quinta-feira, 2 de maio de 2019

Resenha - Os irmãos Karamazovi

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os irmãos Karamázovi. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1971. 


Quedo-me catatônico. O que dizer? Como posso expressar o impacto dessa obra magnífica? Não é a primeira vez que leio Dostoiévski; mas, nem de perto, tivera ainda algum livro dele tamanha impressão sobre mim. Tenho muito a falar dele. A resenha é mais do que positiva: fiquei de tal modo absorto que, se havia no livro algum advérbio de modo, nem vi. Há muito a se falar aqui.

Aos personagens principais, a família Karamázov. Fiódor Pávlovitch (o pai), e os filhos por ordem etária: Dimítri Fiódorovitch (Mítia), Ivã Fiódorovitch e Alieksiéi Fiódorovitch (Aliócha). O velho: um depravado; o primeiro filho, um espelho do velho, devasso, bêbado e mulherengo; o segundo, um intelectual, ateu, com pinta de acadêmico; o terceiro, o "herói" da história, um quase monge, cristão ortodoxo, discípulo do stáriets Zósima.

Vou começar puxando este último ponto aí: em Dostoiévski é fortíssima a mística cristã. Ele próprio defensor do cristianismo ortodoxo russo, seus personagens refletem isso com bastante força, especialmente porque ele se preocupa em retratar algo que a mim muito agrada: ele quer retratar a Rússia, tal como ela é (voltarei a este ponto em breve).
"O homem não pode cometer pecado tão grande que esgote o amor infinito de Deus" (p. 44)
No livro, Dostoiévski deixa bem claro que acreditava que o futuro da Rússia estava nas mãos do povo. Mas, (interessante como nós vemos a coisa com olhar histórico e achamos que entendemos todo o contexto), jamais imaginou que a Revolução Russa aconteceria. Na verdade, ele tinha plena convicção de quando o povo se voltasse a Deus, então, finalmente, seria livre.

Falando disso, o autor trata muito de teologia, em alguns momentos o livro parece até doutrinário e em outros parece de autoajuda espiritual. Até o diabo entra na história, embora, a meu ver, pintado com cores de um humanismo romântico, bem próprio da época de Dostoiévski. Os críticos, aliás, reclamam muito dessa característica do autor.

Os próprios russos divergem entre amor e ódio a Dostoiévski. Por um lado, é um baita autor, com uma capacidade surpreendente. Por outro, muitos não gostam do modo como ele retrata a Rússia dos anos 1880: servil, quebrada, sufocada pela burocracia, permeada pela miséria do cotidiano, sujeita a coronelismos e seus personagens sempre doentes (citarei isso em breve). 

Falando ainda dos críticos, é interessante notar que Dostoiévski é um dos autores russos favoritos no Brasil. Fora da Rússia, porém, sua reputação também é debatida. De tudo que li comentando a respeito dele (há mais sobre isso neste link), foi a fala de Hemingway que mais me surpreendeu:  “Como um homem pode escrever tão mal, tão incrivelmente mal, e despertar sentimentos tão profundos?”.

Ah, miserável Hemingway. Se ele escreve mal, eu não sei. Mas a segunda parte do que você falou... nossa! Como é verdade. Não é um mero enredo, é uma construção simbólica e profunda, tão profunda, que passamos por todo o espectro de emoções ao ler e somos encantados com a capacidade de encadeamento de Dostoiévski. Ele, inclusive, faz até menções a escritores russos, como Gógol (um dos que já li também, havendo no texto mais de uma referência a "Almas Mortas").

Já falei bastante do contexto e do todo da obra, mas é preciso adentrar no que ela tem de mais precioso: seus personagens. Não vou tratar de cada um dos irmãos ou dos personagens secundários, até porque essa resenha é non-spoiler, mas há algumas características que revelam muito dessa profundidade à qual eu e Hemingway nos referimos (olha, que audácia!, me juntei ao mestre).

Algo que, pra mim, é muito característico de Dostoiévski, até pelos outros livros que já li dele (Crime e Castigo, O Jogador, Notas do Subsolo e O Eterno Marido) é sua capacidade de descrever a psiqué dos personagens. E isto revela também traços da sua época e da sua cultura. Por exemplo, personagens sempre se importam muito com o que vão pensar dele: não querem fazer cena, têm algo de "honra" ou "palavra". Até que ponto isto é algo do autor ou parte do orgulho russo (que nos é, pelo menos em parte, bem famoso)?

Ainda sobre isso: há um constante jogo de forças em campo. O ato de dominar parece ser uma constante, uma necessidade, quase um ímpeto social. Ter domínio ou influência sobre algo ou alguém. O contrário também é bem explícito: ser dominado por outro, quase como objeto de desejo (como um discípulo que segue um líder). Ao mesmo tempo, porém, Dostoiévski faz questão de voltar a pontos que ressalta, como a força do povo russo, ou a importância da simplicidade, das pessoas comuns, do cotidiano (e aqui não consigo deixar de lembrar do nosso Érico Veríssimo):
"Precisa conhecer tais criaturas para saber apreciar muitas outras coisas que aprenderá precisamente em companhia delas -- observou Aliócha com ardor -- É o melhor meio para você se transformar." (p. 388)
Por outro lado, ainda que admire essa capacidade descritiva de Dostoiévski (que, em grande parte, penso ser um paralelo com meu apreço a Veríssimo, embora este último descreva muito bem os contextos e o primeiro, os personagens), às vezes os personagens têm uma capacidade de introspecção e revelam sentimentos/vontades de maneira que não sei se é verossímil. Quem conhece a tal ponto os próprios pensamentos? Quem tem tal domínio de si? Ou será que isso foi algo que perdemos? 

