sexta-feira, 3 de maio de 2019

Crônicas do cotidiano - VI

A armadilha do tempo passado


Eu não criei este título do nada, li-o em algum lugar, só não sei onde e não teve google que resolvesse a questão. Em algum lugar, alguém falou sobre a "armadilha do tempo passado". Isto não é novidade pra ninguém, trata-se daquele velho dilema: "No meu tempo as coisas eram diferentes, na minha infância era melhor, antigamente não tinha essas coisas, hoje está tudo pior, etc, etc.". Esse pensamento torna-se rapidamente um moto na cabeça da pessoa e uma lente pela qual ela encara a realidade, numa eterna ladainha reminiscente.

Já faz um tempo que quero falar sobre isso e dar a cara a tapa (eita!), porque minha timeline do face tem se tornado um chavascal dessa lenga-lenga sem fim. E, o pior: até cristãos caem nessa armadilha e instam, a todo momento, em argumentar como "antes era diferente". E quem são os culpados de tudo isso? Ora, eu, é claro. Talvez não eu nominalmente, mas "os jovens" ou "essa geração atual". Aff, é tanto besteirol.

Diferente do estilo tradicional de argumentação que gosto de seguir, em que aponto diferentes argumentos para, no final, indicar aquele com o qual mais concordo ou o que denomino como certo definitivamente, dessa vez ou iniciar com os argumentos que mostram, de uma vez por todas, que a armadilha do tempo presente é uma praga. Inicio com a Bíblia.
"O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol." (Ec. 1:9)
"Ah, porque antigamente não tinha tanto tal coisa." Meu Deus! Como uma pessoa letrada e conhecedora do mínimo pode falar uma coisa dessas? Que mundo foi que você viveu que era tão cheio de paz? Que não se ouvia falar de mortes? Que não se ouvia falar de assaltos e assassinatos? "Ah, mas é que agora é bem pior". Depende.

Bem pior pra quem? Pra você que mora numa região em que a densidade populacional aumenta ou para aquele que mora num lugar onde a estruturação policial tem aumentado mais (pense fora do Brasil)? Ou está pior porque antes você não tinha que lidar com certos problemas e hoje tem? O que mudou foi a situação... ou foi você?

Entendam de uma vez por todas: nada há, pois, novo debaixo do sol. Desde a Antiguidade, (desde antes dela!) há violência, há ideias e ideais, teorias, ideologias, tudo que foi sempre será. Quem foi o filósofo que venceu a dicotomia matéria x espírito? Quem conseguiu resolver o problema do movimento x estrutura? Quem dirimiu na arte os movimentos de expressão x impressão?

Não fossem esses argumentos suficientes, há ainda um versículo que põe por terra qualquer tentativa de apegar-se a essas reminiscências. A armadilha do tempo passado, que para muitos cristãos só serve como âncora para a murmuração, é também um pecado e o texto bíblico o condena:
"Jamais digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Pois não é sábio perguntar assim." (Ec. 7:10)
Touché! Meus irmãos cristãos, por favor, parem de encher a paciência! Parem de dizer que "antes era melhor", que hoje "é assim ou assado", tudo por culpa "dessa geração". E, já parou pra perceber, que a culpa sempre é do "outro", nunca da pessoa? A culpa é dessa geração, é dos políticos, é dos jovens. E olha que tem gente da minha idade (geração dos anos 90) que já culpa os da Geração Z (pós anos 2000)! É muito espaço pra reclamação e pouco espaço pra ação.

Mas, talvez você não seja cristão e ainda se apegue a essa armadilha do tempo passado por não achar que o texto bíblico é suficiente. Mesmo pensando assim, ouso dizer, você sabe que não há nada de novo debaixo do sol, você sabe que, no fundo, nada realmente muda, apenas acontece de outras maneiras. Mas, para você também, além dos argumentos bíblicos (que, para os cristãos, já devem ter sido suficientes), trago um pouco do que aprendi com Dostoiévski em "Os Irmãos Karamázovi" (link para a resenha aqui).
"Com efeito, neste século, todos se fracionaram em unidades, cada qual se isola no seu buraco, separa-se dos outros, oculta-se, ele e seus bens, afasta-se de seus semelhantes e os afasta de si." (p. 222)
Espera um pouco. Hoje em dia nós falamos da tecnologia e dos problemas que ela traz. O celular: ah! A desgraça do século XXI. Nos isolamos, não falamos mais, não conversamos mais, vivemos no mundo digital em nossas mãos. Pais e filhos não se conversam, namorados já não trocam beijos no mundo real, somos escravos dessa tecnologia, argh! Como nossa sociedade está depravada! Ah, são esses jovens, são essas novas tecnologias!

Meu caro leitor, se é assim, do que diabos falava Dostoiévski em 1880, há mais de 100 anos? Que tecnologia era aquela que estava afastando as pessoas na Rússia? Por que cada um se isolava, que a relação entre os familiares era algo conturbado, não havia mais respeito, não havia mais civilidade (temas que são tônicas no livro dele!)? Que explicação você pode me dar, ó pessoa capturada pela armadilha do tempo passado, para esclarecer tamanha semelhança num espaço de mais de um século?! Ora! Será que... realmente... não há nada de novo debaixo do sol?

"Ah, Gabriel, mas você vem com um argumentozinho desses e...". Opa! Calma, espera lá. Tenho mais! Vou citar apenas Dostoiévski nessa crônica. Vamos ver o que um escritor do século XIX pode revelar da sua sociedade e como isso (será?!) tem alguma relação com o que acontece hoje (porque, claramente, segundo os especialistas do tempo passado, "antigamente era melhor"):
"Acontece-nos ser excelentes, mas só quando tudo nos vai bem. Nós nos entusiasmamos pelos mais nobres ideais, com a condição de alcançá-los sem esforço e sem que isso nos custe alguma coisa. Não gostamos de pagar, mas gostamos muito de receber." (p. 484)
"Esses jovens, que vivem no celular e não saem, não fazem nada, só querem ficar em casa assistindo Netflix.", "Não se faz mais política como antigamente, hoje todo mundo só quer ficar em casa no Facebook, mas na hora de ir, ninguém vai". "Esse pessoal fala muito e não faz nada". Novamente, o livro é do final do século XIX. Eu estou falando de um tempo em que o Brasil ainda era império! Ah, e por falar de Brasil, saca só:
"Somos amplos, amplos como nossa mãe, a Rússia, tudo admitimos e a tudo nos acomodamos." (p. 485)
"Esse Brasil é a casa da mãe Joana". "Brasil é coração de mãe, sempre cabe mais um, e aí vêm esses estrangeiros e...", "Esse Brasil é uma grande bagunça.", "Porque no meu tempo...", "Ah, mas antigamente...", "Essa geração de hoje...", "Esse celular...", "Essa internet...". E como é que lá na Rússia dos tempos czaristas havia tantos problemas semelhantes aos nossos hoje? Que geração foi a culpada por aquilo? "Antigamente" era melhor pros russos? Que "tempos passados" são esses que prendem você? Será que ainda não percebeu que o problema não são as coisas que mudaram? Onde está o problema? Já descobriu?

De uma vez por todas, poupem-nos desse festival de chatice. Escapem, corram, desprendam-se da armadilha do tempo passado! 
Fujam! Fujam! 

E parem de encher o saco.



Publicado originalmente no Facebook em 03/05/2019.

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