terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Recados

13 de agosto de 1845. Boa Vista, futura Roraima, Brasil. Terra #3.

Minha Querida,

Hoje finalmente consegui o que faltava para completarmos a Passagem. Como vão as coisas por aí? Não vejo a hora de te abraçar. Ontem de manhã, o governo local finalmente deu sinais de que vai se movimentar pra fazer alguma coisa. Aliás, eu tinha que ser enviado pra esse fim de mundo mesmo? Odeio esse lugar. Ah, não vejo a hora de te encontrar.

Do seu,

Querido.

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67 de Nefertiti, ano 186 do Quarto Império, antiga Cairo, Egito. Terra #24.

Meu Querido,

Sua carta chegou bem a tempo. Também estamos prestes a abrir a Passagem pelo nosso lado. Não se esqueça de me procurar no Carvalho do Meio. Não tenho muito tempo para escrever, só posso torcer para que esta carta o alcance antes de eu partir. Nessa semana devem chegar os últimos Viajantes pra nos auxiliar. Estamos correndo sério risco de nos envolver na guerra local se não sairmos daqui logo, os bioscanners deles são bem eficientes... Ah, você reclama do seu “fim de mundo”? Hunf, nem queira saber do meu. Mas eu divago, desculpe, só quero te encontrar logo também.

Da sua,

Querida.

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08 de setembro de 1845. Boa Vista, futura Roraima, Brasil. Terra #3.

Minha Querida,

Nossos cálculos deram errado. Pensávamos que os locais nos considerariam deuses, que nos adorariam e que teríamos a cooperação deles. Ledo engano. Eles nos chamam de demônios e têm invocado seres multidimensionais contra nós. Jamais imaginei que essa tecnologia fosse acessível a eles, talvez nem entendam o que fazem. O problema é que há seres poderosos por aqui, estas florestas não são muito seguras. Precisamos agir rápido. Sua carta chegou a tempo, mas temo que eu não vá encontrar com você no Carvalho do Meio, por favor me informe outro ponto de referência. Posso apenas torcer para que esta carta chegue antes de você partir. Por favor, me espere, eu chegarei para ficar junto a ti.

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39 de janeiro (ano?), Planície das Nuvens, espaço aéreo sobre a antiga São Paulo, antigo Brasil. Terra #16.

Meu Querido,

Acabei de sair da Passagem, fiz questão de ser a última a transitar, aguardando sua carta. Ainda bem que o fiz. Nós transitamos bem a tempo. O Sendeiro Brilhante adentrava nosso esconderijo no exato momento em que a Passagem fechou. Infelizmente, tivemos que deixar boa parte dos suprimentos para trás, e no lugar onde estamos não vai ser fácil conseguir novos: ainda há muita radiação aqui. A boa notícia é que estamos mais perto. Como acabei de chegar, não sei o ano, mas os sensores indicam que o espaço-tempo entre nós encurtou, e nossa comunicação deve melhorar. Sinto muito por saber que enfrenta dificuldades com os nativos, mas aguente firme, em breve nos encontraremos. Vamos tentar nos encontrar no Carvalho do Meio de novo, acho que dá tempo. Te aguardo, pra sempre.

Da sua,

Querida.

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27 de setembro de 1845. Boa Vista, futura Roraima, Brasil. Terra #2.

Minha Querida,

Transitei. Consegui. Os seres multidimensionais que te falei? Era pior do que eu imaginava. Nossos sensores captaram uma dobra até a sexta dimensão, estávamos desesperados. Tivemos que fazer todo o possível para abrir a Passagem e fugir o quanto antes. Por favor não nos julgue, às vezes sacrifícios têm de ser feitos para o bem do progresso. Nossa transição foi incompleta, porém: conseguimos dobrar apenas o tempo, continuamos no mesmo lugar. E isso não é bom. No momento, estamos escondidos dos locais, porque tememos que eles invoquem os seres de novo. Por favor venha logo. 

Do seu,

Querido.

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09 de outubro de 1836, Rio de Janeiro, Brasil. Terra #5.

Meu Querido,

Amor da minha vida, estamos mais perto do que nunca. Conseguimos transitar graças aos reforços dos Viajantes, que também precisaram abrir uma dobra. Mas estou preocupada. De que seres multidimensionais falas? Não há muitos destes por aí, e você é o que melhor os conhece! O que pode haver de tão terrível para te assustar? Hoje recebi alguns relatos sobre seres dimensionais que habitam as florestas, mas não me pareceu nada demais, pergunto-me até se não são apenas os mitos e fábulas dos povos incultos. Ontem um Viajante me disse que não devo desprezar conhecimentos que não posso compreender. Argh, odeio esses tolos. Por favor, venha logo.

Da sua,

Querida.

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16 de dezembro de 2019. Boa Vista, Roraima, Brasil. Terra #1.

Minha Querida,

Não deu certo. Esta é a última correspondência que você receberá de mim. Por favor não venha e nem me procure nunca mais. Os seres multidimensionais protegem segredos escondidos que ninguém, nem mesmo você, teria capacidade para compreender. Os povos que habitam aqui, longe de serem incultos ou atrasados, em muito superam o respeito e o entendimento que nós ainda sonhamos ter. Não venha. Os espíritos me alertaram de que este é um espaço sagrado. Eles me contactaram diretamente, por piedade, para nos poupar, porque, em breve, os próprios locais se refugiarão e desaparecerão para sempre. A Terra ficará entregue aos homens que, insaciáveis, terminarão de destruir aquilo de que precisam. Somos tolos, minha querida. Tolos. Quando esta Terra desaparecer, então não haverá mais nada para buscar, e dobra nenhuma vai mudar esse fato. É tudo uma questão de tempo. Ah, e falando em tempo, perdoe-me, mas vou lançar nossa correspondência no espaço-tempo, torcendo para que alguém a encontre. Não me julgue, por favor, eu sei que vou expor você e todo o nosso trabalho. Talvez nem acreditem em nós; acharão, no mínimo, um conto diferente. Mas eu sinceramente espero que nos levem a sério. A hora de mudar o curso é hoje, não amanhã. Mude seu curso e altere a história. Serei seu pra sempre. Te amo.

Do seu,

Querido.


Conto publicado originalmente na newsletter "Faísca", Temporada 1 — Episódio 25, da Revista Mafagafo.

2 comentários:

Edgar Borges disse...

Show. Finalmente arranjei tempo para ler o conto. Curti

Gabriel Alencar disse...

Muito obrigado, Edgar!

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