sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Resenha – Contos de amor, de loucura e de morte

QUIROGA, Horacio. Contos de amor, de loucura e de morte. São Paulo: Abril, 2010.


Gente do céu, pense numa leitura que me surpreendeu. Mas antes preciso confessar por que demorei tanto tempo pra tirar esse livro da minha estante. E o motivo é o mais fútil possível: eu não gostei do toque da capa. Eu falei que era fútil. Mas finalmente vencido esse preconceito bem fuleiro, tive o deleite de descobrir esse autor uruguaio-argentino. Uma pena que não tivesse encontrado-o antes.

O primeiro conto foi um baque de qualidade. Começa simples e, na simplicidade, termina de maneira elegante. É impressionante a capacidade do autor em nos fazer gostar e se importar com personagens que a gente conheceu há poucos parágrafos. 

Os contos estão embebidos de estratagemas político-sociais comuns na época por meio do casamento. Na verdade, tudo é muito bem ambientado não só no contexto social, mas cultural da América do Sul, nomeadamente, claro, na realidade do Uruguai e da Argentina:
"A mãe nos deixava sozinhos; e mesmo que soubesse o que acontecia, fecharia os olhos para não perder a mais vaga possibilidade de subir com sua filha a uma esfera social muito mais alta." (p. 46)
As tragédias que ele escreve são de uma beleza ímpar. Não dá pra negar a maestria de Quiroga, porque essa beleza é unida a uma elegância invejável, um estilo quase cirúrgico. Com seus parágrafos pequenos e frases verossímeis, todas as histórias são muito agradáveis de ler.

Contos como O barco suicida representam bem o estilo do autor e sua intenção: contos curtos com uma história bem amarrada e um final marcante. A questão do final é sempre um dilema nos contos, que podem ter algo arrebatador ou algo que nos deixe pensativos. No caso deste livro, eles se alternam, o que – ao meu ver – torna a leitura ainda mais agradável.

Ainda sobre essa história de contextualização, achei legal que ele tem contos do ponto de vista de animais, mas sem serem fábula. Há também bastante uso de nomes indígenas. Aliás, me pergunto o que de belo foi perdido na tradução, porque tem trechos que a gente sente que tinha algo a mais ali. De qualquer forma, fica evidente o uso de regionalismos bem colocados. 

O último conto, A meninginte e sua sombra, é super intrigante. Ele mistura o absurdo com o verossímil de modo magistral. É chocante (e eu sei que aqui me repito) como o autor faz a gente se apaixonar e torcer pelos personagens em tão poucos parágrafos. Como será que ele faz isso? 

Quiroga é também um realista ao seu estilo. Não se detém em descrições de cenários. O que importa é a trama, quase tudo fica na imaginação do leitor. E há traços nos seus contos que já deixam claro o modernismo de seu tempo, veja por exemplo este trecho:
"E mais longe ainda porque – e eis o mais engraçado desta nossa história – ela está aqui, ao meu lado, lendo com a cabeça sobre a lapiseira o que escrevo. [...] Neste momento Maria Elvira me interrompe para dizer-me que a última linha escrita não é verdade: minha narração não está boa, está muito boa." (p. 186).
Quiroga, no fim das contas, ainda foi um escritor que viveu sob a proteção da remuneração do Estado (não no ramo da literatura, mas em outras funções). Ele só não tinha vida abastada porque não queria, mas podia dar se ao luxo de realizar empreitadas malucas. 

E aí eu fico aqui me perguntando: quantos escritores não se perdem pela falta de mecenas, sejam estes públicos ou privados? Quantos Quirogas não há escondidos América Latina afora, pelo Brasil afora, pelo Norte afora, por Roraima afora?

Não sei. Mas quero fazer de tudo para encontrá-los, porque, putz grila, uma arte boa dessa não pode ficar escondida nem perdida. Que Deus nos conceda criatividade e coragem para produzir o que é verdadeiramente bom.

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