segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Resenha - Writing fiction (V): Concepts of fiction

CASSILL, R.V. Writing fiction. 2nd edition. New York: Prentice Hall Press, 1986.


Enquanto em todas as outras partes do livro o autor, Cassill, vai abordar de maneira mais prática como escrever ficção, nesta parte do livro ele é assumidamente teórico e vai falar de elementos que são intrínsecos à ficção, aqueles que não há prática no mundo que resolva se você não tiver uma boa base teórica. Os elementos que Cassill ressalta são: enredo, personagens, entonação e significado.

Embora o título que ele tenha dado no original seja "conceitos" da ficção, optei por utilizar elementos por entender que isso traduz melhor a ideia. Porque Cassill utiliza o termo "conceitos" pra falar num sentido acadêmico da coisa; só preferi "elementos" porque penso que isto está mais relacionado aos componentes mais intrínsecos da ficção (o que, acho, é justamente o que ele quer dizer). Mas chega de me justificar, vamos ao que interessa.


PARTE V: ELEMENTOS DA FICÇÃO

O elemento primordial da ficção é a unidade que deve perpassar todo o trabalho, pra que ele não seja apenas um amontoado de ideias, mas realmente traduza a essência de um corpo coeso. Enquanto isto é interessante para o leitor, este é um aspecto primordial para o escritor. 

Cassill entende que, em última instância, a arte serve para imitar a vida com outras nuances. Só que tem um problema nisso. Como é que vamos expressar com propriedade a vida quando ela mesma não é uma experiência una? Isto deve ser aplicado ao trabalho do escritor, porque há uma infinidade de distrações e outras experiências que constantemente se sobrepõem umas às outras:
"Life is a constant flux, and even one man's experience is full of chaotioc diversions, inconclusive fadings away, and reappearances that seem more like new beginnings than ends." (p. 142)
Por isso, neste caos de possibilidades, o escritor deve impor alguma ordem. Ele precisa fazer um recorte e dizer: minha história vai daqui até aqui. Mas esse começo, segundo Cassill, não pode ser necessariamente lógico, pelo contrário: deve ser irracional e emocional, para depois ser seguidos de uma série de ações frias e racionais que darão continuidade ao que foi escrito. Foi o que falei em outra resenha deste mesmo livro: na Literatura, a performance antecede o ensaio:
"This passionate wish to make experience yield a particular meaning is the heart of the creative art, the initial selection from which subsequent choices flow with an increasing rational justification." (p. 144). 
No começo da história, se o escritor conseguir ver o conflito e souber pra onde encaminhar tudo, que ótimo! Mas isso não precisa ser a regra. Aliás, é até comum que o escritor comece a história usando a si mesmo como personagem, pra dar um senso de unidade logo no começo.

Existem algumas histórias cuja unidade é natural. História de romance que terminam com o casal junto, jornadas e aventuras ao desconhecido, um concurso ou jogo, uma festa ou celebração, etc. Não precisamos ter medo dessas estruturas só porque elas já estão pré-montadas: "Whenever there is an easy way to do something -- and do it right -- by all means prefer the easy way." (p. 144)

No processo de escrita, ora é o material que determina o caminho, ora é o escritor que deve se impor. E aí mais na frente é o material de novo e depois volta pro escritor. Esse constante vaivém cria boas histórias, quando escritor e material caminham para a mesma unidade. E agora, passamos então a tratar dos elementos que ajudam a formar essa unidade.


ENREDO

Há aqueles que são contra o enredo, porque dizem que ele congela o texto; e há aqueles que são tão a favor do enredo que, se ele não estiver bem delineado, condenam a obra como um todo. Ambos os lados estão corretos e errados em parte, argumenta Cassill.  Ele define o enredo desta forma: "[...] plot is no more and no less than a causal sequence of action." (p. 147). Simples assim. 

Notem que o enredo não é uma sequência apenas, mas uma sequência causal. Um mero delineamento de informações não é um enredo a não ser que elas estejam ligadas por algum nexo causal. Claro que, quando você estiver escrevendo, esse nexo não estará explícito no texto, mas será a estrutura basilar onde acontecerão todos os fatos que concatenam esta sequência.

