VERÍSSIMO, Érico. A volta do gato preto. São Paulo: Globo, 1996.
É, meus caros. Estamos de volta para mais uma resenha do maior escritor brasileiro de todos os tempos. Confesso que estou num misto de nervosismo e tristeza. Depois deste livro, faltarão apenas mais dois para que eu termine a leitura completa de toda a obra de Érico Veríssimo. E, pra piorar, vou terminar com as autobiografias dele. Tanto a primeira parte, como a segunda, que ele não conseguiu terminar antes de morrer. Mas por enquanto vamos nos focar nesse aqui.
A volta do gato preto é uma referência direta a Gato preto em campo de neve, ou seja, uma continuação das peripécias do autor em terras yankees nos anos 1940, dessa vez acompanhado pela esposa e os dois filhos. Engraçado como na resenha que fiz do primeiro livro, falei como o autor usou o simbolismo do gato preto contra o campo de neve para representá-lo na sua viagem. Pois bem.
O autor inicia este segundo livro falando que todo mundo achou que era justamente isso que ele queria fazer. Mas não tinha nada a ver. Ele simplesmente viu um gato preto correndo num campo de neve e aquele contraste foi tão bonito que ele resolveu usar como título. Só isso. Pelo menos é o que ele diz, haha.
Bom, assim como o primeiro, o estilo desse livro é marcado por ser um conjunto de relatos. Isso precisa ficar claro desde o começo e o leitor precisa ser paciente. Porque ainda que os relatos caminhem com um propósito, não há um senso objetivo de história, tampouco um ticking clock que imprima um senso de urgência.
Por conta disso, tem vários momentos que o excesso de descrições serve apenas pra gerar uma impressão histórica de alguns fatos e às vezes nem isso, limitando-se às impressões de Veríssimo sobre algum fato. Claro, isso é condizente não apenas com a proposta do livro, mas também com uma época em que livros eram uma importante fonte de informações. Porém pode ser entediante.
Além disso, percebe-se que Veríssimo quis dar um tom mais despojado ao livro. Isto se nota não só no estilo, mas até na revisão. Tem um bocado de advérbios de modo que achei desnecessários e umas boas aliterações que poderiam ter saído. Mas eu presumo que o autor viu isso e, por conta do estilo do livro, resolveu deixar.
Mais perto do final do livro, Érico introduz vários pequenos ensaios sobre a vida nos EUA ou impressões do povo americano. Para isso cria um alter-ego (Tobias) e dialoga com ele. Mas, sinceramente, acho isso extremamente aborrecido. Não sei até que ponto isto fica bem num livro de memórias. Talvez seja novamente reflexo de uma época em que os livros informavam bastante ou, talvez, seja só porque o autor já estava num ponto em que podia se dar ao luxo de simplesmente colocar no livro o que quer.
Passando às impressões do autor sobre algumas coisas, se mudar com a família para um país tão diferente não deve ter sido uma tarefa fácil. Mas Érico Veríssimo já havia comentado o quão importante fora o apoio de sua esposa para sua carreira. Isto fica evidente em vários trechos do livro em que ela o apoia das maneiras mais simples. Nisto encontro um paralelo com Steohen King, para quem o apoio da esposa também foi essencial, como ele mesmo falou.
Eu sei que eu já falei isso várias vezes e até chato de tanto que eu falo. Mas é impressionante demais para não se notar. Como será que às vezes eu consigo ter as mesmas impressões de um homem vivendo em uma época tão diferente da minha? Como pode ser que a realidade do Brasil tenha se permanecido a mesma depois de mais de 80 anos, apesar de tudo? Veja esse trecho e me diga se você também não concorda:
"[...] fico a pensar no que poderia ser a nossa gente brasileira no dia em que passasse a comer direito, a ter assistência médica e mais escolas; no dia, enfim, em que a mortalidade infantil fosse reduzida ao mínimo possível, e em que houvesse melhor distribuição de oportunidades para todos..." (p. 47)
Esse tipo de reflexão social é tão certeira e terrivelmente atual que não podemos evitar a surpresa. Caramba, quem é que não concorda com ele? Quem é que não tem o mesmo sonho dele? E, o pior, quem é que não fica assombrado em ver que tantas décadas depois a situação não melhorou tanto assim?
Tendo lido Érico Veríssimo desde a infância, me pergunto até que. Eu e ele realmente pensamos de maneira igual ou a sua influência foi tão grande sobre mim que hoje reconheço nele fragmentos de coisas que penso ou acredito. Eis o grande dilema da formação do eu.
A gente precisa lembrar que o autor está nos EUA, mas num contexto de Segunda Guerra Mundial. Por isso ele sofre com as mesmas dúvidas que todos os artistas têm durante todas as suas vidas: o que um escritor, um músico, um pintor pode fazer para contribuir com a sociedade? Conclusão dele é muito simples: ele deve fazer o que pode.
