sexta-feira, 15 de maio de 2020

Resenha - Antes do Éden

LITTLETON, Mark. Antes do Éden. São Paulo: Candeia, 2001.


Fala, meu povo. Vamos começar direto com o enredo desse livro, porque a maior parte dos comentários será sobre outros tópicos, pouco relacionados com a história em si. 

Antes do Éden conta a história de Aris, Rune, Cere e Tyree: anjos que estão nos eventos da rebelião ocorrida no céu, antes mesmo da criação do mundo. Como é de se esperar, eles veem o surgimento da rebelião de Satanás e depois sua consequente expulsão do céu, junto de seus anjos. 

Na revolução, Rune e Cere escolhem ficar do lado de Kyrie (Deus) enquanto Tyree e Aris escolhem "não escolher." Deus concede essa oportunidade, mas logo Tyree se debanda para o lado de Satanás, deixando Aris nesse "limbo celeste", em que ele não adere a nenhum dos lados e pode transitar tanto no céu quanto no inferno. Daí você já começa a perceber como a coisa é sem pé nem cabeça.

Depois o autor estende a história até pouco antes de Noé e o dilúvio, com os descaminhos do personagem principal, Aris. É isso. 

A primeira coisa que tem que ficar clara é: isto é FICÇÃO! Ninguém sabe ao certo o que aconteceu naqueles tempos, a Bíblia não revela. Não sabemos como ou por que as coisas aconteceram daquela forma, mas somos livres para conjecturar. Isto é, desde que entendamos que tudo isso não passa de ficção! Eu fico triste quando vejo gente lendo isso e tomando como verdade as interpretações (e acreditem, acontece).

Por ser ficção, o livro naturalmente tem algumas limitações que são esperadas. Como falar ou pensar como um anjo? Não dá. Como descrever ou saber como se comportar no céu? Não dá. Tudo bem. É ficção e a gente entende isso, são as regras do jogo. Logo, algumas limitações previsíveis se tornam presentes, como: o comportamento dos anjos e sua forma de pensar se tornam humanos, as descrições do céu são necessariamente terrenas, e por aí vai.

Eu conheço que há momentos em que o livro não deixa de brilhar. Na cena da eclosão da rebelião, quando Lúcifer desafia Deus diretamente, ficamos com o coração na mão. Também na cena de Aris e seu encontro quase fatal com a humana Motta somos tomados pelo sentimento que o anjo sentia. Infelizmente não há muitas outras como essas.

Penso que o livro perdeu foco por estender o enredo. Talvez a história devesse ter acabado após a Rebelião e a criação do ser humano. Mas o autor foi muito além, chegando até o dilúvio! A leitura ficou muito extensa, numa sucessão interminável de eventos, mas sem saber onde de quer chegar. Essa falta de propósito objetivo prejudica o desenvolvimento da trama.

Passando à escrita em si, logo no começo já vemos algumas coisas. Logo de cara encontrei um problema que se repetiu pelo resto do livro: excesso de adjetivos. Por favor, não me diga que o prédio era "sombrio e tenebroso, cheio de rachaduras medonhas". Faça o favor de escrever direito e mostrar ao leitor, não apenas contar.

Os adjetivos a gente pode até deixar passar, mas o problema mesmo é o vício terrível e insuportável do verbo "parecer" (veja como eu usei muitos adjetivos nessa frase e ela ficou carregada, né?). Sobre o vício: ou é ou não é, meu filho. Decida aí. O uso exagerado do verbo parecer só aponta pra uma insegurança do autor em falar as coisas. Além disso, "parece" para quem? Pra mim? Pro personagem? Pra um terceiro? O verbo leva a muitas subjetividades que só prejudicam o bom entendimento do texto.

Ainda no começo do livro, há uma exuberância de nomes estranhos de categorias de anjos, plantas, lugares e não há tempo suficiente pro leitor se familiarizar com eles. Entendo o propósito a que serve, mas ficou um pouco exagerado. Como bom amante de fantasia eu aprecio, mas o excesso prejudica, alguns trechos ficam bem difíceis de entender, ainda mais porque o autor não é bem "didático" na hora de apresentar e explicar as categorias de personagens ou objetos que ele criou. Vejam só:
"[...] um Hauker com vários Liminnines nas costas e um membro óbvio dos Harpistrers. Nenhum de nós sabia quando o Kinderling olhos furtivos apareceria novamente [...]" (p. 67)
É o que? 
(Aliás, veja que nesse minúsculo trecho, o autor não consegue evitar dizer que o membro era "óbvio" e que os olhos eram "furtivos", isso sem contar com o advérbio de modo. O texto precisava de uma boa enxugada ainda).