O primeiro passo nesta sequência, via de regra, está na reação de um personagem a algum conflito inicial; esse estímulo provoca uma reação chamada de motivação, que guiará outras atitudes do personagem conforme o enredo se desenvolve, desta forma construindo-o. Cassill ressalta que tem gente que quer analisar a obra só pela "qualidade" dos motivos dos personagens. 

Embora isto seja relevante, não pode ser determinante, uma vez que as motivações são algo muito pessoal. Assim: "Their best usage is in serving as the link between character and action." (149). A questão mesmo é quanta motivação o escritor deve apresentar para que o enredo avance.

Um bom enredo, Cassill destaca, é aquele que parece ao leitor "inevitável". É evidente que nada é inevitável na ficção, uma vez que -- como já vimos em outras resenhas -- tudo é um ato de escolha para fazer a história caminhar. Para que o escritor alcance essa ilusão de inevitabilidade, ele deve considerar a unidade do texto conforme a história avança.

Isto quer dizer que ele deve respeitar as escolhas dos personagens baseado não apenas no que já passou, mas no que talvez aconteça no futuro: se meu personagem fizer isso agora, ele conseguirá passar por isto caso aconteça? Ele vai querer fazer isso? Isto vai levar minha história para onde eu quero chegar? Eu consigo guiar a história para este outro rumo? Tudo deve ser considerado.

Aqui é um ponto interessante: os personagens devem ter vontade própria sempre ou o autor deve ditar cada um de seus passos? Cassill dá uma resposta que me agrada: nenhum dos dois. Assim como disse antes, deve ser um constante jogo de vai e vem entre os dois, de forma a garantir a organicidade, mas também a unidade, do texto:
"One requirement is pitted against another, and the story grows the way a vase rises on a potter's wheel, with one hand inside and one outside, both helping to determine the form." (p. 151 -- e que frase bonita!)

PERSONAGENS

Que há muita inspiração para personagens tirada da vida real, isso há. Mas ficção e realidade não são a mesma coisa. Cassill também já havia mencionado algo neste sentido: que, por mais que se pegue gente real como modelo, a ficção é necessariamente uma criação, um artífice. Logo, apenas criar uma foto realista de uma pessoa não é suficiente. 

O que mais importa não são características físicas, mas o que o leitor compreende quando o personagem diz "Eu sou". A identidade deste elemento é o fator mais importante. E, naturalmente (olha o sociólogo/antropólogo falando), esta identidade não é una tampouco. Mesmo que alguém sirva de modelo para um personagem, ainda assim haverá elementos retirados de outras pessoas que contribuirão para a formação daquele elemento.
"A fictional character -- and particularly one who occupies a central position in a sizable work -- is a composite, then, like so many of the other elements of fiction." (p. 154)
Enquanto o enredo certamente guiará um pouco a ação e a própria essência de alguns personagens, estes não devem ser mutilados só pra se encaixarem no enredo. O leitor percebe e isso estraga tanto o personagem quanto o enredo, é característico da escrita pobre. 

Pelo contrário, um bom desenvolvimento de personagem deixará o escritor tão envolvido que em vários momentos ele pensará: "Ah, agora que isso aconteceu eu vou fazer aquilo", como se ele fosse o personagem. Depois disto feito, o bom escritor voltará ao texto com olhos racionais para identificar se e o que está adequado ao enredo.

Para Cassill, é o diálogo a mecânica indispensável para o delineamento do personagem: "Fictional dialogue can be made to render very sensitively the mental and emotional ingredients in characters whose general outlines have already been counted for." (p. 159). É por meio do diálogo, especialmente, que o personagem poderá ganhar mais profundidade.

E falando em profundidade, ela não pode se resumir a boas qualidades do personagem. Um personagem bem "redondo" é aquele que tem delineado suas motivações e paixões, mas também seus medos e hesitações. Ou seja, é tornar o personagem mais parecido com alguém de verdade. 

