sábado, 6 de setembro de 2025

Crônicas que eu não deveria publicar — 4

DA VEZ QUE FIZ TESTE PARA AUTISMO, MAS O RESULTADO DEU OUTRA COISA

Tudo começou porque minha esposa adora ver as blogueiras do Instagram. E aí vem o algoritmo e o céu é o limite. Moda, dicas de culinária fitness, móveis, pintura, saúde mental. Neste último tópico, aparece de tudo um pouco também: ansiedade, depressão, TDAH, outros transtornos neurodivergentes como autismo... 


"Ei, espera aí..." ela pensa, enquanto assiste a um reel no Insta sobre autismo. "Meu marido tem várias dessas características! Ele não tem um bom trato social, anda na ponta dos pés em casa, tem uns comportamentos meio estranhos..."

Pronto. Depois disso, ela se convenceu de que eu era autista. Bastava eu fazer alguma coisa estranha em casa, ou falar alguma das minhas maluquices, lá vinha ela: "Autista!" ou então "Se bem que tu tem autismo, né?". Ela não falava para ofender, era só uma brincadeira. Mas eu estava convencido de que ela estava errada. "Eu não tenho autismo!", dizia. "Ah, tá", ela respondia, irônica.

Isso durou até o dia em que eu enchi o saco e me toquei que eu pago plano de saúde (e caro!). Pesquisei o que precisava e descobri uma excelente clínica aqui que se especializou em diagnósticos do espectro autista. Consegui um encaminhamento médico e fui bater lá na porta da neuropsicóloga. Agora a gente vai ver.


#Das consultas

Cheguei lá e já fui dizendo: "Doutora, eu estou aqui porque minha esposa acha que eu sou autista, e eu quero provar pra ela que eu não sou!". Ela sorriu e me fez várias perguntas. Sobre minha infância, se eu tinha dificuldades na escola, nas amizades, no trabalho... E a tudo eu respondia: "Pelo contrário". Sempre tive facilidade na escola, creio que faço amigos com facilidade, e de modo geral julgo ser eficiente no que me proponho a fazer, especialmente em relação às artes.

— Hum... interessante — ela diz, enquanto escreve algo na prancheta. — Gabriel, você já ouviu falar de Altas Habilidades ou Superdotação? 
— Ah... já... 
— Tudo bem. Nas próximas consultas vamos iniciar uns testes pra ver o que está acontecendo.

Durante o próximo mês e um pouco, voltei ao consultório várias vezes e fiz uma bateria de testes. Tinha de tudo um pouco. Tinha um que eram uns cubinhos e tinha que montar, outro era uma sequência de letras e números que tinha que decorar e repetir separadamente, e ainda alguns testes de personalidade. Uma desgraça. Eu chegava às 17h no consultório, depois de um dia inteiro de trabalho (em inglês!) e ainda tinha que fazer testes e testes.

Eis alguns dos testes que fiz: A) WASI - Escala Wechsler Abreviada de Inteligência para Adultos; B) WAIS-III - Escala de Inteligência Wechsler para Adultos; C) FDT - Teste dos cinco Dígitos; D) BDA- Bateria Diferencial de Atenção; E) SRS-2 – Escala de Responsividade Social adulto (autorrelato e heterorrelato); F) Teste Quociente Autism-Spectrum (AQ) Adultos; G) Escala de Avaliação de Ansiedade de Hamilton; H) Escala de Hamilton para Avaliação de Depressão; I) BFP – Bateria Fatorial da Personalidade; J) Inventário de Altas Habilidades e Superdotação para Adultos (Iahsa). Lista retirada direto do laudo que recebi.  



#Do resultado

Deu que eu sou retardado, mas ao contrário.

Primeiro que não deu autismo. Tive o privilégio de ser atendido por uma excelente profissional. Nas palavras dela "um único sintoma não é suficiente pra fechar um diagnóstico". Sei que é óbvio, mas hoje vivemos uma febre de laudos, de profissionais que nem se dão ao trabalho de fazer uma investigação adequada. Dr. Gabrielle Brito foi bem enfática em dizer isso — até porque, o resultado não é só pela observação, mas corroborado por todos os testes que fiz.

Autistas têm dificuldade em ler situações sociais de modo geral. Embora meu filtro social possa ser um pouco falho, não é suficiente pra explicar, especialmente porque tenho facilidade com relações sociais de modo geral. Mas se não é autismo, como explicar as características no mínimo peculiares que apresento?