Analisando como escritor percebo que o autor se valeu muito do intertexto para configurar o começo do livro, ou seja, ele usou o conhecimento que o leitor já teria dessa história pra não precisar contextualizar muito. Digo isso porque tem pouca ação, a história se move para frente de um modo devagar. O autor acaba não tendo tanta pressa porque todo mundo sabe o que vai acontecer.

Há vários problemas de verossimilhança, especialmente no relacionamento Adão e Eva pós-queda. Não creio que eles tivessem sido tão gentis um com o outro do jeito que o autor pintou. O comportamento de Caim e Abel no sacrifício fatídico é tão infantil que deu cringes. Inclusive, de maneira geral, ele coloca o comportamento do ser humano de modo muito infantil.

O trato entre cenas não é bem trabalhado porque é inconsistente: às vezes é bem encaixado, às vezes é bem desconfortável. E falando nisso, alguns diálogos são bem desconfortáveis: tem horas que são bem formais e outras cheias de gírias ou expressionismos, não raro com o mesmo personagem.

Passo agora a abordar algumas dificuldades de edição e diagramação do livro. 

Sobre a edição do livro em si (não do texto), embora tenha uma capa bem trabalhada e uma qualidade de páginas razoável, o livro é um pouco maior do que o comum e embora pareça besteira, isso dificulta a leitura. Como as páginas são muito largas, a leitura fica muito ampla e os olhos têm que ir demais até o fim da página, não dá pra centralizar direito. Sim, com o tempo eu fiquei mais fresco com leitura.

Sobre a diagramação, ela é um problema do começo ao fim do livro. Há problemas sérios com diálogos entrevistados no meio de parágrafos. Deixa poluído e confuso. No começo era só desconfortável; mas conforme isso se repetia, tornou-se cansativo. Frases quebradas, parágrafos iniciando no meio de outros, vírgulas soltas. Além de ler a história a gente tinha que ler a leitura pra saber o que estava lá. Eu, hein.

Quanto à tradução, ela tem problemas clássicos (tradutore, traditore, né?). O mais evidente é o de traduzir as palavras e não os significados. Em alguns momentos dá impressão que o autor ou o tradutor quis mostrar sua erudição ao escolher palavras complicadas que, no contexto, perdem toda sua elegância. Além, claro, de traduções literais sofríveis.

Por fim, nós temos as questões de doutrina, o grande perigo da ficção cristã.

Escrever sobre este assunto já seria complicado, avalie quando aborda um assunto tão difícil de entender. O âmago de todas as dúvidas na verdade é: qual é a origem do mal? Não pretendo responder essa pergunta, não é espaço para isso. 

O cerne do livro é um "livre arbítrio" dos anjos. Infelizmente não temos base bíblica para deixar isso claro e realmente não tem como saber com certeza. O interessante, porém, é que mesmo que fosse verdade, não explica o seguinte: por que seres santos, dotados de "livre arbítrio", logo, plenamente capazes de escolha, optariam por se rebelar contra Deus? Eis a questão (que também não vou responder).

O livro incorre no erro fatal que eu sempre condeno: tornar Deus um personagem da história. E aconteceu exatamente o que eu disse que aconteceria se isso acontecesse: ele vira humano, ele erra, ele tem dúvidas. Ele deixa de ser Deus.

Além disso, o autor não consegue compreender que Deus merece ser adorado simplesmente por quem Ele é. E que isso, por mais estranho que pareça, é na verdade o melhor para as criaturas que Ele criou! Ele não precisa da adoração mas permite que seja adorado para o bem das próprias criaturas. Escrevi sobre isso neste e neste post do meu outro blog (se este assunto te interessou, não deixe de ler! Poderá esclarecer dúvidas que você tenha).

No final, naturalmente, a questão descamba para o "livre arbítrio" humano e Deus se torna um ser cada vez mais impotente. Na verdade, fica cada vez mais claro que o personagem retratado no livro não é o mesmo Deus que eu acredito. E fica provado que enquanto houver doutrinas teológicas que defendam o "livre arbítrio", Deus sempre será limitado a um ser que não tem onipotência e precisa assistir com tristeza todo o Seu plano "dar errado". Desculpa gente, mas é ridículo.

O livro é cheio de boas ideias, mas todas mal trabalhadas. Parece que o autor pegou todas as ideias boas a respeito do tema (e as ideias são realmente boas), juntou tudo num mesmo livro e tentou conectá-las da melhor maneira. Mas no fim permanece exatamente isso: o livro é uma colcha de retalhos, não uma unidade. Tem momentos que é interessante, mas tem muita coisa que é sofrível.

No fim das contas, claro exemplo de que até a melhor das ideias, se não for bem trabalhada, não produz um bom livro.

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