domingo, 3 de maio de 2020

Resenha - Sarah

CARD, Orson Scott. Sarah: Women of Genesis (Book I). New York: Forge Books, 2001.


Este foi, sem dúvida, um dos piores livros que já li na vida. Embora seja evidente a capacidade literária do autor, dada a imersão que o livro produz além da escrita de qualidade (percebe-se que o autor tem experiência com literatura), não justifica o terror que foi o decorrer do livro. Aguentem comigo, porque vou explicar.

Vamos começar falando das coisas boas, porque eu preciso reconhecer que há. A maioria delas está ligada à maturidade literária do autor. Passagens bonitas e bem escritas como essa abaixo:
"Everyone in Ur-of-the-north treated Father with great respect and honor, even though the was a king without a city. But this Abram did not need others to give him his honor. He carried it within himself." (9)
Além disso, a construção e contextualização social e política é bem trabalhada além de verossímil para uma época onde basicamente todos viviam no estado de natureza hobbesiano. Me refiro à política da mesopotâmia e do Egito e claro a construção social da de uma tribo beduína "hebraica", que é bem condizente também.

Interessante também como o paganismo é construído de modo derivado da verdadeira religião (que é exatamente como acontece!). Por exemplo, Asera, que é uma deusa-mãe na cultura pagã dos caldeus e vários outros povos daquela região, na verdade era simplesmente Eva, mas que aos poucos grupos religiosos passaram a atribuir status de deusa. A deturpação da verdade na sua essência. Ah, e se tem uma coisa que esse livro entende é de deturpação da verdade. 

Pronto, acabaram os pontos positivos do livro. Preparem-se.

Vamos aos pontos negativos literários. Primeiro, não sei até que ponto é verossímil uma menina de 10 anos pensando e agindo do jeito que Sarai age no começo do livro. Tudo bem que eram outros tempos e outra cultura, onde meninas de treze anos já estavam aptas a casar. Não obstante... não sei, achei forçado. 

Em vários momentos o livro tem uma transição corrida, por exemplo de Sarai jovem para Sarai com crise de meia idade. Isso faz com que o livro tenha mais momentos de "contar" do que "mostrar". Os diálogos também deixam a desejar em alguns momentos, embora, do meu ponto de vista, eles tenham sido bem trabalhados de modo geral.

Além disso, acho que houve um hiato na escrita do livro por que no final Abraão parece um personagem diferente mais humano mostra raiva medo. Stephen King alertou sobre isso: quando se escreve uma história, o ideal é fazer tudo de uma vez, pra não correr risco de descontinuidade. 

Pronto, acabaram os problemas literários. Preparem-se de novo, porque agora é que o bicho pega.

O livro tem um problema seríssimo de doutrina!! Há muitas heresias na história. Nossa muitas mesmo. Eu elenquei o tanto quanto aguentei, mas deixei de registrar algumas porque eu já não conseguia mais suportar. Chega um momento que se a gente dá atenção de mais, acabamos por honrar aquilo que deve ser menosprezado. 

A começar, a primeira heresia foi que foi Deus quem mandou Abrão mentir sobre Sarai ser sua esposa. A partir deste momento fiquei de orelha em pé pra cada passo que o livro dava na história. Deus não nos comanda a pecar, jamais! A Bíblia é muito clara quanto a isso:
Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta. (Tg. 1:13)
E o pior, é que o autor tem uns trechos no livro que apontam justamente para a sua hipocrisia, ou melhor, cegueira espiritual. Tem coisas que os personagens faz que são condenáveis, como bem exposto pelo autor, mas que ele mesmo o faz na escrita do livro. Olha só como é reveladora essa passagem:
"As to Pharaoh being a god, no man could equal such a claim, and in Sarai's opinion calling a man a god did not elevate the man, it only diminished the idea of godhood." (p. 93)
O livro me deixou oficialmente irritado. Sério, com raiva mesmo. Eu tinha a vã esperança que o autor consertasse o erro, mas ele manteve. Como se Deus tivesse ordenado a mentira e Faraó castigado no fim. Absolutamente ridículo. 

