Seu Afonso olhava pro rio da sacada de sua janela. Era o mesmo rio de sempre, mas ele não era. As pernas bambas, os cabelos brancos e a bengala horrorosa que ele odiava. A cadeira de balanço de sua mãe no mesmo lugar e agora era ele que a ocupava e balançava-se, olhando o tempo e a vida na rua lá embaixo. E o rio parecia sorrir.
Ele sentiu vontade de ir ao banheiro. Ah, como detestava esses momentos. Algo tão banal para o ser humano, para ele, uma luta contra seu próprio corpo. Recusando, com as poucas forças que ainda tinha, quaisquer sugestões dos filhos em usar fraldas, e agarrando-se a essa resolução, pegou a maldita bengala e começou a tentar se levantar.
Tudo tremia. Os cabelos brancos eram balançados pelo vento, até os óculos tremiam. Ao longe um navio berrou. “Que idiotas! Porque não fazem silêncio? Não veem que já são seis da tarde?”, e tremia, e tremia. E quando finalmente conseguiu levantar-se da cadeira, movia-se vagarosamente, um passo de cada vez, na direção do seu quarto.
Lá em baixo, um vendedor de pipoca empurrava seu carrinho na direção da Orla, onde turistas logo mais estariam reunidos e ele faria suas vendas. Mas Cláudio não era pipoqueiro, era um policial, sob disfarce. A missão ali nos arredores da Orla de Santarém era investigar a presença de um perigoso traficante que escoava cocaína para a Europa por meio de barcos. E ali estava ele, observando, esperando pra ver se acontecia alguma coisa. Sua primeira missão sozinho.
Já havia três meses que todo dia aquela era sua rotina, precisava manter as aparências. Em casa a esposa apenas sabia que ele estava numa missão importante. Letícia às vezes se perguntava porque aceitara uma vida assim. E Cláudio sabia disso. Empurrava o carrinho, olhava para a Orla, e sabia disso. E o rio corria tranquilo, parecia sonhar.
Seu Afonso finalmente conseguiu entrar no quarto, foi em direção ao banheiro. Passando pelo lado da cama, viu na escrivaninha antiga alguns papéis jogados e amassados. Rascunhos de seu último poema, que nunca saiu da cabeça. Mas agora ele não pode ir lá para ver isso, precisa ir ao banheiro. E treme, e treme. E anda, bem devagar.
No prédio ao lado, Ademir corria de um lado para o outro, fugindo da mãe. O menino não queria tomar banho.
– Ademir, eu não vou falar de novo! – ela disse, com dedo em riste. O menino parou, sabia o que o gesto significava. Deu uma risadinha de leve e tensionou as pernas. A mãe arregalou os olhos e disse – Olha! Ei!
Ademir relaxou o corpo, ele sabia o limite da paciência da mãe. E estava quase lá. Correu na direção da mãe e abraçou sua perna, dando uma gargalhada. A mãe, rendida pela atitude do garoto, não teve escolha se não sorrir e levar o pequeno para o banho, insatisfeita consigo mesma por não ter mantido a postura autoritária.
Cláudio segurava firme na barra de ferro do carrinho, tentado se aproximar rapidamente da Orla. Viu o momento em que o traficante desceu as escadas de madeira em direção a um barco pequeno. No começo da noite a movimentação na Orla era grande. Cláudio levou a mão à calça, como se para arrumar, mas, na verdade, era pra sentir o frio coldre da arma. Ele esperou até que terminassem tudo e seguiu o traficante, foi tudo muito rápido. Naquela noite ia sondar, fingir que queria a droga também.
E no chuveiro o pequeno Ademir se contorcia:
– A água tá muito fria!
– Fica quieto, menino. Senão vai ficar em casa e vou pra Orla sozinha.
E a mãe pegava os bracinhos ensaboados do menino pra tentar segurá-lo e lavar o resto do corpo. Ela morria de medo que ele caísse, então tinha que acompanhar todo o processo. A água realmente era fria, mas tomar banho era preciso, não havia o que ser feito. Os cabelos de Ademir caíam sobre seu rosto e ele os afastava com as mãozinhas.
