quinta-feira, 23 de julho de 2020

Resenha - O conto da aia

ATWOOD, Margaret. O conto da aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.


Gente do céu. Que furacão foi esse? Li o livro todo em 02 dias? Foi isso mesmo, produção? Eita, acho que foi mesmo. Simplesmente devorei este livro que me cativou de uma maneira que eu não esperava. Pena que a autora escorregou nos 45 do segundo tempo. Mas isso eu vou explicar com calma. Vamos à resenha.

Pra quem não conhece, O conto da aia é uma distopia teocrática. Só essa premissa já achei bem interessante. Em vez de focar numa distopia cuja ideologia política é o motor da centralização do poder, a autora utiliza um fundo religioso para criar a mesma atmosfera de medo e opressão que é tão característica da distopia.

Além disso, o livro obedece aos pré-requisitos do gênero, incluindo aí uma sociedade funcionalista (em que as mulheres eram categorizadas de acordo com sua "utilidade") e a objetificação dos personagens em diferentes momentos, especialmente para justificar fins escusos. 

Por conta disso, acompanhar a trama de Offred ("nome" da personagem principal) e a sua realidade na República de Gileade, uma ditadura que se instaurou nos Estados Unidos após o assassinato do Presidente e a derrubada do Congresso, reorganizando a sociedade com base em princípios extremistas inspirados nas ideias do Antigo Testamento da Bíblia.

Quero começar falando um pouco de aspectos do texto em si, sem entrar ainda no estilo da autora ou no conteúdo da história. Eu peguei uma edição de excelente qualidade, muito bem trabalhada. Livro novinho, papel e espaçamento agradáveis com uma letra de tamanho adequado. Não há o que reclamar aqui.

Mas logo no começo já percebo algumas coisas que apontam para o teor do livro. Além de um ou outro advérbio de modo em excesso, vejo a ânsia da autora em mostrar uma nova abordagem: "Nossa olha para mim, olha como sou moderna, olha como não respeito o recuo dos parágrafos, olha como não respeito o uso do travessão, olha como uso meia risca e em outros momentos sequer uso. Olha como sou moderna." 😂😂

Brincadeiras à parte, eu entendo o porquê dessas escolhas. Ela estava numa época em que a literatura pedia algumas coisas como essa (década de 1980). Ela não foi pioneira neste sentido, mas vê-se que era um marco mexer não só com o enredo ou partes da história, mas com a própria estrutura do texto visual também.

Agora eu percebi mais de uma vez, porém deixei de lado porque achei que era só impressão. Mas não era: o livro tem erros de digitação. Por exemplo na página 102: "quacres" para, na linha seguinte, corrigir e usar "Quakers". Sei que é algo pequeno, mas estamos falando da Rocco, que não é uma editora pequena e não deveria ter deixado isso passar. E não foi só essa, claro.

Passando ao estilo da autora, é aqui que as coisas ficam cada vez mais fascinantes. As descrições da autora podem parecer supérfluas no primeiro momento. Mas na verdade, servem a um propósito muito bem desenhado, que é mostrar como, na privação de liberdade, até as coisas mais simples fazem falta.

Tem algo que ela faz de modo consciente (me parece) e que ajuda demais a manter o clima de suspense/dúvida durante todo o livro: ela nunca aborda o assunto diretamente. Se a mulher está numa casa e tem alguma coisa estranha acontecendo, ela não fala dessa coisa. Ela fala do que a mulher está sentindo, de memórias que ela teve antes, descreve algum objeto que traz reminiscências, seja lá o que for. Mas ela não aborda de modo direto a coisa em si e, quando o faz, é por meio de algum personagem ou mesmo nessas reminiscências do passado. Essa sutileza ajuda a deixar o leitor constantemente ligado, pra tentar compreender aquilo que ainda ficou sobrando.

Bom, mas tenho certeza que é o conteúdo do livro, por meio da história e dos vários temas inseridos nela, que é o grande foco de todas as discussões e repercussões que aconteceram depois. Como a história é contada do ponto de vista de uma mulher e a grande temática do livro se dá na objetificação desta, muitos chamam o livro de uma "distopia feminista". Mas é a própria autora que diz que este termo não está correto:
Texto original: "In a feminist dystopia pure and simple, all of the men would have greater rights than all of the women. It would be two-layered in structure: top layer men, bottom layer women. But Gilead is the usual kind of dictatorship: shaped like a pyramid, with the powerful of both sexes at the apex,
Tradução livre: "Numa distopia feminista pura e simples, todos os homens teriam mais direitos que todas as mulheres. Seria uma estrutura de duas camadas: homens no topo, mulheres embaixo. Mas Gileade é o tipo comum de ditadura: em forma de pirâmide, com os poderosos de ambos os sexos no topo," (entrevista concedida do The Guardian)
Tendo posto essa questão de lado, aí sim podemos mergulhar em temas mais profundos como a própria organização da sociedade e a dominação do ser humano pelo próprio ser humano (eita natureza hobbesiana, hein?). 

Tem algo muito tenso que acontece durante a história, que poderia até ser considerado inverossímil: o lento e constante cerceamento das liberdades individuais. Porém é ainda mais terrível do que parece, por que se você ler "O pianista" perceberá que não é só verossímil, como já até aconteceu.