Brincar com a Escritura e cair na heresia é um dos meus grandes medos ao escrever. Por isso sempre tenho muito cuidado pra nunca mexer em nada com espinhos. Há terra o suficiente pra plantar sem precisar ser polêmico ou incorrer em erros. Que Deus conceda livramento para que eu sempre seja fiel à Palavra da Verdade.

Continuando, a situação só piora: Abrão é tratado no livro como um santo. Sempre certinho, sempre sábio, paciente, bondoso, nunca errando... É de dar nos nervos. E na tentativa de preservar a pura santidade de Abrão, feriram a divina. Porque Abrão não mente, não erra, não peca, mas coisas ruins acontecem. Ora, se ele não é o culpado... só pode ter sido o Deus que ordenou o pecado.

Há um limite de heresias que uma pessoa consegue aguentar. Tem que haver. Eu aguentei uma. Uma. Depois da primeira, eu segurei a onda e continuei a leitura com quem diz: "Coitado, só um pequeno lapso." Mas a partir da segunda tive vontade de jogar fora o livro e nem terminar a leitura. Mas pelo bem desta resenha e da preservação da verdade, eu precisei seguir em frente.

A coisa vai afundando cada vez mais. Não sei como dizer isso de outra maneira: o autor desenhou o enredo de modo que dar Agar para Abrão coabitar e ter um filho... foi ideia divina.

Não olhem pra mim, não fui eu quem escrevi (e jamais escreveria algo assim!). Como pode o autor ser tão cego para a verdade? No começo eu achei que ele havia se enganado, mas agora é mais que evidente que ele fez tudo de propósito! Na cabeça dele tudo que aconteceu foi tão santo, tão puro, tão certo, que ele esqueceu completamente do pecado! Do pecado de Sarai, de Abrão, de todos!
"Porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus," (Rm 3:22c,23)
Não é só inverossímil que o adultério de Abrão tenha sido algo abençoado por Deus, como se fosse um jeitinho para a promessa de Deus dar certo; não é só revoltante pensar que Deus apoiaria algo assim; não é só um desacordo com a Bíblia. É revoltante, é uma ofensa, é uma agressão à natureza divina. Maldito seja este pensamento de um Deus que é conivente com o pecado. Maldito.

Assusta-me, causa-me realmente grande temor que escritos como este estejam soltos por aí e, pior, que muitas pessoas talvez não consigam captar as sutilezas do texto. Que o Espírito Santo do Senhor tenha misericórdia dos neófitos e daqueles que não têm a quem recorrer nos momentos de dúvidas, para que não sejam levados pelos ventos de doutrina; que Ele envie cada vez mais servos para alertar o mundo quanto aos perigos das falsas verdades; que Deus nos livre homens como este autor, homens que:
"Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível" (Rm. 1:22-23b)
A partir desse momento tornou-se muito difícil fazer uma resenha mais ou menos neutra do conteúdo ou até mesmo apreciar as qualidades literárias dele, como eu pelo menos tentei fazer até então. Mas como poderia sequer fazer isso?

Como ser imparcial quando o autor diz que Agar foi a vilã da história o tempo todo? Que Abrão e Sarai estavam apenas tentando cumprir os propósitos de Deus? É de um absurdo sem tamanho! Ainda mais cometendo a gafe literária de criar uma situação que é obviamente inverossímil: Abrão, Sarai e Agar vivendo no mesmo lugar e mantendo aparências como se nada tivesse acontecido.

Será que ele simplesmente ignorou que Abrão fez sexo com outra mulher? Só este pequenino fato já é suficiente para corromper e modificar toda a relação de uma família! Argh, mal consigo me conter. O autor tenta com todas as forças contornar isso apelando para a regra antiga que Agar era escrava de Sarai, portanto, sua propriedade e tudo que vinha dela era seu por direito. Que grande absurdo. A própria narrativa mostra o rompimento fatal que houve não só na família mas entre todos os outros da comunidade com a situação mais do que inusitada: a esposa era uma, mas a mãe do herdeiro era outra.

