Há dez anos ele vem para o mesmo bar na esperança de encontrá-la de novo. Todo dia vinte e cinco do mês, lá está ele. Tinha que ser nesse dia, porque era aniversário dela. Só que ele esquecera o mês. Não importava, ele poderia esperar.
– Boa noite, Dr. Haroldo. O de sempre?
– Hoje um duplo, por favor.
Chamavam-no “doutor”, não sabia o porquê. Não era advogado, não era médico, não tinha doutorado, nem se vestia tão bem assim. Mas sempre fora conhecido por “doutor”. Verdade seja dita: ele gostava, era bom o reconhecimento – mesmo que não merecido.
Olhou ansioso para a entrada do bar, entrou uma senhora quase idosa, acompanhada de outra. Ficou desconfiado. Detestava que gente velha o abordasse, pensava que isto poderia denegrir sua imagem. Aliás! Agora sim, este é âmago da questão: sua imagem, não havia nada mais valioso. Pense só você, conheci o homem durante tanto tempo e só agora começo a compreendê-lo.
O barman trouxe a bebida. Haroldo pegou o copo com as mãos mas apenas ficou balançando o líquido amarronzado, sem levá-lo à boca. A senhora que entrou falava alto, também não gostava de gente que falava alto. Ela e amiga conversavam, sentadas numa mesa próxima ao balcão:
– Então, Cassandra, como foi sua viagem?
– Você nem acreditaria! Encontrei com o Fernando.
– Nossa! E como vai ele?
– Ah, parecia bem, não quis falar muita coisa. Mas aí encontrei com a esposa dele depois, ela me disse que ele está com depressão.
– Hum... mas isso não é nada demais, né? É só uma fase.
– Pois é, também acho.
Haroldo ouviu a conversa por alto. "Depressão". Ele sabia que não era só uma fase. Enfrenta este problema há muitos anos já, tem dias que são mais fáceis. Outros nem tanto. Já tentou o suicídio duas vezes, numa delas quase conseguiu. Mas ninguém desconfiava.
Ele era o “doutor” na empresa, todos lhe tratavam com respeito. Era contador, mas trabalhava na gerência há muito tempo, o chefe não confiava em mais ninguém. Haroldo gostava do respeito, tornava-lhe mais vaidoso. Em casa, morava sozinho. Bonito apartamento, tudo novo – ele detestava coisa velha.
Em outubro de 72 ele perdeu a mãezinha. Pobre criatura. Analfabeta, casou por obrigação com um homem que entendia que ela deveria ser sua empregada e ainda lhe satisfazer os caprichos. Para a sorte (ou não) da moça, o homem não viveu muito tempo, saiu numa viagem de serviço e não voltou mais. Morreu, diz-se. Diz-se.
Hoje, com 45 anos, Haroldo pensa que foi lá que tudo começou. Era-lhe mais confortável deixar os sentimentos guardados. Satisfazia sua necessidade por mulher com o dinheiro e a de amigos com o rádio, depois com a televisão, e por fim com a internet. Muito eventualmente um livro, mas nunca terminava.
Balançou o copo, não bebeu nada. Algumas pessoas chegavam no bar, nada dela. As senhoras ao lado continuavam sua conversa. O barman ligou a televisão, jogo do Barça. “Nada demais”, pensou Haroldo. Detestava os estrangeiros, e mais ainda os brasileiros que denegriam o Brasil. Amava a pátria, mas tinha sérias dúvidas se a recíproca era verdadeira.
Talvez a pátria se sentisse traída, na verdade, porque contava com um admirador tão ferrenho, mas tinha dúvidas quanto a sua lealdade. Isto porque o homem se dizia tão patriótico, mas seu celular era de Taiwan, a camisa era importada da Itália (ele fazia questão), o jeans sabe-se lá de onde, os óculos de grife brasileiros é que não eram. Talvez a pátria também o amasse, mas não sabia se a recíproca era verdadeira.
– Mas tu não sabes que a Gertrudes foi traída?
– Mas também pudera né, a pobre se chama “Gertrudes”!
– Ô Cassandra, mas ela é gente boa.
– Pois é, mulher, mas homem não pensa assim né?
Haroldo captava trechos da conversa das duas senhoras. Fingindo-se ensimesmado, na verdade não encontrava nada dentro de si. Fugia de seus vazios internos, deslocava-se ao máximo para o exterior, temendo e tremendo com o que encontraria em seu interior quando finalmente tivesse que lidar com ele.
Porque essa hora sempre chegava.
Ele saía cedo de casa, chegava cedo na empresa. Trabalhava bem. Almoçava num restaurante próximo. De noite era que se dava ao luxo de fazer alguma coisa diferente. Não gostava de cinema, não gostava de teatro. Gostava de tomar uma de vez em quando. Mas nem sempre. Desconfiava que era uma necessidade interior de buscar contato social, só desconfiava. Foi numa dessas que conheceu ela.
Devia ter seus quase trinta anos, não tinha corpo escultural nem formosura que a destacasse. Mas aqueles olhos. Eles olharam para Haroldo e pareciam encontrar o que estava dentro. Haroldo lembra como ficou arisco, tentando ao máximo desviar-se da mirada que insistia em encontrá-lo. Como ímã, ele mesmo não conseguia evitar.
Ela entrou naquele mesmo bar e sentou-se numa mesa. Pediu apenas um copo d'água pra beber e ficava olhando pro relógio. “Esperando alguém, na certa”, pensou Haroldo naquele dia, decepcionado, mas, ao mesmo tempo, satisfeito em saber que ali não haveria futuro – um prazer misterioso que ele cultivava secretamente.