Definitivamente não é um livro para menores. Embora os trechos explícitos sejam bem curtos, é a atmosfera do livro que serve a um propósito mais pesado. Tudo é tenso. E isto é excelente para construção do tônus de livro de modo geral. Não se enganem, o livro não é nada ruim. Só não é para crianças ou adolescentes.

Nesse quesito de organização da sociedade, algo que é muito claro na abordagem de Atwood é seu argumento quanto à inevitabilidade da natureza (neste caso, dos impulsos sexuais) e a constante necessidade do ser humano de dominar o lado mais selvagem da sua própria natureza:
"Você não pode controlar o que sente, disse Moira certa ocasião, mas pode controlar como se comporta." (p. 230)
Por conta da temática sexual tão forte e a dominação na história ter cunho religioso, muitos podem querer interpretar isso de forma incorreta, tal como fazem na leitura de uma "distopia feminista". É importante olharmos para a obra e vermos o que ela revela por si, não o queremos enxergar nela. 

Digo isto porque não creio que a autora abomine a religião, como possa parecer. Porque ela deixa bem claro que o que aconteceu na história foi um mau uso da religião, havendo inclusive outros grupos religiosos na trama que foram importantes (quakers) e outros citados como "inimigos" do novo governo fanático. Taí, é isso. O problema não é a religião, mas o fanatismo. E é a própria autora que confirma isso:
Texto original: "I don't consider these people to be Christians because they do not have at the core of their behavior and ideologies what I, in my feeble Canadian way, would consider to be the core of Christianity,” 
Tradução livre: "Eu não considero estas pessoas como Cristãs porque elas não tem no âmago de seu comportamento e ideologias o que eu, na meu humilde entendimento canadense, considero como sendo o âmago do Cristianismo," (conforme entrevista que ela deu nesta ocasião)
Agora, infelizmente, o livro terminou pra mim com um problema. E vejam bem, não tem nada a ver com o enredo. Tem a ver com o que eu caracterizei como "escorregadas literárias" da autora. E olhe que, via de regra, isso não é problema. Aliás, é muito comum nós encontrarmos em diferentes livros algum detalhe que não nos agrade. Mas, quando a história é muito boa, conseguimos deixar isso de lado e seguir em frente. O problema é que Atwood cometeu três erros desse tipo um atrás do outro... e logo no final.

A primeira escorregada aconteceu do capítulo 40 para o 41, quando ela fez algo que quebrou o encanto para mim: o uso excessivo de ilusões, constantemente desconstruindo as cenas anteriores. Esse recurso eu acho péssimo. Porque o leitor já gastou o tempo dele lendo trechos, mergulhando na cena com a personagem, só pra logo em seguida a autora dizer: "Ah, mas não foi bem assim, na verdade aconteceu isso aqui." Aí dois parágrafos depois ela faz exatamente a mesma coisa. Criando outra ilusão!

Some-se a isto o segundo problema, que foi a quebra exagerada da quarta parede. Conquanto já tivesse feito isso no decorrer do livro, fê-lo de modo agradável, sem exagerar, adereçando de um modo que contribuísse com a história, aqui neste final gastou tempo demais utilizando esse recurso de modo mais direto do que o necessário e a troco de muito pouco ou quase nada.

A gota d'água pra mim foi o terceiro deslize: quebrar as regras do jogo que ela mesma estabeleceu. Vejam bem, durante todo o livro ela constrói as coisas com calma, devagar, mostrando as nuances da personagem e seus problemas. Não acontece nada de muito impressionante no livro, não há grandes reviravoltas nem super acontecimentos, mas a gente simplesmente fica vidrado em tudo que tá acontecendo... porque ela faz isso com uma calma agonizante! 

Mas aí ela faz isso durante o livro inteiro pra lá no final me aparecer com um apaixonamento súbito?? Oras, foi contrastante demais com o resto do livro e pareceu jogado à força pra complementar o roteiro. E pra que fim até agora eu não entendi. Em basicamente uma linha ela entregou a personagem a uma paixão que não foi abordada em nenhum outro momento!

Olha, esses três problemas não seriam nada demais se estivessem espaçados no livro. O problema é que eles vieram um atrás do outro (sério, foi logo em seguida, todos eles) e ainda muito perto do final, onde a autora não tinha mais espaço pra se recuperar. A brincadeira da autora com ilusões estragou o clímax. Porque a gente simplesmente não sabe se foi verdade ou uma mera ilusão e a nossa experiência torna-se ilusória também.

"Ah, mas isso aí foi o recurso que ela usou pra deixar o final dúbio". Então me explica porque ela acrescentou no final do livro aquela explicação metaficcional sobre os acontecimentos do próprio livro? Quando ela fez aquilo, cristalizou toda a aura de mistério que sobrou no final da trama propriamente dita. Enquanto deixou o final mais redondinho, tirou os "ecos" que poderiam reverberar daquele final.

É, meus caros. Não fosse esse problema aí no final, eu não teria praticamente nada de ruim a falar do livro. Porque pense numa leitura fantástica! Não foi à toa que devorei o livro em dois dias. E olha que faz um tempo que não conseguia uma proeza dessa. A leitura é fenomenal e, se você tiver mais de dezoito anos e uma mente pelo menos um pouquinho aberta, vale a pena a leitura.

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