Ah!! Aqui chegamos num ponto interessante. Tenho muito a falar sobre a "armadilha do tempo perdido". Mas não é o lugar aqui. Isto foi uma das muitas lições que aprendi com este livro e escreverei uma crônica só a esse respeito. É deveras bem interessante. Mas divago, retomo. Vamos falar ainda dos personagens e da capacidade do autor em lidar com eles:
"Já era bastante tarde e Ivã Fiódorovitch não dormia. Meditava e só se deitou às 2 horas. Não exporemos o curso de seus pensamentos; não chegou o momento de entrar naquela alma; chegará a vez dela." (p. 203)
Mano, olha o sangue frio desse infeliz em saber que depois haveria tempo e espaço para aprofundar a narrativa de Ivã. Como será que ele consegue se segurar e pensar que, para o bem da trama e do livro, o melhor é não aprofundar nisso, pelo menos naquele momento? Aliás, olha a capacidade de analisar de maneira tão profunda dois lados da moeda (refiro-me ao final do livro e aos dois juristas), sem se deixar pender para um e outro... uff! Não sei como ele conseguiu. Prosseguimos:
"Na minha opinião, todos se enganavam; nosso procurador era, eu creio, dum caráter bem mais sério do que muitos pensavam." (458)
Novamente algo que vejo no mestre russo e encontro paralelo com o mestre brasileiro (e até mestres americanos, como King), é que em vários momentos o escritor conota que não conhece ainda profundamente os personagens: eles precisam, antes de tudo, revelar-se ao autor. Na narrativa do livro, algumas vezes o narrador parece ser um personagem e, em mais de um momento, perguntamo-nos se ele não teria participação direta na trama.

Como já disse, nestes personagens há  muitas coisas sobre a psiqué ou "identidade" do povo russo: maldade, tortura, sentimento de superioridade sobre outro (arrogância). Russos: um apego ao Direito? Não! À burocracia, que é uma constante nos autores clássicos que li até então. Uma burocracia sufocante que reflete em todas as camadas da sociedade. Logo, reflete a profunda dor e miséria à qual submetia-se este povo. Ele fala, assim como Érico Veríssimo, do cotidiano daquelas pessoas e de fatos que poderiam ocorrer a qualquer pessoa. Ah, e que fatos terríveis às vezes podem acontecer (refiro-me ao menino Iliúcha).

Tendo dito isto, quero falar um pouco do livro em si e da tradução. Infelizmente (descobri apenas depois), li a tradução "errada" do texto. Pelo que consta, os tradutores Natália Nunes e Oscar Mendes não traduziram o livro direto do original russo, mas da sua versão francesa, o que muitos criticam. Mas, como não tenho com o que comparar, resta-me elogiar também este texto.

Para nós, numa nova cultura do século XXI, mesóclises como "negar-se-nos-ia" e o fraseado tornou a leitura muito agradável: confesso que bem menos intrincada do que a edição que li de Crime e Castigo (da qual ignoro a tradução). Por ter vindo do francês, talvez tenha sido mais fácil traduzir ao português algumas ideias. Mas confesso que fazer "a tradução da tradução" é sacanagem. No futuro, tenho que ler a tradução direta do original. Ou, vai saber, o próprio original.

Mas o texto em si, e aqui não temos como atribuir essa engenhosidade senão ao próprio Dostoiévski, eu achei fantástico. Há um título em cada capítulo, que demonstra muita criatividade e capacidade de coesão no texto, embora, seja um pouco spoiler, uma vez que adianta o que vai acontecer. O autor não tem pena de usar frases longas (coisa que já criticaram na minha escrita), o uso de parênteses, travessões, etc, tudo num mesmo parágrafo. Ah, e claro, parágrafos gigantescos: quase 2 páginas com um único parágrafo em diversos momentos. Aliás, pergunto-me se não criticariam seu uso de ponto e vírgula hoje.

Mas o texto em si não trata só de uma trama dos irmãos e as desgraças, mas traz temas profundos, tem um peso. Dostoiévski faz um encadeamento sensacional de cenas, que puxa a gente e não nos deixa descansar enquanto não aprendemos o desenvolvimento. No meio do livro, ele ganha um ímpeto vertiginoso. Sai da filosofia e vai pra uma sequência de fatos que, ainda que não seja eletrizante (pelo menos não para nossos termos do século XXI), reforça o encadeamento sagaz de cenas por Doistoiév .

No último quarto do livro o enredo dá uma nova guinada: quem foi o autor do crime terrível? E essa pergunta martela a cabeça do leitor, obrigando-o a devorar as páginas, absorto na curiosidade de descobrir e conhecer os personagens ainda mais profundamente. Há até uma reviravolta nas personagens: algumas que estavam em segundo plano, de repente, passam a ser extremamente relevantes. E uma única frase, uma única frase, é capaz de imprimir tamanho impacto que vira a cabeça do leitor: "Há uma hora [ele] enforcou-se -- disse Aliócha." (p. 453)

Ao final, o simbolismo por trás é explicitado pelo próprio Dostoiévski, e limito-me a ele, malgrado a amplitude de coisas passíveis de serem ditas:
"'Quem é, pois, essa família Karamázov, que adquiriu de súbito tão triste celebridade? Talvez exagere, mas parece-me que ela resume certos traços fundamentais de nossa sociedade contemporânea, em estado microscópico [...]" (482)
Ah, que livro! Que livro! E o que falar daquele final? Lindo, terrivelmente lindo, mas tanto, que não posso evitar: choro. Porque, no fundo, creio que Dostoiévski só falava daquilo que nós mais ansiamos, daquilo que meu mestre brasileiro mais gosta de falar. É simples, é a mensagem para todos os seres humanos. O mestre russo falava de esperança.

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