sábado, 28 de dezembro de 2019

Resenha - Oceanïc

SOUZA, Waldson. Oceanïc. Blumenau: Dame Blanche, 2019.


Senhoras e senhores, sejam bem-vindos à última resenha de 2019. Hoje nós vamos conhecer o primeiro livro do escritor brasiliense Waldson Souza, um cara que eu tive o privilégio de conhecer graças ao Esdras, um amigo em comum (ainda que nunca tenhamos nos encontrado pessoalmente!). Falo privilégio porque acho que os novos escritores brasileiros precisam estar juntos e sempre apoiando um ao outro. Waldson também foi um dos selecionados para as edições Faísca da Mafagafo.

Ah, só uma explicação: as citações que vocês estão vendo aqui estão destacando a "posição" em vez da "página". Isto acontece porque o livro foi lido em formato e-book (provavelmente e-pub) dentro do próprio aplicativo da Amazon. Estivesse em pdf talvez conseguisse apontar algo diferente, mas é o que temos e serve ao mesmo propósito.

Bom, tendo dito isto, é importante lembrar que não sou Mestre em Literatura, coisa que o Waldson é. Também convém ressaltar que mal tenho experiência como escritor. O que quero dizer é: isto aqui é só uma opinião de alguém que nem é lá tão qualificado assim. Mas chega de lenga-lenga. 

Ok, fui fisgado no prólogo! Pessoas que vivem nas costas (e dentro!) de animais marinhos gigantes (que são chamadas de "tartarugas" para fins de representação). Só por esta premissa já fiquei cativado. A metrópole Oceanïc é apenas uma de várias cidades em cima destes animais. Waldson já tinha citado essa premissa pra mim antes e ela é realmente muito boa. 

Falando diretamente de personagens, fiquei contente em reconhecer a Paula do conto que li, o qual, imagino eu, foi quem deu origem a tudo isso. Achei todos eles muito bem construídos, embora, lá na primeira parte, não sei até que ponto acho verossímil a reação de Rafael em se fingir de durão pra não parecer doente.

Digo isso porque tanto Rafael quanto Félix são betas, sempre tem outro personagem dominante na cena, o alfa (Jonas e Laura). Os principais narram tudo em primeira pessoa, mas eles nunca são o personagem que leva a narrativa pra frente. Além disso, parece haver uma carência nestes personagens, que não podem subsistir em si mesmos, dependentes de outros.

Alguns diálogos (mas só alguns) não me soam verossímeis. Não pelo conteúdo, mas pela forma. Acho difícil um "caminhoneiro" (porque é praticamente isso que é o personagem "Ramos") dizer algo do tipo "vou levá-lo." (posição 1046). E no caso da história da menina e o bilhete também. Qual foi a motivação? Que tipo de pessoa com seu emprego estável arriscaria tudo só por curiosidade? Achei pouco verossímil, não me convenceu.

Sobre questões de estilo e grafia, tem um modelo de frase que eu gosto bastante, já vi em outros autores, mas nunca lembro de usar. Uma maneira bem elegante de montar uma cena. É este aqui:
"Café. Leite. Pão de forma. Ovo. Sorriso. Laranja. Mãos. Iogurte. Olhos." (posição 323)
Por outro lado "Travessia do Limiar" (pensando nos moldes da "Jornada do Herói") achei meio clichê, especialmente a cena da sala com luz branca e talz. Tem alguns momentos de mais show e menos tell. Por exemplo, na seguinte descrição:
"Laura às vezes falava de um jeito meio egoísta, como se a felicidade dela fosse mais importante que os sentimentos da própria mãe." (posição 709)
Ah, e tudo bem que o passado de "remoer" é "remoo"; mas que é uma palavra bem feia isso é, kkkkk. Desculpa, tenho frescura com algumas palavras. Vivo refraseando contos por conta disso. Mas, de maneira geral, foram poucas as coisas que vi neste quesito. Um ou outro erro de grafia, mas coisa pequena, daquelas que sempre passam mesmo.

