quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Crônicas do Cotidiano - I

A vida é uma viagem mesmo, né? Cheguei na rodoviária meio esbaforido. Verdade seja dita não gosto de viajar no aperreio. Gosto das coisas com calma, planejadas, estudadas. Mas dá pra ser assim sempre? Nem nas viagens nem na vida.

A rodoviária estava menor do que eu lembrava, pegamos os bilhetes da passagem e caminhamos pelo saguão quente. Acho que era o calor humano. Olhares cansados em meio a rostos sorridentes, abraços apertados e corpos em movimento. Os sorrisos mudam muita coisa.

Meu pai nos deu carona e nos acompanhou até a hora que entramos no ônibus. Lembrei da infância quando fazíamos o mesmo quando ele ou minha mãe iam em viagem. Que coragem deles em encarar essa estrada maluca quase todo ano.

A fila pra entrar no ônibus estava grande. Gente se empanturrando pra colocar as malas no bagageiro e eu só querendo subir pro meu assento. O motorista que coletava os bilhetes tinha a fronte suada. Conferia os bilhetes, nomes e rostos.

Mas um sorriso muda muita coisa. Quando minha esposa sorriu para ele e desejou um "Boa noite!", há realmente poucas pessoas que permaneceriam incólumes. A vida é uma viagem mesmo.

Ao subir, que grata surpresa ao ver que nossos assentos eram os primeiros, bem na frente, de cara para a estrada, separados apenas por um vidro. Do meu ponto de vista, um tremendo privilégio. Não tenho outro assento na frente para se reclinar sobre mim e ainda ganho o presente da bela vista.

E da viagem ou da vida, o que mais levamos senão as paisagens? Mas que paisagens há numa viagem a noite? Há senão a escuridão e o farol que ilumina, que desbrava as trevas e revela o caminho a seguir. Nem a chuva o impede.

E a noite se revela viva, cheia de cores e nuances. Há as marcas que mostram o caminho que devemos seguir e, bem interessante, também as que não devemos seguir.

Enquanto os faróis do ônibus revelam o que há fora, os faróis e luzes de outros carros ou casas revelam o meu próprio transporte. Encarando a noite pelo vidro à frente do meu assento, quando sou confrontado com o farol dos outros é que são reveladas as gotas da chuva escorrendo, correndo e fugindo para adiante de mim, como para liberar a vista ("Vai desculpando, doutor, só estou de passagem"); revela as sujeiras que eu não via, e as que eu ignorava. A vida é mesmo uma grande viagem.

As pernas, folgadas, descansam sobre o batente à frente, indiferentes ao perigo, privilegiam o conforto. Que conforto há quando é permeado pela insegurança? E minha mente se remete à minha casa e meus bens e fico com medo de perdê-los. Por quê? Não sempre tive tudo que preciso e muito mais? Nas duas vezes que minha casa foi assaltada, naquela que estávamos eu e minha esposa dentro dela, não foi o mais precioso poupado? Tanto, tanto, tanto, e o coração insiste em focar em coisas de segunda categoria. Ecos de uma quase ingratidão.

E a noite segue, assim como segue a vida, e a viagem. Há outro ônibus à nossa frente e não é seguro ultrapassá-lo, a chuva ainda fustiga o vidro, a estrada, o lavrado. A princípio o companheiro de estrada nos impede de correr mais rápido. Mas, por outro lado, não é muito melhor ir aos lugares quando se tem alguém com quem compartilhar?

E agora que a vejo dormindo ao meu lado também não consigo evitar perceber o quanto mudou minha percepção de viajar. Sozinho é bom, é livre, é novo. Mas não chega nem perto de viajar compartilhando tudo isso. Nem perto.

Dancem luzes, dancem, corram as gotas, derramem-se letras em lirismo, pulse coração ouvindo a música que vai para a cabeça pelos fones, descansem os olhos e a mente, porque ainda tem chão pela frente e isso leva tempo. A vida é uma viagem mesmo, não é?


Crônicas do cotidiano. Gabriel Alencar. Publicado originalmente no Facebook em 28/12/2018.

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