Ainda sobre as impressões de Veríssimo, duas vezes Érico Veríssimo descreveu Nova Orleans. Duas vezes me deu vontade de conhecer aquele lugar pessoalmente.
Quanto às poucas aventuras que quero destacar dentre os tantos que ele passou, lembro de novo aqui a época em que ele estava nos EUA. Gente, a Segunda Guerra Mundial não foi um capítulo secundário na história dos nossos vizinhos do norte. Pra vocês terem uma noção, Veríssimo estava nos EUA quando o presidente Roosevelt foi assassinado. Até seus filhos sentiram o baque que aquilo foi para a nação. Todo esse contexto de Guerra levou a momentos únicos:
"Creio não estar simplesmente fazendo uma frase se afirmar que a explosão dessa bomba sobre Hiroshima foi como o estrondo dum gongo colossal, marcando a abertura duma nova era para o mundo." (p. 516)
Mas o principal fato que gostaria de deixar registrado aqui é que Veríssimo simplesmente não apenas encontra, como é o intérprete de Villa-Lobos quando este vai aos Estados Unidos por conta de um concerto!! Eu não sei como reagir a isso. Parece um daqueles crossovers de séries ou filmes que a gente sempre espera ver. Ah! O que eu não daria pra ver estes dois lado a lado. Até Stravinsky aparece no bolo!
Mas, pelo que me parece, eles não poderiam ser mais diferentes. Enquanto estou acostumado com um Veríssimo meio cabreiro e quase recatado, encontro em Villa-Lobos um excêntrico e egocêntrico personagem. Enquanto Veríssimo admite que no começo não gostava muito de estar perto do maestro, ao final passa admirar aquela pessoa que não tem medo de falar o que pensa ou sente, sem se importar com o que os outros vão achar dele.
Sobre literatura, de modo geral (ou "dicas literárias"), Veríssimo comenta algumas coisas que eu achei digno de deixar anotado, até porque este pretende ser um blog de um escritor, rsrsrs.
"Queres um conselho de amigo? Quando te sentires cansado, aborrecibo de toda a rotina da vida, compra umas calças amarelas." (p. 158)
"Literatura! Pura literatura. A vida não cabe assim em conceitos e imagens." (p. 189)
"O marido de Joan Bennett me oferece um cigarro. Infelizmente não fumo. Mais uma vez me convenço de que fazer a personagem fumar é um excelente recurso para o ficcionista, um jeito natural de criar pausas na narrativa." (p. 320)
Ainda sobre isso, Veríssimo deixa escapar um pouco do que sofre no Brasil em relação ao que escreve. Vejam bem, o estilo de Érico Veríssimo pode ser facilmente chamado de "realismo", porque ele não tem pena em mostrar as misérias sociais e problemas que os personagens enfrentam. Porém, isto é inserido numa época em que o governo brasileiro queria a todo custo evitar que tal imagem fosse exposta tanto para o Brasil como para o mundo. Daí muitos críticos dizerem que a literatura de Érico Veríssimo era "indecente", e que não visava os bons costumes.
Por fim, meus amigos, o que tenho a comentar não é muito profundo, mas preciso comentar.
A verdade é que Érico Veríssimo teve uma sorte desgraçada que acho que nenhum outro brasileiro teve. Meus amigos, ele morou dois anos nos EUA com tudo pago pelo governo americano. Isto é absolutamente impensável! Com a Política da Boa Vizinhança, os EUA se aproximavam dos vizinhos sul-americanos enquanto davam a Veríssimo uma oportunidade ímpar.
Não vou mentir, invejo-o um pouco. Quem não gostaria de 1) viver da sua arte; 2) ser pago para viajar e falar a outras pessoas sobre a sua arte? Sonhos, sonhos impossíveis.
No final do primeiro livro, minha impressão foi de que Érico Veríssimo não falava apenas de suas aventuras, mas falava de esperança (só ver lá a resenha que fiz). Mas neste aqui, eu já acho que não é bem isso. Talvez abatido pelos horrores da Guerra, o que Veríssimo faz aqui com maestria é apontar para a saudade. E disso eu entendo muito bem, Érico.
Eu morei nos EUA, terminei meu Ensino Médio lá. Ano passado (2019) fiz outra visita por conta da reunião de 10 anos do fim do Ensino Médio. Saudade é a palavra que impera quando lidamos com aquelas paisagens incríveis e com aquelas pessoas que conhecemos. Calma, não estou subestimando o Brasil. Não é isso. É o que quando a gente mora em um lugar assim, o lugar não é o lugar. O lugar são as pessoas. E é delas que sentimos mais falta.
No final das contas, a gente tem saudade de sorrisos, abraços, conversas e oportunidades. Mas a vida precisa seguir em frente. O jeito então é sacudir os ombros e olhar pra cima, na esperança de que a saudade nos traga pra sempre bons momentos.
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