É que, sim, sou neurodivergente. Meu cérebro interpreta a realidade de uma forma específica. Uma dessas formas é a hipersensibilidade. Eu ando na ponta dos pés porque o contato com o chão gelado me incomoda. Eu uso os dentes pra puxar a comida do garfo porque não gosto do toque do talher nos meus lábios. Costumo fazer e sentir coisas com intensidade, porque é assim que meu cérebro é.

Como já dei a entender, o resultado deu que tenho Altas Habilidades/Superdotação (o termo técnico é esse mesmo AH/SD). No caso, são Altas Habilidades Cognitivas e Criativas, Motivação e Determinação, bem como Habilidades Sociais e de Liderança. Cada pessoa com Altas Habilidades tem sua combinação de áreas, nem todo mundo é igual nesse sentido.

Não chego a ser um gênio. Detesto números que nos definem, mas um gênio tem um QI de 160 pra cima. O meu QI geral é de 127, enquanto meu QI verbal é de 138. A escala de QI engana um pouco, porque ela não é linear como intuitivamente se pensaria. Por exemplo, a média da população geral é de 100, então um QI de 127 ou 138 não parece muito distante da média. 

Mas aí quando você descobre que um chimpanzé tem um QI de 70, a coisa ganha outra proporção. A distância de um QI de 70 pra 100 é um abismo! Na hora eu não tive noção dessa diferença, por isso não acreditei quando a médica disse que um QI de 138 é maior que 99% da população na minha idade. Eu jurava que ela estava exagerando, mas aparentemente, neste quesito, esse QI é "extraordinário".


Aparentemente, minha velocidade de processamento, atenção geral, leitura e contagem também estão nessa categoria de 90 a 99% acima das pessoas na mesma faixa etária, bem como memória operacional e semântica. A única categoria em que estou na média geral da população é habilidade visuoconstrutiva (ou seja, sou ruim em coisas visuais, mas isso não é segredo pra ninguém).


#Tá, mas e daí?

Naturalmente, esta é a pergunta que se segue. Meus anos de formação já se foram. Eu já sou quem eu sou. Que diferença pode fazer esse diagnóstico?

A primeira coisa é que me ajuda a abraçar quem eu sou. Sim, eu sou meio louco, porque 99% das pessoas pensam diferente de mim. Isso não é um problema, como sempre pensei, é simplesmente quem eu fui feito para ser. Se minha força reside na criatividade, nas habilidades cognitivas relacionadas à linguagem, então é hora de fazer uso disso com toda a minha força. Esse é quem Deus me fez para ser.

Segundo, preciso entender minhas limitações e trabalhar nelas. Porque a velocidade de raciocínio é mais rápida que a maioria das pessoas, tendo a tratá-las com impaciência, como se elas tivessem a obrigação de ter chegado à mesma conclusão que eu, na mesma hora que eu. Acontece que sou neurodivergente, meu cérebro processa a realidade de modo diferente. Preciso aprender a respeitar o tempo dos outros, lembrando que o valor de um ser humano não está ligado à inteligência ou à velocidade cognitiva dele. O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, e merece respeito como tal. 

Terceiro, preciso estar ciente de todas as defesas psicológicas erradas que construí durante a vida. Como sempre fui diferente, passei a depender menos dos outros e cada vez mais de mim mesmo, criando a ilusão de que eu era autossuficiente. Acontece que ninguém é, e não fomos criados para ser. Além disso, minha busca por "iguais" ou "pares" sempre me deixou frustrado. Eu nunca encontrei ninguém igual a mim. Isso é pedir muito? Aparentemente, é sim. Tem 1% de chance de eu conseguir isso. Em vez de me render à solidão, tenho que aprender a amar e viver bem com as pessoas que estão ao meu redor, mesmo se elas forem muito diferentes de mim, começar a entender que as coisas não são só "sobre mim". 

Por fim, penso que o diagnóstico me abre os olhos para que eu possa ajudar outros. Quem sabe quantos outros com Altas Habilidades estão escondidos por aí? São de 3-5% da população, mas estão aí. Mesmo eu não tendo esse diagnóstico nos anos de formação, consigo ver que Deus ainda me permitiu fazer muita coisa. O diagnóstico não define, mas ajuda. Imagine o potencial que uma criança com Altas Habilidades pode ter. 


