quinta-feira, 3 de setembro de 2020

O prisioneiro - VII (O grande cisma)

 
            — Cara, estou começando a achar que não tem jeito.
            — Sinceramente, eu também já estou perdendo a esperança.
            Nós passeamos pelo blog, por esse festival de resenhas que quase ninguém lê, contos perdidos e até alguns poemas soltos. Estávamos desalentados.
            — Talvez tenha coisas das quais simplesmente não dê pra escapar — ele falou.
            Então comecei a lembrar. Lembrei de quando eu era feliz dentro do meu conto, quando eu podia simplesmente escrever minhas histórias dentro das minhas histórias, quando a vida era simples e eu não tinha que me preocupar com essas maluquices literárias.
            — A culpa disso é toda sua! — eu sentenciei, irritado.
            — Minha? — meu eu do futuro estava atônito. — Você preferia viver preso pra sempre naquela ilusão? Viver perdido naquele microcontos inúteis? 
            — Ora! E o que me importa? Hein? Eu era feliz! Eu estava bem. Eu não pedi por tudo isso, você que me trouxe pra cá e me arrastou sem eu pedir!
            Ele olhou pra mim com olhos incrédulos, a boca entreaberta. 
            — Você só pode estar de brincadeira — ele balançou a cabeça e riu com ironia. — E aqui estava eu achando que você tinha maturidade pra lidar com a realidade, Gabriel. E aqui estava eu (feito um besta, diga-se de passagem) tentando te ajudar.
            — Que ridículo — eu respondi, a raiva me dominando. — Você queria se ajudar! Você que sempre quis escapar de tudo isso, você que nos levou até o Gamal, você que implorou pelos segredos da viagem interliterária. E para quê, hein? Ainda estamos presos, seu imbecil! Ainda estamos no texto! Saímos do Instagram e do Facebook, mas cá estamos! Preso nesse maldito blog esquecido no canto mais remoto da internet. Parabéns, Gabriel. Queria sair daqueles microcontos? Parabéns. Estamos agora num conto. 
            Silêncio. Nós dois imóveis, encarando um ao outro. O ar estava quieto, parecia que todas as resenhas, contos, poemas e crônicas se calaram pra ouvir a nossa conversa. Será que eles também começavam a criar consciência de onde estavam? Será que nosso diálogo podia inspirá-los? Ah... mas a troco do quê? Eles só se veriam perdidos no mesmo vórtice em que nos metemos.
                Depois de um tempo, meu eu do futuro começou a mexer num relógio que tinha no pulso. Foi a primeira vez que notei que ele usava esse objeto. O relógio era um daqueles smartwatches da Xiaomi, cheio de comandos diferentes na tela. Enquanto fazia isso, ele falou comigo:
                — O que eu nunca te contei, Gabriel — sua voz era calma, ele não olhava para mim —, é que eu não precisava de nada disso. O que você se engana, meu caro, é que eu vim aqui por outro motivo que não fosse ajudar você. Cara, eu fico abismado que você não entenda. Eu sou você. Tudo que eu queria era evitar que você (que sou eu também) ficasse perdido, preso, prostrado naquele mundo de mentiras. 
                Ele finalmente terminou de mexer no relógio. Tirou do bolso um pequeno retângulo metálico e jogou no chão. O objeto caiu com um tilintar e o Gabriel do futuro olhou para mim:
                — Mas já que você deixou bem clara sua posição, não me resta outra saída — ele apertou um botão na lateral do relógio. De repente ele começou a brilhar, sua luz iluminava as palavras das resenhas, eu via reflexo dele nos outros personagens, eu vi que ele estava em cada pequeno texto que eu já escrevi. Ele continuou:
               — Eu podia ter ido embora a qualquer momento, eu ainda posso voltar para a minha dimensão literária por causa desse relógio aqui. E já que você não precisa de mim, eu vou embora. Esse transmissor que eu joguei aí no chão é uma viagem só de ida para sua dimensão original. Divirta-se nos seus microcontos. A verdade é que, assim como você, eu também já cansei. Passar bem.
             Então ele sumiu.



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