Por outro lado, e esta dica eu não imaginava ouvir, não são todos os personagens de uma história que devem ser profundos. Cassill diz que personagens rasos também são essenciais. Detalhe importante, porém: não é só porque eles são rasos que devem ser personagens entediantes ou chatos. É necessário que eles também sejam bem descritos, para que contribuam bem com a história.
"All fictional characters are made up of words. Observation begins the process. Identification -- acting out the part -- carries it along. But finally it is choice of language, the artifice of design and relationship to other fictional elements, that makes the character live for the reader." (p. 161)

ENTONAÇÃO

Quando nós conversamos, o jeito como nós contamos determinados assuntos muda conforme a nossa entonação; na verdade, isto muda até o significado do que estamos falando, dependendo do modo com o fazemos. Na literatura, é trabalho do escritor fazer uso das palavras para criar uma atmosfera que encaminhe o leitor ao significado que o autor quer expressar. A questão é: como fazer isso? Cassill nos dá algumas dicas.

Primeiro: apelo aos sentimentos. Algumas palavras naturalmente nos levam a imaginar alguém ou algo como gentil e delicado ("Bianca era uma flor"), outras evocam suspeição ou nojo ("Roberto, aquele verme!"). Isto é uma manobra até "teatral" para levar o leitor a pensar determinadas preconcepções sobre personagens -- mesmo que o autor resolva mudar isso depois.

Este uso da retórica tem um perigo: encher demais o texto com a percepção do escritor e não deixar espaço pro leitor descobrir. Além disso, pode gerar um efeito do tipo "falou, falou e não disse nada", em que o escritor abusa de mil e um termos pra tentar criar uma subjetividade sem abordar o que realmente importa.

Outra possibilidade seria justamente o contrário: não apele. Escreva de um jeito tão simples que o leitor fica de orelha em pé, buscando compreender o que está por trás, o que ele não consegue captar de imediato. Se o escritor não for simplista, ele é capaz de utilizar esse mecanismo objetivamente para controlar bem as expectativas do leitor.

Um exemplo desses dois é como um escritor pode se referir a uma enxada. Aquele que usa a retórica poderá descrevê-la como "um instrumento para o cultivo da terra" enquanto o segundo pode se referir a ela só como "coisa". Há, com certeza, algo entre esses dois estilos; mas tendo estes extremos em mente fica mais fácil se encontrar.

Naturalmente, o enredo também ajuda a dar a entonação final para o texto. O que acontece com os personagens ajuda a guiar o modo como eles se comportam e como o escritor utiliza estes momentos para descrevê-los. Não é raro, incomum nem errado que escritores ajustem o enredo para dar a entonação necessária.


SIGNIFICADO

Aqui eu precisei fazer uma adaptação, porque Cassill utiliza o termo "theme" pra designar esta seção. Mas não dá pra traduzir por "tema" (ainda que autor admita que há uma relação com o tema que já vimos em outra resenha), porque o que ele quer dizer, na verdade, é o simbolismo que está por trás da história. Não é a unidade em si da obra, tampouco a temática do enredo, mas o que surge da unidade da obra depois que nós a lemos. Eu já havia lido em Stephen King uma referência a algo assim e, fato curioso, Cassill utiliza o mesmo termo (vou negritar): 
"Properly speaking, the theme is what is left, like a resonance, in the reader's mind after he has recovered from the emotions and sympathies he felt while reading and even after he has forgotten the shape of the plot and the illusion of life contributed by the characters." (p. 172)

Um bom autor precisa ter cuidado para não trabalhar com significados superficiais ou simplórios. É interessante que o escritor analise seu trabalho depois de terminado e se pergunte: "Isto significa alguma coisa?". Pode ser que o escritor não consiga responder satisfatoriamente esta pergunta e precise voltar no texto para melhorá-lo -- algo natural do processo de revisão.


CONCLUSÃO

Que livro FANTÁSTICO. Olha, eu não conheço muito de livros sobre escrita e é deveras suspeito que eu fale tão bem do livro, justamente pela falta de background. Mas, gente, olha o tanto que esse livro rendeu! E veja que as resenhas não foram só encheção de linguiça, pelo contrário!, foram repletas de ensinos muito valiosos, ainda mais pra um Escritor ao Acaso feito eu!

Entendam: um livretinho de 170 páginas, das quais 68 são só textos de terceiros, trouxe muitos ensinamentos. Não resta sombra de dúvida que este livro é um clássico e me pergunto se não há até edições mais recentes. Eu mesmo faria questão de comprá-las. Fim da ópera: valeu a pena cada leitura e cada resenha. Mais do que recomendadíssimo!

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