Categorizei esse texto como uma "crônica que eu não deveria publicar" porque entendo que a linha entre a arrogância e a autoconfiança é muito tênue. Não quero flertar com essa linha. Consigo ver que na minha infância e adolescência eu era extremamente arrogante e soberbo. Sob essa perspectiva, não foram tempos bons, e eu não quero voltar a eles. Esse diagnóstico é para me ajudar a ser uma bênção e ajudar outras pessoas, é isso. Que não passe disso. 

Deus, me ajuda a ser quem o Senhor me criou para ser: imagem de Cristo para brilhar a tua luz na vida de outras pessoas por meio de quem eu sou. Da criatividade, da loucura, da beleza da Tua glória refletida em mim. Soli Deo Gloria.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Crônicas do cotidiano — XVI

DESVIO DE SEPTO

Dessa vez coisa mais simples. Apaguei tão forte que não lembro de quase nada, só me contaram as histórias depois. Eu acordando grogue e perguntando da enfermeira:

— Onde eu tô?
— Na sala de espera.
— Teve alguma intercorrência?
— Não, tudo normal.
— Meu nariz ainda tá bom?

Ela ri. Me puxam na maca por corredores que eu não consigo discernir, são só luzes e paredes brancas. Me colocam no elevador, minha esposa nos acompanha. Disseram que eu fiquei perguntando toda hora "como posso ajudar? Tem alguma recomendação?"

Chego no quarto e eles posicionam a maca do lado da cama. Não consigo entender bem, mas estão tentando me carregar. Ouço vozes.

— Assim não vai dar, tem que vir pelo outro lado, ele é muito pesado.
— Ei... — respondi, ainda grogue. — Estão me chamando de gordo!

Eles riem, me colocam em outra posição. Meio louco como estou, consigo sentir quatro pessoas agarrando lençol debaixo de mim e contando "1, 2, 3!". Eles me levantam e me arrastam para a cama, tudo de uma vez só. Eu disse:

— Eita, vocês são fortes!

Todos eles riem.

No mais, nada demais. Recuperação simples, um pós-operatório surpreendemente sem dor, só o desconforto do congestionamento nasal. Fica aqui meu agradecimento ao Dr Antenor Rodrigues e ao pessoal do Hospital Família Lotty Íris pelo atendimento ímpar! Da tia da limpeza, às enfermeiras, às nutricionistas, às psicólogas e assistentes sociais, ao pessoal da administração, todos extremamente solícitos, educados e procurando facilitar a nossa vida. Nos viam como pessoas antes de pacientes, muito obrigado mesmo.


segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Resenha — Breakers

ROBERTSON, Edward W. Breakers. Kindle Edition. 2013.


Mais um da categoria "achei de graça na Amazon" que se tornou um verdadeiro achado! Uma leitura que me segurou do começo ao fim, personagens muito interessantes, um enredo bem realista para o que se propõe. Enfim, vamos à resenha.

A história é a seguinte: era um dia normal. Em Nova York, Walt se perguntava se a namorada o deixaria de fato ou não; na Califórnia, Raymond e Mia se viravam nos 30 pra tentar pagar as contas e sobreviver em meio às dificuldades da vida. Até que um dia um vírus mortal mata quase toda a humanidade. E então os responsáveis aparecem para terminar a matança.

Trata-se, portanto, de um livro pós-apocalíptico em que a humanidade precisa sobreviver, lutando não apenas contra a natureza, mas contra a própria habilidade inata do ser humano de fazer o mal.
He didn't know when the last semblance of law had left the city, but he guessed it had been right around the same time they started stuffing the subway tunnels full of corpses. (p. 111)
No começo não botei muita fé na escolha narrativa de dois núcleos. Ou seja, em um capítulo acompanhamos a história de Walt em Nova York; no outro, a de Ray e Mia. Achei que isso se tornaria cansativo, mas foi o contrário: ficamos sempre alertas, porque o autor sabe deixar a gente com uma pulga atrás da orelha toda vez que um capítulo termina.