O livro me trouxe algumas reflexões bem interessantes. E acho que isto é o mais importante a se falar sobre tudo que li. A primeira está na seguinte citação:
"Se distanciar da realidade, mesmo que por alguns momentos, às vezes, é a única forma de continuar sobrevivendo." (posição 120)
Tenho um conflito interno quanto a esta premissa porque boa parte de mim concorda com ela e a outra parte teme o quanto eu posso me entregar a isso. Pra falar a verdade, de maneira geral, esta é minha abordagem sobre a arte. O que eu mais gosto em livros, jogos, músicas, etc, é a capacidade de me fazer imergir. Por exemplo, não quero jogar no PC pra ter mais problemas, quero relaxar. Acho que o grande segredo da questão é saber se distanciar o suficiente para não cair no absenteísmo.

E isto puxa uma segundo ponto. Sobre a fuga de Pölen, tem algo que até hoje me incomoda bastante: até que ponto a estabilidade com o que é simples pode ser ruim? Existe algo inato em querer crescer, melhorar, mudar... mas até que ponto realmente são necessárias mudanças? Na fuga de Felix, esta cena me trouxe essa reflexão à tona:
"Meu irmão mais novo foi o primeiro que me abraçou, ele era o que mais me entendia. Em seguida vieram meus pais e ficamos ali os quatro, mas não por muito tempo, eu poderia acabar desistindo se continuasse sentindo aquele abraço." (posição 916)
Estreitamente ligado a isto, é interessante notar que em todo o livro, o "trabalho" é visto pelos personagens como algo ruim, uma rotina, algo do qual eles querem se livrar, uma espécie de escravidão. E também é uma constante que os personagens querem "ir para algum lugar". Há um descontentamento com o presente, um eterno desejo de fuga, um escapismo.

E neste ponto, filosoficamente, não posso discordar mais. O trabalho é um elemento essencial do ser humano, ele não é necessariamente algo ruim. Pelo contrário, é algo bom e necessário. E veja que esta questão do trabalho, no livro, está fortemente ligada à "fuga". Mas fugir pra onde? Ou melhor, fugir do quê? Do trabalho? Mas isto todos os personagens encontraram, seja lá pra onde fossem.

Esse determinismo está presente de maneira indireta em algumas partes do livro. Veja bem, na citação abaixo, não sei até que ponto isto foi fala do autor ou do personagem, mas está aí uma grande verdade sobre Deus e Seu eterno decreto: 
"Foi por acaso. Mas qual é a diferença entre destino e acaso? Tudo está fora do nosso controle. Sempre estamos sujeitos a forças desconhecidas e maiores que nós." (posição 1016)
Estes diversos simbolismos que o livro traz são um forte indicador da sua densidade e qualidade. De modo geral, a estrutura é excelente, muito bem construída mesmo.  romance é bem delineado. A gente não fica confuso com a narrativa e o autor soube carregar o texto pra frente. A alternância das partes com os personagens também é bem construída. Consegue fazer a narrativa caminhar, mas de outro ponto de vista. 

Aliás, utilizar a exata mesma cena no final, mas do ponto de vista da outra pessoa, achei uma sacada fantástica. Ah, e o grande encontro dos personagens tecidos em diferentes momentos da trama é muito bem construído e ocorre de maneira natural. Excelente uso do enredo.

Acho que a única coisa que me incomodou mesmo, e é algo que perpassa toda a estrutura é que um livro tem uma premissa tão boa, mas é permeado de romances (sejam eles LGBT ou héteros) que, em vários momentos, achei desnecessários. Se eu quisesse ler livro de amor teria comprado um desse. Eu queria ficção científica. 

Tudo bem que as coisas se misturam, mas achei meio forçado, especialmente porque temos mais relatos sobre questões amorosas do que necessariamente ficção científica. Aliás, a ficção científica vem com força vem com força mesmo só na Parte IV. Aquele melodrama quando Jonas encontra Rafael no final me soou exagerado e pouco verossímil. No fundo, talvez tenha sido mais uma questão de gosto e expectativa da minha parte.

O meu veredito é: o livro TEM QUE TER CONTINUAÇÃO! O final ficou muito bom e deixou aquele gostinho de quero mais (o que King e Cassill chamam de "ressonância" do texto). A premissa é muito boa pra ficar só em um livro. 

Por fim, se eu comparar com "Oceanïc" com "Personagens não bíblicos e suas histórias", vejo como estou a anos-luz de distância de algo com essa qualidade. Não sei se consigo escrever um romance com essa coesão. Meu caminho ainda é estudar, pra, quem sabe, conseguir alcançar o patamar de Waldson Souza, um nome que duvido que será breve na literatura nacional.

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