Porém ninguém chegou. Ele a olhava de canto, esperando para ver o que aconteceria. “Como era direta”, lembrou-se. Foi ela mesma quem tomou a iniciativa: após um tempo esperando, levantou-se da mesa e sentou-se ao lado de Haroldo, no bar. Haroldo nervoso, apenas fez um meneio com a cabeça.
Ele não tem a menor ideia como foi que começaram a conversar. Não lembra quem falou o quê, mal lembra do assunto. Porém recorda claramente de algo: era seu aniversário, e ela ficou de encontrar uma amiga ali para comemorarem juntas. Morava sozinha, natural de Minas Gerais, estava ali procurando emprego.
O que tinha ela de diferente, que conseguira arrancar tanta coisa dele naquele dia? Ele mesmo não sabia dizer. Talvez tivessem sido aqueles olhos. Conversaram amenidades, ele falou tanto que ficou surpreso ser capaz de tal coisa. Em determinado momento, ciente de sua tagarelice, emborcou um copo e ficou calado, envergonhado. Ela, ao contrário, o incentivava.
Mas ela foi embora. Trocaram números de telefone, mas ele perdeu o dela, deve ter caído do bolso quando tirou as chaves em algum lugar; não seria primeira vez que ele perderia coisas assim. Chateado consigo mesmo, passou os próximos dias, irritado, tomando um pouco mais do que deveria.
Foi numa dessas que tentou a primeira vez o suicídio. Olhou para um cinto, amarrou-o em volta do pescoço, mas não teve coragem. Passada a crise, resolveu que voltaria àquele mesmo bar e esperaria que ela aparecesse de novo. Mas nada.
O tempo foi passando. Ir para o bar se tornara um hábito e, desconfiava ele (só desconfiava) era o que ainda lhe mantinha preso ao fio da mente sã. A esperança de reencontrá-la e ao mesmo tempo a decepção de nunca ver isso cumprido nutria nele o sentimento misterioso de alegria em falhar.
– Cassandra, mas vamos falar sério.
– Diga.
– Tu chegou a falar com o Francisco sobre aquele assunto?
– Hum... Olha... falei...
– Que cara é essa, Cassandra?
– Vou te falar logo: ele não quer fazer negócio.
– Ah, não acredito! Mas por quê?
– Ele disse que tem outras propostas e...
“Conversas fúteis”, pensava Haroldo. Gostava dessa palavra “fúteis” e sempre que podia fazia uso dela. Pena que não tinha pra quem falar. Era sozinho mesmo. Olhou para o relógio: já iam dar onze horas. Olhou para a entrada do bar novamente, com ainda um fiozinho de esperança para romper.
Nada dela. “É, hoje não foi o dia”. Jogou uma nota de cinquenta no bar, o barman agradeceu e viu o “doutor” se levantar pesadamente do banco pequeno demais para aquele corpanzil flácido. Ele trabalhava naquele bar há um bom tempo, foi seu primeiro emprego aos dezoito anos e foi ficando. No começo não ligava muito para os clientes, gostava de ganhar dinheiro, mas depois que viu que esta não seria sua realidade, satisfazia-se em ler as histórias das pessoas em suas faces.
Foi numa dessas que viu Haroldo entrar de vez em quando no bar, pedia sempre uma cervejinha, ia ficando por ali. Lançava olhares lânguidos para a televisão, não falava com ninguém, não parecia esperar por ninguém. A princípio não ligou muito pra isso. Chamou-o “doutor” uma vez apenas por acidente e o homem gostou, dava-lhe uma gorjeta generosa. Foi deixando acontecer.
Hoje ele acha que fez mal em apiedar-se do homem, melhor teria sido mesmo se tivesse só feito seu trabalho. Mas tinha coração mole, ô diacho! Teve uma ideia: contratou uma atriz pra conversar com ele um dia, só pra ver o que aconteceria. Era uma amiga sua de faculdade, já tinham dormido juntos algumas vezes e ela estava precisando descolar uma graninha. Resolveu a questão.
Agora lavando o copo que Haroldo deixou no balcão, ele pensava que jamais poderia imaginar que dez anos depois o mesmo homem ainda estaria lá. Pensou mais de uma vez em dar-lhe o telefone mesmo da moça, só para que ele pudesse seguir em frente. Mas era cinquentinha toda vez que ele vinha...
Haroldo pegou o metrô, dentro de pouco estava em casa. Abriu a porta, acendeu a lâmpada, jogou a chave na cestinha junto com outras. O silêncio. Este era o pior. Às vezes pensava que se morasse num lugar mais “popular” talvez fosse melhor, daria pra ouvir o barulho dos vizinhos, teria com quem reclamar. Mas queria vida boa, os vizinhos eram tranquilos, cumprimentos no corredor, e só.
Talvez se tivesse alguém pra conversar as coisas tivessem sido diferentes. Ele sempre gostou de ter aquele sentimento corroendo-lhe por dentro, alimentava-se dele. Mal sabia que na verdade, neste caso, a recíproca era verdadeira. Aquele sentimento mau se alimentava dele, até que não havia mais nada para consumir.
Neste nada, Haroldo percebeu que podia fazer o que deveria ser feito. O inimigo sorrateiro venceu; na verdade, Haroldo nem sabia se estava lutando, ou se algum dia lutou, mas, no fundo, tinha certeza que mesmo que quisesse, não conseguiria lutar sozinho. Talvez se tivesse alguém para conversar.
Foi no apartamento mesmo, no silêncio.
Publicado originalmente na 12ª edição da Revista Avessa, 2016, p. 58-62.
Publicado originalmente na 12ª edição da Revista Avessa, 2016, p. 58-62.
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