Pensando nos três pilares da escrita, tais como delineados por Stephen King, como já adiantei, penso que a narrativa é muito boa, embora eu creia que ele tenha falhado algumas vezes na questão da verossimilhança de alguns personagens. De qualquer forma, o autor sabe segurar nossa atenção, a leitura é bem fluida e os fatos narrados são interessantes, dá vontade de saber o que pode vir a acontecer depois. Inclusive, de certa forma, eu diria que o livro é até bem realista. 
All the dozens of sci-fi books and movies he'd absorbed over the years [...] and the best he could do was rip off one of the most widely-mocked solutions in the history of the apocalypse. (p. 305)
O segundo pilar, descrição, creio que é o ponto mais fraco do autor, em certa medida. Se por um lado ele faz excelente uso dos sentidos para nos fazer entrar na pele dos personagens; por outro, suas descrições de objetos e lugares deixam bastante a desejar. Num livro de ficção, se a descrição dessas coisas não for bem feita, o leitor fica perdido (coisa que aconteceu comigo, pelo menos na parte final). 

Em contraste, o autor se destaca no terceiro pilar, diálogo. São exímios, os personagens realmente soam como pessoas reais. Em certo ponto da história, uma pessoa foi resgatada e reclamou com seu resgatador: "Can't you steal a car?" (p. 232). O absurdo dessa pergunta na situação em que eles estavam é realmente uma bela demonstração da verossimilhança (ainda mais porque são estadunidenses). 

Quanto aos temas, creio que o autor é muito bom em ressaltar a resiliência humana, a vontade instintiva das pessoas de sobreviver, de explorar, de conhecer... e de ser feliz. Achei muito interessante ver como, mesmo diante do fim do mundo, as pessoas têm esperança e buscam aquilo que as ajuda a de fato viver. 
That was what life was about. Building times so good they felt like forever. (p. 278)
Enfim, mal consegui acreditar que encontrei esse livro de graça. E não só isso. Este é apenas o livro 1 de uma trilogia. Via de regra, não gosto de trilogias. Todo mundo quer ser o próximo Tolkien, e, claro, praticamente ninguém é. Desta vez, porém, preciso dar uma chance. É que eu preciso saber o que vai acontecer. Que livro!

domingo, 10 de agosto de 2025

Resenha — Entre lembrar e esquecer

PAZ, Mauro. Entre lembrar e esquecer. São Paulo: Patuá, 2017.


Caramba, estamos com uma enxurrada de livros bons nestes últimos tempos. Graças a Deus, estava precisando mesmo disso. Esse foi um livro que tinha uma amostra disponível na Amazon. Eu literalmente li a primeira página e nem continuei com a amostra: já comprei o livro, sabia que a leitura valeria a pena. 

É que o autor tem um jeito muito próprio de contar a história. É moderno sem ser moderninho. Faz uso dos elementos porque eles fazem sentido, não simplesmente porque quer usá-los. Olha só como começa o livro:
Depois de mudar para São Paulo, sempre que o telefone vibrava e na tela surgia o número de casa de minha mãe, eu esperava uma notícia de morte. Numa tarde de setembro a notícia chegou. (p. 5)
Em um único parágrafo o autor me traz que hove uma mudança para outro lugar, que o personagem principal tem proximidade ou carinho pela mãe (se ele tem, por que mudou?), e que houve uma morte. Foi isso que eu li e pensei: "É, não tem jeito, vou ter que comprar esse livro".

A história então é sobre um jornalista do Rio Grande do Sul que foi morar em São Paulo. Um dia ele recebe uma ligação de que seu sobrinho havia morrido e agora ele precisa voltar para Porto Alegre, onde vai ter que lidar não apenas com o luto da família, mas com as próprias relações familiares e os dramas que o fizeram um dia ir embora daquele lugar. 

O autor segue ao pé da letra um conselho que já vi em vários livros técnicas de escrita: não tenha pena do seu personagem, faça ele passar por tudo e um pouco mais. Olha, o autor seguiu o conselho à risca. De fato o personagem vai de mal a pior, e a gente torcendo por ele a todo momento. 
Mataram meu menino e, de repente, o colo ficou vazio. Parece que foi ontem. (p. 49)
O narrador faz uso excelente de uma narrativa não-linear. Acompanhamos a história presente, mas os mergulhos no passado não são sentidos como flashback, mas como pedaços de um quebra-cabeça que ajuda a construir o presente. Em suma, do jeito que uma boa narrativa não-linear deve ser. Aliás, a escrita é tão fluida que o autor só vai falar o nome do personagem principal na segunda metade do livro... e eu nem tinha percebido isso.