Não bastasse isso, temos uma fala em que Abrão teria dito que Deus não é poderoso para fazer o que quer, negando seu Eterno Decreto. Vejam por si mesmos:
"God can make of anyone of he whishes, thought Sarai. She even said this to Abram, but Abram disagreed: 'God can make of anyone exactly what they are willing to become, and nothing better'." (p. 258)
Pff! Que Deus é esse que precisa se submeter ao homem para seguir com Seus projetos? Além disso, veja a frase do autor: "Deus pode transformar alguém na exata medida que eles desejam ser transformados, nada além disso." Me diz aí: quem é que por iniciativa própria deseja ser transformado? Não fosse Deus vir ao nosso encontro, quem de nós teria ido a Ele? Quantos de nós não ouvimos falar de Jesus durante nossa vida inteira até o dia que tivemos os olhos abertos? O que mudou naquele fatídico dia? Sua natureza? Por supuesto! Foi o agir de Deus na sua vida. Não o contrário.

Acho que chegou determinado ponto do livro que o autor já estava descarado demais pra tentar ainda manter aparências. Ele mergulha logo em todo tipo de heresias sem medo ou desconforto nem mesmo com as circunstâncias históricas, afetando a verossimilhança da história. Novamente, vejam por si. O trecho abaixo é Sara (agora já com novo nome) externando seus pensamentos logo após ouvir a promessa de que, apesar da idade, ela teria um filho com Abraão:
"She knew that like all God's promises, this one depended on her worthiness before the Lord." (p. 264)
Ô, meu Deus. Depois dessa eu encerro meu caso, porque sinceramente não sei mais o que falar. Deixa só eu explicar: se você ou qualquer um de nós depender de você mesmo, ou do seu "valor" perante Deus para ser abençoado, meu filho, sinto dizer, você vai viver eternamente longe da graça salvadora do Senhor. Lembre-se: é impossível que Deus conviva com o pecado. Não tem jeito de você ter valor algum perante Deus, você não tem.

Sabe por que é que Deus olha pra você? Sabe por que é que Deus te abençoa? Sabe por que quando nós falamos com Deus Ele nos ouve? É por causa de Jesus. JESUS. Quando Deus olha pra você, ele vê algo que não vale nada; mas quando Ele coloca a lente e vê através de Jesus, você passa a ter um significado diferente. Porque Jesus morreu por você e o Seu sangue permitiu que você se aproxime de Deus e tenha comunhão com Ele de novo. Não é pelo seu valor, mas pelo valor de Jesus.

Foi mal, gente. A resenha se tornou um ensaio bem diferente do que eu esperava. Mas eu acho que vocês entendem isso. Quando a gente está acostumado com a verdade, qualquer distorção dela nos causa estranheza. E se até um cachorro late quando seu dono é atacado, quanto mais eu ao ver meu Deus rebaixado por essas falácias.

Agora cheguei na página 268. Apenas 4 páginas depois daquela que me fez ter esse ímpeto teológico acima. Na página 268 Abraão pressente que algo de ruim está para acontecer porque... ele viu nas estrelas. Sim, Abraão consulta o céu e quando uma estrela assim ou assado aparece, isto é sinal de algo ruim. Por que Abraão era convertido ao paganismo e também astrologia, aparentemente.

Distorção. 

Essa é a palavra que melhor define o livro. As qualidades literárias ficam ofuscadas pela quantidade de distorções presentes na história. Céus, eu li livros de ateístas progressistas que foram menos hereges. Foi só depois de terminar a leitura do livro que descobri que o autor é mórmon. Lendo palavras dele mesmo, deixou bem claro que ele não acredita na inerrância das Escrituras e que abertamente reinterpreta fatos bíblicos. Não me diga.

Tem coisas, meus caros, que não dá pra aguentar. Vocês vão me desculpando, mas cometerei um crime. Este livro e a continuação dele (sim, porque eu fui besta o suficiente pra gastar 17 dólares com estes dois livros) não vão ficar na minha estante. Eu sinto dizer, mas eles não vão nem pra doação. Eles vão para o único lugar que merecem ir: o lixo. Talvez o papel reciclado ainda possa ser útil.

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