Seu Afonso segurou-se no batente da porta, precisava descansar as pernas um pouco. Quem diria que chegaria uma época em que teria que calcular o tempo para chegar ao banheiro. Viu-se no espelho acima da pia. As rugas, as manchas no rosto, os olhos pretos contemplando a pele flácida do corpo. Mas ele não sentia pena de si mesmo, a vida é assim, o tempo passa. Pendurou a bengala na maçaneta da porta e segurou-se nos ferros para aproximar-se do vaso sanitário. “Que coisa fria!” Ele pensou e tremulou. Não gostava de coisas frias. Lembravam-lhe a morte.
Cláudio viu o traficante subir rua acima e o seguiu. A subida íngreme lhe era desconfortável e detestava o cheiro de esgoto a céu aberto. As casas de madeira, o chão sujo, os postes com luzes fracas, tudo lhe era detestável. O traficante já estava no meio da quadra quando olhou pra trás e viu o pipoqueiro seguindo-o. Parou por um momento, olhou para os lados e foi na direção de um terreno baldio.
Cláudio continuou seu trajeto, inabalável. Subiu a ruas com passos firmes. Numa lixeira, um gato remexia o lixo e parou de repente quando viu o homem passar. Num pulo esguio, correu para longe. Cláudio diminuiu o passo conforme se aproximava do terreno baldio. Quando chegou, viu o traficante apoiado no muro, acendendo um cigarro.
O traficante levantou o rosto para ver o pipoqueiro chegando. Soltou uma baforada e disse:
– Tá olhando o quê?
Cláudio parou por um momento, como se constrangido, olhou para os lados e aproximou-se do pipoqueiro.
– Eu, é… é que… – e coçou a barba – tô querendo umas coisas aí.
– Ah, é? – ele soltou outra baforada – e o que eu tenho a ver com isso, tá me estranhando?
– Não, não é nada disso. – Cláudio estava constrangido de verdade – é que… tô precisando apagar, preciso de um cheiro… tem farinha aí?
O traficante desencostou-se do muro. Deu dois passos na direção de Cláudio. Essas gírias eram de gente que sabia o que queria. Mas ele estava desconfiado. Não eram muitos que chegavam pra pedir essas coisas dele, sua área era ácido, erva… farinha, ou cocaína, era coisa do chefe. Quem era esse cara?
– Num tenho nada não, mermão. Sei nem do que tu tá falando. Vaza daqui e não enche o saco. Vai logo. – e fez um movimento rápido abrindo os braços e mostrando os músculos, pra afugentar o pipoqueiro chato. Cláudio, num gesto mecânico e veloz, levou a mão pra trás, ao cós da calça. A arma e o gesto denunciante.
O traficante entendeu tudo e numa fração de segundo tirou a faca da cintura, a lâmina fria no peito de Cláudio, as mãos às costas, o tórax indefeso. Uma vez, duas vezes, três vezes, garganta. Grunhidos, olhos embaçados, escuro, escuro. Passos ligeiros, alguém estava correndo e o chão se aproximou muito rápido.
O gato parecia sorrir, Cláudio parecia sonhar. Ao longe, som de um barco.
Seu Afonso ouviu de novo o barco idiota mugir. Isso era hora? Depois que finalmente conseguiu se levantar do vaso e sair do banheiro, já estava a meio caminho da sacada. Mais uma vez seus olhos repousaram brevemente sobre os papéis sobre a mesa, mas afastou os pensamentos. Trêmulo, a bengala lhe era o maior amparo desde que os filhos, ocupados demais, deixaram de visitar. E chegou na porta da sacada e olhou o rio. Rio velho de guerra. E a cadeira de balanço.
A mãe de Ademir o enxugava quando ele ouviu de novo o som do barco. Seus olhinhos se arregalaram e ele gritou:
– FOOONNN! – e riu.
A mãe se irritou com o grito do menino, seu rosto transpareceu o sentimento, mas ignorou, melhor não dar atenção pra curumim. Depois de vestir o garoto, foi para a cozinha. Abriu a geladeira e pegou a vasilha com um pouco de canja que havia sobrado. Com a bolsa a tiracolo, Ademir sabia que era o sinal de que estavam prontos para sair.
– Vamos, Ademir. Ainda temos que passar no Seu Afonso pra deixar essa canja.
– Ah, não, mãe! Aquele velho é muito chato!
Seu Afonso olhava pro rio da sacada de sua janela. Mas era o mesmo rio de sempre. E o rio parecia murmurar. Mas era a mesma rua de sempre. E a rua parecia correr. Mas era a mesma vida de sempre. E a vida parecia voar.
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