Ainda sobre estrutura, o autor é deveras esperto. Os capítulos curtinhos, alguns com poucos parágrafos, deixam a gente com a sensação de quero-mais toda hora e dão sensação de que conquistamos ou completamos uma pequena etapa. Ah, é só mais um pouquinho. E a curiosidade batendo, e a gente querendo saber, e vamo ler só mais um vai. 

Desde o começo fica evidente que o tema do livro é o luto. E que abordagem magistral do autor. Parece que estamos ao mesmo tempo longe e perto da cena. É uma sensação de desconexão presente, algo que quem já sentiu o luto sabe. 
Contra a morte não existe justiça ou vingança. A morte é a lei [...] (p. 5)
Se a morte é a lei, a invenção da arma de fogo foi uma emenda escrita pelo homem. (p. 67) 
A morte citada no começo do livro é do sobrinho do personagem: um menino negro que foi a uma festa num condomínio de elite em Porto Alegre e apareceu morto no dia seguinte. Ninguém viu, ninguém sabe. Polícia arquivou o caso como acidente e nem investigou. Boa parte do livro é o conflito que gira em torno de querer saber o que aconteceu de fato com o rapaz naquela noite. 

Daí é natural entender que outro grande tema do livro é o racismo. Creio que o autor soube tratar o tema sem proselitismo exagerado. Em alguns momentos, gostaria que ele tivesse me mostrado mais, em vez de só falar, deixar eu mesmo ter vivido ou sentido na pele um pouco do que o personagem passou, em vez de só apontar de longe. Mas confesso que, olhando pra trás, vejo que isso é mais preciosismo da minha parte. Não tem como negar que o autor soube abordar muito bem o tema. 
Entre a namorada branca e a família negra, mil e seiscentos quilômetros. Uma distância tão confortável quanto frágil. (p. 27)
E já que estou falando tanto de temas, lembro de ter lido em "O segredo do best-seller", que os bons livros tem um tema que compõe 30% do seu enredo, ficando os outros 70% divididos em outros 2 ou 3. Esse livro faz isso muito bem. Central é o luto. Acessórios são o racismo e os relacionamentos familiares (pais e filhos, irmãos, e até a paternidade em si), sendo que todos eles dialogam e reforçam o tema principal.

Talvez o mais triste de toda essa história, foi saber que o autor se inspirou em uma história real. Na noite de sábado, 27/04/2013, Eduardo Vinícius Fösch dos Santos, 17 anos, se despediu da família para ir a uma festa em um condomínio de luxo da zona Sul de Porto Alegre, na qual era o único convidado negro. Ele nunca mais voltou. Cinco horas depois do final da festa, gravemente ferido, foi levado ao HPS, onde morreu nove dias depois. Investigado como morte acidental pelo Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca), o caso sofreu duas tentativas de arquivamento, mas, por pressão da família, foi reaberto com dois indiciamentos e uma conclusão do Ministério Público: Eduardo foi assassinado. Notícia completa aqui.

Atualizações. 2024: a mãe morreu, sem ver a justiça ser feita (notícia competa aqui). 2025: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, aceitou a denúncia contra o Brasil de violação de direitos humanos, tendo em vista que o caso começou em 2013 e hoje, doze anos depois, ainda permanece sem solução (relatório completo aqui). Pequeno spoiler de alguém formado em Relações Internacionais: não boto fé nenhuma de que a OEA possa fazer alguma coisa.
A narrativa mantém vivos personagens que nem existiram, como Quixote ou Brás Cubas, mas se tornaram mais concretos em nossas memórias do que milhões de pessoas que deram a vida para construir grandes cidades e quase nunca se colocam a narrar. (p. 69) 
Enfim, me peguei com pena de ler o livro. É que a leitura estava tão boa que eu não queria que acabasse. Foi aquelas leituras que doem, mas doem gostoso. Leituras que ficam ressoando na nossa cabeça mesmo depois que o livro já está fechado e guardado. Certamente fiquei curioso por ler outros livros do autor. Vi que ele lançou um em 2023, vai já vai entrar pra lista. Que leitura boa, meus caros.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Resenha — Se o medo tivesse um som

SANTOS, Rodrigo. Se o medo tivesse um som. Rio de Janeiro: Mórula, 2020.


