sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Resenha - Illidan

KING, William. Illidan: World of Warcraft, a Novel. New York: Del Rey, 2016.


Este aqui foi o dito cujo que interrompeu as Crônicas de Nárnia. Estava eu aflito pela falta de leitura quando entro numa livraria em Brasília. Desesperado por qualquer coisa remotamente interessante, acabei topando com um livro do meu herói favorito (será herói mesmo?) do mundo de Warcraft -- jogo que fez parte da minha adolescência.

Illidan, o Matador de Demônios, é um dos mais poderosos Elfos da Noite que já existiu. Ele tinha uma simples missão: destruir uma fonte corrompida pelo mal. Porém, em vez disso, ele absorveu aquele poder terrível, tornando-se ele próprio parte daquilo que ele mais odiava. Mais tarde, na história, ele trai os Elfos ao aliar-se com os próprios demônios, para, então, trair os demônios também e seguir seu próprio coração. Illidan passa a ser conhecido por outro nome: o Traidor.

O livro é o estilo clássico da fantasia: elfos, orcs, magias, armas místicas, seres impressionantes, guerras, exércitos, conspirações. Tudo que um bom livro precisa ter. A edição simples, típica do estilo paperback, não deixou a desejar. A leitura flui bem, embora os capítulos algumas vezes não tenham um gancho tão preciso para o próximo. Longe de ser um problema, apenas convida a uma leitura sem pressa.

Interessante notar que, apesar do título ser bem claro em apontar o personagem principal da história, houve mais de um momento em que me perguntei se ele era realmente o destaque. Acho que a jornada de Maiev Shadowsong, a perseguidora de Illidan, é o que move a trama para frente por quase 60% da trama. E é a transformação do elfo Vandel que traz todo o horror do mundo dos demônios e seu poder à tona, engrossando o livro em profundidade.

Sobre a leitura, é interessante como ler em outro idioma traz à tona algumas peculiaridades que dificilmente veríamos. Por exemplo, o autor tem um apreço pelo verbo "gall" ou "irritar". Não há razão particular nenhuma para isso, se não o próprio estilo do autor. No meio do livro, a história ganha um ritmo alucinante que te obriga a ficar vidrado nas páginas.

Interessante, no caso dos personagens, que o autor sobre desenvolvê-los muito bem, ao ponto de eu notar algumas coisas antes mesmo de eles deixá-las claras no texto. O mais óbvio é o paralelo entre Illidan e Maiev; esta última (que deveria ser o lado "bom" da história, uma vez que luta por justiça e pela captura do inimigo), acaba se tornando uma imagem espelhada do próprio Illidan, movida pelo ódio e desejo de vingança.

O dilema de Vandel, por sua vez, tem uma tonalidade bem bíblica. No afã da vingança, ele próprio se torna meio demônio e, pior, passa a conviver com um que habita dentro dele. Enquanto usa poder do monstro dentro dele, também é vulnerável às tentações e sugestões que o monstro lhe oferece todo dia. Este demônio poderia ser facilmente se chamar "pecado".

E não deixa de ser interessante como Illidan é supersticioso. Bom, não sei até que ponto a magia dele realmente teria a ver com isso. Mas ele escolhe grupos baseados em numerologia e até mesmo interpreta sinais como "bons presságios" para seus planos malignos. É o que Calvino já dizia: o sensus divinatis habita em todos.

O próprio Illidan se revelou um personagem diferente do que eu imaginava. Ele é um grande e incrível estrategista, com uma mente brilhante e um dos magos mais poderosos que já existiram. Mas eu o imaginava um pouco mais cruel, talvez mais mesquinho (afinal foram 10 mil anos de emprisionamento "injusto"). Mas o encontrei estranhamente equilibrado e centrado. Aliás, sequer vi requintes profundos de maldade nos seus atos -- ainda que seus planos fossem cruéis.

Agora se for pra ser bem sincero, já do meio pro fim do livro a gente fica é torcendo para que os planos de Illidan funcionem. O personagem ganha profundidade nessa parte do livro e a gente acredita na lógica do vilão: ele não está fazendo o mal per si, mas visa um objetivo maior e mais sublime. A premissa é, no mínimo, envolvente.

Um amigo que joga World of Warcraft (WOW) disse que a história foi um fiasco, que estragaram tudo -- imagino que seja por causa desta citação aí (que já é spoiler o suficiente): 
"Whatever you were, whatever you are, a champion of Light is what you will be." (p. 291)
Mas eu, que não jogo WOW, achei muito boa. É bem escrita, envolvente e tem tudo que uma boa fantasia precisa para cativar o leitor. O clímax é muito bem construído, aponta para a maturidade do escritor em saber construir sem pressa, amarrando bem as pontas soltas.

Todo bom livro, segundo Stephen King, tem que ter uma segunda camada por debaixo do óbvio. Esse simbolismo não deve ser forçado, mas uma consequência natural de uma história bem contada. No caso deste livro, em determinado momento, o líder draenei Akama tem que enfrentar uma sombra materializada do próprio mal em sua alma. Veja que interessante e profundo:
He gazed at it with something like wonder. How many in their lives got to look upon everything that was evil in themselvesw how many confronted all the darkness within?
[...] 

He had always thought himself as humble, but looking on this monster, he saw that humility had been a mask he wore, all the better to fool thos who had followed him." (p. 318)
Nota para mim mesmo: às vezes no afã de criar uma grande estrutura narrativa, eu me deixo levar por diferentes personagens, e isso atrapalha o ritmo do texto e o timing da trama. O autor não se deixa levar, encadeando as cenas com maestria, pra que a gente não perca o pique da leitura. Isto deve ser lembrado e aplicado quando possível. Creio ser uma das marcas de um bom escritor.

Sobre o final do livro: eu quase morri. O livro termina num cliffhanger. É de matar qualquer um. Depois que entendi que ele acompanha a lógica das próprias expansões do jogo que o origina. Não tem jeito. Vou ter que continuar a ler essa história. É absurdamente boa. Livro mais do que recomendado, autor mais do que recomendado. Recomendado.

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