sábado, 11 de janeiro de 2020

Resenha - A sombra do pai

DOBRACZYŃSKI, Jan. A sombra do Pai: história de José de Nazaré. São Paulo: Cultor de Livros, 2017.


Pessoal, entramos o ano lendo este livro de ficção cristã, publicado pela minha amada editora Cultor de Livros! Obra escrita pelo padre polonês Jan Dobraczynski em 1977, ganhou nova edição no Brasil em 2017 com o verdeiro resgate que o Cultor tem feito com obras clássicas. Aqui já cabe uma primeira ressalva: naturalmente, por ser obra de um padre, haverá várias discordâncias doutrinárias e opções na história com as quais eu não concordo. Não obstante, o livro é bem interessante e realmente faz a gente imergir na história de José, o pai de Jesus Cristo. Sigamos.

Vamos começar falando logo do personagem principal da história. No começo do livro, achei um pouco exagerada a pintura de José. Parece que faltou, sei lá, humanidade nele... parece muito certinho. Além disso, acho que por conta do modo como eu mesmo pintei José na minha cabeça, houve momentos em que a verossimilhança não me convenceu.

Refiro-me, por exemplo, ao fato de que José tinha que ter desconfiado de Maria. Não tem como escapar de um sentimento tão humano, simplesmente não dá. José não poderia ter sentido apenas tristeza, sem raiva. Essa mistificação de José acaba comprometendo o texto. Embora, do meio para o fim do livro, as dúvidas e humanidades de José venham à tona. mas nisso de José se ver como "sombra", a autoestima e valor próprio dele foram decaindo o livro todo. O final mostra um homem praticamente prostrado. Me recuso a pensar que José foi alguém assim.

Um problema que me parece sério é que José é pintado como um homem dominado pela esposa. Isto não faz sentido com a ordenança bíblica. O autor aponta praticamente Maria como a tomadora de decisões e José como seu subalterno. Embora o autor queira defender a condição da mulher (que eu super apoio e concordo), não dá pra diminuir José dessa forma. No livro ele é praticamente um banana que obedece Maria.

E abordando essa questão da relação com Maria, tem algumas coisas que me incomodaram também. Refiro-me em primeiro à cena em que Maria diz que se pode "sugerir" a Deus o que Ele deve fazer. O autor desemboca como se ela tivesse sido escolhida como mãe de Jesus porque pediu a Deus e o "convenceu".

Também discordo que tenha sido sugestão de Maria ir com José. Mas, pelo contrário, insistência DELE, pra que ela não ficasse desamparada e, principalmente, que não fosse vítima de nenhuma perseguição. Além disso, há um erro que acontece muito na literatura ocidental sobre a hospedagem para Maria e José. Eu teria que explicar bastante sobre a cultura oriental, mas por enquanto vou apenas recomendar o livro "Jesus pela ótica do Oriente Médio" de Kenneth E. Bailey. Outra hora falo sobre ele.

O autor demonstra respeito por Jesus, sempre o chamando de Menino ou falando da Sua graça com letras maiúsculas. Mas dar a entender que o recém-nascido já entendia tudo e dava conselhos de modo indireto foi um pouco demasiado. Jesus foi um ser humano igual a todos nós, a Sua humanidade não pode ser diminuída.

No caso da história dos Reis Magos há um sincretismo muito perigoso. Eu mesmo não saberia opinar teologicamente de maneira categórica; mas tem um universalismo escondido aí, como se "todas as religiões" apontassem para Deus de alguma forma. E não é bem assim. Aliás, o livro tem um bocado de misticismo disfarçado.

Toda a parte que fala de Herodes é muito confusa. A gente não sabe quem são os personagens, eles não são apresentados de maneira didática, e por isso a gente se perde na leitura. Não dá pra lembrar com facilidade quem é filho de quem ou marido/esposa. Acabamos lendo "no rumo".

Quanto ao estilo dele me trouxe a tona uma coisa e acho que isso é um erro e uma tentação para todos que escrevem ficção histórica. Eu mesmo sei que caí nisso mais de uma vez. A gente fica na ânsia de explicar e mostrar um conhecimento interessante que temos sobre aquela época.

É difícil resistir ao impulso; mas é importante lembrar que nem tudo precisa estar na história, a não ser que contribua diretamente para ela. Ah, e apesar do glossário, tem muitos termos em aramaico/hebraico que atrapalham a fluidez da leitura.

Essa questão de descrições é sempre um problema, ainda mais em ficção histórica. No próprio livro tem várias que poderiam ser tiradas. Além disso, não entendo por que o autor insiste em começar cada capítulo com uma descrição geográfica do local. Isso acaba influenciando bastante na estrutura do livro.

De modo geral, o ritmo do livro é lento, de mas no meio fica mais lento ainda. Este é um perigo natural de um romance, que pode ter começo e fim arrebatadores, mas um meio que é extenuante e cansativo. No último 1/4, o livro dá uma guinada brusca para o realismo quase noir, mostrando a pobreza e humilhação

Eu sei que falei bastante coisa da qual discordo, mas o livro tem muitos pontos positivos. A história do livro é realmente emocionante (aliás, que enredo bíblico envolvendo Jesus não é?), fiquei com lágrimas nos olhos ou arrepios mais de uma vez. As orações que o autor põe na boca dos personagens são muito bonitas, é inegável.

Uma coisa interessante é que o autor denuncia abertamente a condição da mulher naqueles tempos. E ele está completamente certo. Naquela época sim havia um machismo muito forte. Havia ditados que comparavam mulheres a cães, vendo-as como impuras ou meros objetos/moeda de troca. O autor fez uma excelente defesa sem cair em ideologias nocivas. Coisa rara hoje em dia.

Além disso, a capacidade de imersão do livro é muito boa. A gente realmente se imagina lá na Terra Santa, vendo as coisas acontecerem. Claro, não por causa das descrições, mas pelas interações entre os personagens. Aliás, os personagens em si, apesar do que eu citei acima, são bem construídos pensando numa lógica narrativa.

Muito interessante mostrar que José e Maria SABIAM que quem nasceria não era uma pessoa qualquer, era o Messias prometido de Deus! Isto não era um fato leviano e eles com certeza tinham muitas dúvidas. De certo tratavam a questão com uma peculiaridade única. Também achei lindo imaginar que Jesus se tornou amigo de Lázaro, Marta e Maria ainda quando pré adolescente.

Agora o ponto mais alto do livro é o dilema de José. Este trecho abaixo representa bem suas dúvidas:
"O amor da mãe por seu filho nasce do amor do pai. E Ele não será meu Filho! Terá o Seu verdadeiro Pai, que estenderá sobre Ele e sobre Sua mãe o manto de Sua proteção. Eu serei sempre uma sombra. As sombras desaparecem quando surge o sol..." (p. 148)
Essa reflexão de José em sentir-se uma sombra por não ser o pai verdadeiro de Jesus reflete algo em nós. Quando Jesus veio e consumou sua obra na Terra, as coisas passadas se tornaram sombras daquilo. Mas, ainda hoje, há coisas que são apenas sombras, porque aguardamos o Seu retorno.

A entrega de José em saber que havia ali alguém maior que ele e que, necessariamente, brilharia com esplendor muito maior que o seu, é uma lição que podemos carregar deste livro e aplicar nas nossas vidas. O Filho dado a José para cuidar não era um menino qualquer. Esta humildade vale a pena cultivar em nossas vidas: 
"Não fui eu, pensou José, foi Ele..." (p. 269)

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