Da categoria "livros grátis que encontrei na Amazon e resolvi dar uma chance", eis que me deparo com esta curta obra de um autor brasileiro. Confesso que até achei bonzinho!

A história trata de um delegado em São Fidélis, no interior do Rio de Janeiro, que se depara com uma série de crimes bizarros na pequena cidade. Com a ajuda de amigos e um misterioso pesquisador que aparece por lá, ele precisa desvendar quem ou o que está por trás do assassinatos macabros.

Achei o começo interessante. O autor traz uma cena familiar, razoavelmente intimista. Teria como polir um pouco ainda, mas funciona bem. O uso do "ghost" no personagem também é um bom atrativo (recurso narrativo em que o autor demonstra que o personagem tem um problema do passado que ainda o atormenta, mas não diz exatamente o que é).

Enquanto lia, pelo jeito como a história se desenvolve, fiquei tentado a classificar esse livro não como um romance, mas como um conto longo. É estranho falar isso pra um livro de 54 páginas, mas a trama é bem centrada, são poucos personagens, o texto é razoavelmente conciso... E qual não foi a minha surpresa ao ver o livro no site da editora e, ora ora, ele é classificado exatamente como um conto. Pelo menos meu olhar de escritor ainda presta pra alguma coisa.

No fundo, é uma historinha boa. Dá pra perceber que o autor não tem uma voz sólida ainda, algumas falas são meio sem nexo, algumas resoluções da trama são forçadas, os personagens precisariam de mais espaço pra se desenvolver, etc. Talvez um leitor desavisado se pegue decepcionado em ver que a história se resolve muito fácil.

Pra mim, creio que ela funciona. A partir do momento que entendi se tratar de um conto, acho que dá pra justificar as escolhas. Enxergo o livreto como um degrau em uma escada. Estaria disposto a ler outras obras do autor, acho que valeria a pena dar uma chance. 

Resenha — O último adeus de Sherlock Holmes

CONAN DOYLE, Arthur. O último adeus de Sherlock Holmes. Sâo Paulo: Melhoramentos, 2001.


Voltando às origens aqui. Lembro que eu tinha cerca de 11 anos, pegava minha bicicleta (ou a pé mesmo) e ia pra biblioteca pública de Roraima. Ali descobri o mundo da leitura. Lembro de uma vez que li 30 livros em um único mês. Foi ali que descobri este personagem que me inspiraria pelo resto da vida: Sherlock Holmes.

Neste livro, assim como todos os outros de Sherlock, temos uma antologia de contos narrados por Watson, com pequenas histórias que contam um pouco do personagem, da sua personalidade e, claro, dos causos criminais impossíveis de decifrar, a não ser que você tenha a mente brilhante de Sherlock.
Uma das fraquezas mais evidentes do meu amigo era a impaciência com inteligências menores que a sua. (p. 41)
Honestamente, não há muito o que se falar aqui. A escrita de Conan Doyle é simplesmente boa demais. Não tem como. A gente fica vidrado, querendo ver o que vai acontecer. Sherlock é um personagem muito interessante, e ainda soma-se a ele o mistério próprio das tramas policiais... uf! Que belezura, meu povo.

Aliás, devo dizer que consegui deduzir vários dos mistérios. Não sei se é porque fiquei melhor nisso, ou, como falou minha esposa, eu gosto tanto do personagem que guardei as memórias no subscosciente e agora estou aqui me iludindo achando que sou o novo Sherlock. Talvez, talvez.
Precisamos lembrar do velho axioma, segundo o qual quando tudo o mais falha, o que quer que sobre, por mais improvável, deve ser a verdade. (p. 49)
Neste "último adeus" de Sherlock Holmes, a história mais interessante deve ser a última, em que vemos Sherlock envolvido em fatos da 1ª Guerra Mundial. De qualquer forma, é uma leitura que vale a pena, porque é tudo muito bem escrito.

Por fim, devo destacar que essa foi uma leitura especial pra mim. Foi a primeira vez que percebi que estava lendo pela última vez um livro. Eu não sabia, mas, para mim, este era de fato o último adeus deste Sherlock Holmes:


segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Resenha — Corredor do tempo

LOMAR, Adriana Vieira. Corredor do tempo. São Paulo: Patuá, 2023.


