quinta-feira, 9 de maio de 2019

Resenha - O trílio dourado

NORTON, Andre. O trílio dourado. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.



Ler sempre é algo muito bom. Mas quando a gente é criança ou adolescente, a gente lê de um jeito diferente. Se por um lado não temos maturidade pra entender muito do que lemos, por outro não temos o peso do tempo e das obrigações pra atrapalhar nossa leitura. Lemos simplesmente porque queremos ler.

Meus pais compraram esse livro pra mim quando a Livraria Nobel ainda funcionava ali na Glaycon de Paiva (era lá, né?). Devo tê-lo escolhido só pela capa, certeza. O livro é parte da Série Trílio, escrito por algumas das maiores escritoras de fantasia da atualidade. O "Trílio Dourado" é um interlúdio, uma história à parte, da série principal. A Editora Rocco fez parte da minha infância. O investimento no gênero fantasia para o público infantojuvenil deixou marcas que perduram até hoje.

Que eu sou meio excêntrico não deve ser novidade pra ninguém, e este livro ajuda a provar isso. Não é a primeira vez que leio essa obra, céus!, creio que já cheguei na marca das 10 leituras desse livro. Tudo começou na infância, entrou pela adolescência e, até hoje, é uma leitura que gosto de desfrutar. A excentricidade: sempre, por obra do acaso, li esse livro na época das chuvas. Hum, que coisa, né? Ah, e o mais interessante: o começo do livro se passa num pântano... no período de chuvas.

É um livro típico de fantasia: criaturas estranhas, objetos mágicos, vilões inesperados, batalhas com magia e espadas. O diferencial para a época: heroínas como personagens principais. O desenvolvimento inicial é lento, mas não tedioso. Como a história parte de um enredo já construído, há muitas menções que não entendo totalmente, mas que são suficientes para ter a ideia do contexto. Mas, pra um livro de fantasia, penso que deveria ter mais ação. Toda a aventura é um grande passeio, com algumas tensões, culminando numa dinâmica maior só no último 1/8 do livro.

O enredo é bem construído. A autora não tem pressa, mas às vezes enrola um pouco. Não obstante, os fatos são bem encaixados e são verossímeis dentro das regras do jogo estabelecidas pela autora; o universo compartilhado do Trílio vem a calhar também. Kadyia, uma das Três Princesas guerreiras, é a protagonista do livro e junto com o companheiro nyssomu Jagun, além do Desconhecido Lamaril, vai enfrentar um novo mal que assombra a terra de Ruwenda.

Fantasia não é um gênero uno. Se em Harry Potter a magia é a tônica, em Senhor dos Anéis há bem menos do que você pode esperar. Elfos não são sempre as mesmas criaturas, depende do autor e do universo onde eles estão. O gênero do Trílio é aquela fantasia medieval: castelos, princesas, espadas, poderes e lugares desconhecidos, amuletos; mas não há muitas criaturas fantásticas no livro, senão as principais raças da história: humanos, oddlings (criaturas habitantes dos pântanos, subdivididas em Nyssomus e Uisgus -- ambos amigáveis e parceiros dos humanos), skitreks (criaturas malignas que habitam a terra) e os Desconhecidos (uma raça de seres poderosos que viveu na terra, mas abandonou-a devido a uma guerra civil pelo poder). Magia ocupa boa parte da história; esta magia é uma forma de misticismo, com muita comunicação mental, forças ocultas e absolutas.

Leitura agradável, espaçamento confortável, uma edição digna de uma boa editora. Mas a tradução é cruel para crianças: não é à toa que eu tinha dificuldade de entender algumas partes. A narração e a descrição não são sempre da melhor qualidade e a tradução só complica isso ainda mais (muita inversão em frases, além de palavras como "adejar" ou "esgar"). Vou dar um exemplo:
"Na cidade o céu continuava cinzento, pois era época de tempestades, mas as chuvas e as ventanias violentas não a atingiam. Mais uma mágica dos Desaparecidos, pensou Kadiya." (64)
A princípio, parece não haver nada demais, uma vez que é compreensível o texto e o significado. Tudo bem, até posso concordar, mas veja como eu reescreveria esse trecho:
"Na cidade, o céu permanecia cinza. Era o período de tempestades, mas as chuvas e as ventanias fortes não a atingiam. Outra mágica dos Desaparecidos, pensou Kadiya."
Vejam bem o que foi que eu fiz: como é um trecho sem ação, o acréscimo do ponto na primeira frase traz mais solenidade à descrição. Em segundo, eu fugi de várias aliterações (que foi um vício constante da tradução!): em lugar de "cidade céu continuava cinzento" (c+c+c+c), ficou com uma vírgula e troquei "continuar" por "permanecer". Logo a seguir, troquei "era época" pelo ponto e "período". "Ventanias violentas" (v+v) ficou "ventanias fortes". E tirei a cacofonia da frase posterior (u-mamá-gica).

Algo que percebi conforme lia é que essa descrição emaranhada me influenciou como escritor. Percebo que há traços de estilo que eu copiei, mesmo sem querer, especialmente quando faço textos de fantasia. E percebo que isso é comum entre vários escritores iniciantes também. Se pensarmos nos três pilares de um bom livro conforme apontados por King (Narração, Descrição e Diálogo), devo confessar que até as falas de Kadiya em vários momentos são muito formais ou pomposas para uma mulher impetuosa e guerreira, embora sejam condizentes com as regras do jogo que a autora propôs.

Voltando ao enredo, o final é uma bagunça: na ânsia de narrar a ação, peca na descrição. Resultado: o leitor fica confuso, não entendendo direito onde e como se desenrola a ação. Somos forçados a forçar a cena na mente, volta e meia tendo que voltar a leitura pra se encontrar. O livro termina de maneira abrupta, o que eu particularmente gostei, porque faz reverberar na expectativa do leitor.

Há uma máxima apontada repetidas vezes no livro: poder atrai poder. Algumas verdades estão escondidas no livro e são condizentes com uma leitura infantojuvenil. Mas ouso que esta leitura não é só para este público. Todo bom amante de fantasia poderia desfrutar dessa obra sem peso na consciência. Leitura mais do que recomendada.

0 comentários:

Postar um comentário