sábado, 3 de outubro de 2020

Resenha - Guerra Fria (conto)

ARANTES, Márcia. Guerra Fria (conto). Goiânia: Building Dreams, 2020.


Olha, eu não costumo resenhar contos. Mas este será um caso diferente. Eu conheço a autora? Conheço. Ela sugeriu a leitura? Sugeriu. Mas ela já me conhece e sabe como são minhas resenhas? Conhece e sabe. Então não tem por que eu não fazer esta resenha, já que eu gostei da história. O lance é que, se um livro já sofre porque eu analiso as minúcias dele, avalie um conto. 

A história é bem simples: um casal decide que a única forma de eles aguentarem conviver um com o outro é redigir um contrato entre os dois que rege a vida doméstica. Quem quebrar as regras do contrato tem o direito de matar o outro. É isso.

Já no primeiro parágrafo eu encontro algumas coisas que me chamam atenção. Primeiro é que ele não está justificado (um erro de diagramação que dá pra deixar passar -- só me saltou aos olhos porque está no primeiro mesmo). Segundo, é que achei confuso. Eu já comentei isso por aqui antes. Para mim, um texto bem escrito deve e pode ser desfrutado tanto por um doutor quanto pelo tio da quitanda. Em mais de um lugar achei que o uso de palavras mais complexas foi desnecessário.

No segundo parágrafo (relaxem, não vou falar parágrafo a parágrafo, só estou ressaltando algo aqui que se repete em outros momentos) tem outra coisa: muitos advérbios de modo e adjetivos. Os advérbios de modo até que são discretos no texto, dá pra ignorar; mas os adjetivos são meio desnecessários, vários deles que só reforçam uma atmosfera tensa ou pesada que já havia ficado clara (tornando redundante a repetição de um "maldito", por exemplo). 

Parece que o narrador é que está com raiva e não o personagem. Enquanto entendo que este fluxo de consciência pode ser útil para criar um tônus interessante à trama, do meu ponto de vista ele só deixa o leitor cansado e já com uma impressão pesada bem no começo do conto. 

A impressão que eu tenho é que a pessoa que escreveu, escreveu isso com raiva e o sentimento dominou o texto. E aqui já não me refiro apenas ao segundo parágrafo, mas aos seguintes também -- essa impressão só vai se desfazer da metade do conto para o fim.

Aliás, da metade pro fim o conto ganha outro ar, quase outro estilo. E aí a gente não consegue evitar: somos enredados por ele. A partir desse ponto nossa experiência tem um up e a qualidade do conto nos dá ânimo pra continuar até o fim.

Em outro ponto, a autora tem a seu favor que um dos personagens principais se chama Gabriel (risos).

Na parte que há um flashback, penso que deveria ter pelo menos uma quebra de parágrafo. Quando li fiquei meio perdido nas cenas. E aqui foi o único ponto que eu achei que houve um erro na estrutura do conto. A premissa da história é boa demais pra ser dada de mão beijada aqui! Aliás, a premissa é boa demais pra ser colocada na descrição do conto na Amazon! 
"O casamento e a comunhão universal de bens uniram Tatiana, Gabriel e uma fortuna. Para evitar o divórcio e a consequente partilha, os dois entraram num acordo inusitado: é proibido reclamar. As consequências para quem quebrar o acordo são muito piores que divisão dos bens; [...]" (Sinopse na Amazon)
Essa informação deveria ser revelada só lá no final, final! Seria muito bom deixar o leitor sempre com uma pulga atrás da orelha: "Mas do que se trata esse acordo deles? Será que é um contrato? Por que diabos eles levaram isso num cartório?". Essa informação escondida do leitor, somada ao desenvolvimento da trama, traria uma excelente carga de tensão para que tudo fosse resolvido só no final.

(Aliás, não entendi por que a palavra "cartório" ficou em negrito e itálico no meio do texto. Achei até que fosse algum hiperlink. Isso aconteceu na posição 39.)

Ah, o título é super adequado. O final, quando inserido como metáfora do contexto geopolítico, reflete com perfeição a Guerra Fria (sem spoiler). O que eu me refiro aqui é a um não-conflito que, mesmo não sendo direto, resulta em muito dano para quem está ao redor.

A verdade é que não sei se gostei do conto. À parte das questões de linguagem, o final me pareceu absurdo demais. Só que aí eu penso: "Ora, mas os contos não servem também para lidar com o absurdo?". E eu tenho que concordar que sim. Resultado: fico em cima do muro. 

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