quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Resenha - Good Omens

GAIMAN, Neil; PRATCHETT, Terry. Good omens: belas maldições. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.


Tá, cometi um pecado literário. Assisti a série na Amazon antes de ler o livro. Pra ser bem honesto (o confessionário só piora) eu nem sabia que era um livro, pensei que era só uma série muito bem escrita. Vamos à resenha, mas já adianto que vou finalizar esse texto com uma heresia maior do que vocês imaginam.

Pra começo de conversa, não tenho ideia como é que se escreve um livro em dupla e ainda assim ele mantém uma super unidade de estilo. Os caras eram realmente muito amigos ou muito bons em saber produzir o que é melhor para o material, afastando-se o suficiente do texto para que ela tenha uma homogeneidade própria.

Dentre os livros que leio, muitos deles são traduzidos, mas vocês pouco me ouvem falar de tradução. Isso geralmente ocorre porque ela cumpriu seu papel. São poucas as vezes que destaco algo dela (e, quando faço, é pra destacar algo ruim.) Mas aqui temos um caso especial..

O tradutor deu um show ao apropriar culturalmente várias expressões que traduzem com perfeição a essência dos personagens. Logo na primeira ou foi na segunda página ele me solta um "cabreiro". Mano, perfeito. E isso não aconteceu só no começo não, ele fez uso de várias expressões e regionalismos brasileiros que traduziram de um jeito incrível o significado e o estilo do livro.

A história é a história do mundo. Depois da Queda do homem (no jardim do Éden mesmo), já somos apresentados ao anjo Aziraphale e ao demônio Crowley, que estarão presentes em toda a história da humanidade até o fim do mundo. Este fim, na história, acontecerá em poucos dias. 

E os autores se debruçam sobre essa trama, incluindo aí o Anticristo (um menino de 11 anos), os Cavaleiros do Apocalipse (Guerra, Fome, Morte e Poluição – que assumiu o lugar da "Peste" quando essa se aposentou), a bruxa Agnes Nutter, sua descendente Anathema Device e o caçador de Bruxas Newt Pulsifer. Impressiona como todos estes personagens, todos!, e até alguns que não citei são muito essenciais para a trama como um todo. Um show de estrutura de livro.

O New York Times classificou essa obra como descendente direto do Guia do Mochileiro das Galáxias. Putz grila! Essa definição está perfeita! O estilo do livro traduz com perfeição o limite entre o absurdo e o verossímil e não ter medo de realmente mergulhar nesse caso para de lá extrair uma aventura fantástica.

Na verdade, ouso até dizer que Good Omens deu um passo além na direção da complexidade. Enquanto o Guia tinha uma narrativa mais linear, acompanhando Arthur Dent, aqui há uma narrativa complexa que não está focada só em um núcleo. É incrível a estrutura criada por estes micronúcleos de loucura (Anticristo, cavaleiros do apocalipse, caçadores de bruxa, o anjo e o demônio) que são na verdade nódulos com identidade própria!  

Conquanto não desafie a realidade como faz o Guia (até por que a temática era outra), é inegável que sua relação com o absurdo é muito bem construída e até, por que não?, plausível! E a gente percebe que Good Omens só não desafia mais a realidade pelo bem da unidade da trama. Porque, se quisesse, poderia facilmente e não seria inverossímil.

A divisão do livro não é em capítulos, mas em blocos de tempo. Cada parte, portanto, abriga toda a série de acontecimentos que ocorreram naquele dia, ou naquele bloco (como no primeiro "Onze anos atrás). E próximo do final, os blocos representam os últimos dias antes do fim do mundo ("Quinta-feira", "Sexta-feira", etc.).

Os autores não têm pena de usar advérbios de modo. Como o tom do livro é super informal e beirando o cômico-irônico com frequência, dá pra passar batido na maior parte. Só que tem vezes que não custava os autores terem dado uma freada e o excesso irrita. Por outro lado, esse estilo definitivamente rende boas risadas, temperadas com absurdo e espanto. O que, claro, as tornam ainda mais deliciosas.

Novamente preciso dizer que a trama é muito bem construída. No segundo terço do livro a narrativa desloca-se do eixo Aziraphale–Crowley para o Grupo de Crianças–Caçador–Bruxa com uma maestria estonteante. Você nem percebe a transição, de tão suave que ela é. Um uso magnífico das ferramentas literárias como poucas vezes eu vi.

O livro é uma espiral de acontecimentos que vai ficando cada vez mais intensa conforme se aproxima do fim. Excelente uso do "ticking clock" pra levar a história para frente e manter o leitor antenado. Eu já quase acho uma pena ter assistido a série antes e ler o livro.

Além de ter uma história que realmente captura o leitor, personagens super divertidos de conhecer e se relacionar, um ambiente construído com uma abordagem jovial e despojada, o livro também consegue abordar temas diferentes e bem interessantes. Começo com essa citação:
"Pode ser que ajude na compreensão das questões humanas ter uma noção clara de que a maioria dos grandes triunfos e tragédias da história é provocada não por pessoas sendo fundamentalmente boas ou más, mas por pessoas sendo fundamentalmente pessoas." (p. 34)
O livro aborda com precisão assustadora a questão da maldade humana. Tem gente – e muitos deles cristãos -- que acha que a maldade humana tem fonte em demônios ou no diabo. Enquanto parte disso pode até ser verdade, enganam-se ao subestimar a própria capacidade humana pa,ra fazer o que é mal. 

Meu amigo, não precisa de demônio pra ensinar o ser humano a fazer coisas terríveis contra o próprio ser humano. E, como falei, o livro é de uma precisão que até assusta. Em determinado momento do livro, este é o autor falando de Crowley, o demônio:
"[...] nada que ele pudesse bolar era metade tão maligno quanto o que eles bolavam por conta própria. [...] cada vez mais difícil encontrar algo de demoníaco a fazer que se destacasse no cenário atual de maldade generalizada." (p. 40-41)
Como vocês bem sabem, eu sou cristão, calvinista reformado, e posso dizer que o livro encontra-se no limite da heresia exagerada. Porque tem heresia, é claro, mas dá pra ler e aplicar o que diz em 1ª Tessalonicenses 5:21: "Julgai todas as coisas, retende o que é bom".

Os autores erram em achar que a grande Guerra é do Céu contra o Inferno, falhando aí no eixo, uma vez que a guerra é entre o Inferno e a Terra. Também erram na questão do livre arbítrio, mas acertam (imagino que sem querer) na "inefabilidade" do plano de Deus – ainda que, inegavelmente, isto seja algo que eles tentam constantemente botar em cheque.

Não obstante, é o que falei. Dá tranquilo pra ler e reter o que é bom. Porque, meu amigo, olha o que tem de coisa boa não é brincadeira. É uma leitura recomendadíssima e de certeza um livro que (no que depender de mim, pelo menos) nunca mais vai deixar de vez a minha estante.

Ah! Lembra que falei que terminaria esta resenha com uma heresia? Pois então aqui está. É uma heresia daquelas que podem me fazer ser excomungado. Mas não da igreja ou da religião, serei excomungado dos círculos literários (a pior das seitas!). A minha heresia é a seguinte: a série foi melhor que o livro.

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