  2. A simplicidade é útil e, na pior das hipóteses, te dá segurança.
  3. A gramática é a estrutura na qual você se apoia para colocar os pensamentos no papel
  4. Jamais use: "isso é tão legal", "neste momento do tempo", "no fim das contas", tio Stephen King não gosta (haha)
  5. Evite a voz passiva. Assuma seu texto e não se esconda.
  6. O advérbio não é seu amigo 
    • Lembro-me do conselho que deram a Hemingway: "Até que você aprenda a usar advérbios, não os use". Se serviu pra Hemingway, avalie pra mim.
    • Os escritores muitas vezes usam advérbios na ânsia de tentar expressar clareza, com medo de não conseguir passar uma mensagem
    • Isso deve ser feito com o texto e contexto, não com advérbios
Steve está tentando nos ensinar, como máxima, que o medo é a raiz da má escrita. Se você tem medo de escrever ou do que vai escrever, isso é transcrito no seu texto. A boa escrita vem de fazer boas escolhas e ter boas ferramentas.

#O segundo nível: o parágrafo e o ritmo

Steve entende que a unidade básica de um texto em prosa, ou um romance, não é palavra, e sim o parágrafo. Ele é quem vai delimitar muitos aspectos do texto. Por exemplo, livros fáceis geralmente têm parágrafos mais curtos e muitos espaços em branco, enquanto livros complexos têm aparência abarrotada. Ou seja, o parágrafo traduz visualmente algumas características do livro. Por isso, os parágrafos devem ser organizados e ter sua utilidade pensada.

Segundo Steve, a menos que viremos colunistas, escritores em prosa necessitam pensar em complexidade e isso significa parágrafos maiores. Isso não significa fugir da forma básica do parágrafo. Uma forma básica que ele pensa é: a) frase síntese + b) frases descritivas e complementares. 

E ele é bem intimista sobre a construção do parágrafo (e de todo o texto, valha!). Por exemplo, ao sugerir como terminar um parágrafo, ele simplesmente aconselha: deixe a natureza seguir seu curso. Se der errado, depois você volta e corrige. Algumas dicas pontuais são;

  1. Parágrafos expositivos quase nunca têm apenas uma frase
  2. Gramática demais atrapalha: frases muito adequadas podem retesar uma linha.
  3. O ritmo é resultado de um bom encadeamento de parágrafos
    • King argumenta que pegar o ritmo é questão de prática. Segundo ele, um bom ritmo é resultado de milhares de horas escrevendo e dezenas de milhares de horas lendo.
#O terceiro nível: estilo

Depois que o escritor toma seu vocabulário, empunha uma boa gramática e com isso constrói as primeiras partes de seu Frannkestein, ou seja, os parágrafos, consegue um ritmo, como um coração pulsando... é porque está vivo! É aqui que vem o estilo.

Como se consegue um estilo? Como se diferenciar de outros? Como garantir que sua marca apareça nos seus escritos? Aparentemente, é fazendo. Escrever no fundo é usar todas essas ferramentas para construir coisas novas, coisas que façam tanto o escritor como o leitor serem transportados para outra dimensão, por um breve momento. Para Steve, e para mim também, é simplesmente mágica.

Com essa caixa de ferramentas em mãos podemos começar a trilhar nosso caminho como escritores. Muitas ferramentas precisarão ser polidas e eventualmente trocadas por outras mais eficientes ou que se encaixem melhor com nossas habilidades/necessidades. No próximo post vou falar da seção que é o âmago do livro, intitulada "Sobre a escrita".