Então, né. Estou tentando me familiarizar com o que há de mais recente na literatura brasileira contemporânea. Um leitor atento vai ver que estou lendo muitos livros da Patuá, que é uma editora que despontou nos últimos anos e tem revelado muitos talentos. Não sei dizer muito bem se é o caso desse livro.

O livro se diz uma "novela", mas me parece mais uma breve antologia de pequenos contos em torno de uma menina e sua infância no apartamento 306, no Rio de Janeiro. São várias historietas de uma garotinha e seu lidar com fantasmas, familiares, irmãos e irmãs mais velhos, sempre acompanhada do seu palhaço de pelúcia, o Tico. 

O livro chama a atenção graças à narrativa da autora, que traz realmente a perspectiva de uma criança. As imagens são misturadas, eventos são um pouco confusos, e coisas que são importantes para adultos não fazem a menor diferença pra uma criança (como o fato de um homem ter cometido suicídio no quarto onde hoje a menina dorme). 

Há um aspecto lúdico muito evidente no jeito como a autora conta. Algo de meio turvo num mundo de adultos que fingem saber o que estão fazendo. Honestamente, apesar das dificuldades, foi isso que me fez ler o livro até o fim. 
As estações galoparam. O corredor continua no mesmo lugar: entre os quartos, o banheiro e a sala. O apartamento 306 ainda tem vista para tantos outros apartamentos, mas em nenhum deles há a teia de memórias de uma senhora cabeçuda. Continuo sonhando e tudo parece real. (p. 69)
Porém, embora eu tenha colocado bastante fé no começo, de repente o livro se tornou meio genérico. A voz ainda é algo bem único, de fato, mas só isso não basta, o conteúdo também precisa fazer valer. 

Ficou um pouco difícil estabelecer uma conexão com os personagens, especialmente quando a gente nem entende direito onde estamos. Ora me parece que a história se passa na Inglaterra, ora a autora me diz que é no Rio. Há uma desconexão tão grande entre alguns capítulos que fiquei me perguntando se não se trata de uma família britânica morando no Rio.

Além disso, embora em muitos momentos a narrativa seja quase "fofinha", em outros a autora parece que quer pesar a mão só pra mostrar que pode, uns palavreado nada a ver e que não contribuem em nada. Pra mim, isso só diminui a unidade e coesão do livro como um todo. 

Enfim, não é um livro que vai mudar a vida de ninguém, mas eu diria que pro fim ele se salva, tornando a leitura mais interessante de novo. Dei 3/5 estrelas na Amazon. No fim das contas, achei ok. É isso.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Resenha — Nem sinal de asas

DANTÉS, Marcela. Nem sinal de asas. São Paulo: Editora Patuá, 2020.


Que alívio, que alívio. Quando parece que tudo está perdido me deparo com uma belezura dessas. É difícil dizer que esse livro é um bálsamo, porque de bálsamo ele não tem nada; mas é. Porque é um sinal de que a boa literatura brasileira ainda está viva.
Toda resistência tem um limite, o seu era estar em carne viva. Ardiam camadas profundas dentro da pele. Ela era uma criança miúda e mesmo sem saber queria conhecer a sua força e até onde ela ia. (p. 32-33)
O livro conta a história de Anja (sim, é esse nome mesmo). Tímida, negra com manchas na pele, cresceu num prédio que um dia já fora um hotel de luxo. Ali teve amigos, dissabores, traumas, e sua mãe, Dulce. Aos poucos, as pessoas foram indo, foram indo, e ela foi ficando. De repente já não fazia mais falta pra ninguém. E então encontram-na morta, mumificada. Havia morrido há anos e ninguém tinha notado. 

Tudo nesse livro é impactante. A voz da autora é simplesmente sensacional. É que a autora tem voz. Ela fala como ela é, não como outro. Há certa honestidade em ler seu relato. Uma mistura de lirismo com prosa em alguns momentos, mas prosa, história, narrativa. Combinação muito interessante.
Os pés pra cima do carpete áspero e azul e o resto do corpo em cima dos pés. (p. 13)
A narrativa é um primor. A autora sabe honrar a inteligência do leitor. Ela expõe os fatos de modo não-linear e deixa pra gente juntar as peças. Às vezes nem sabemos em que tempo estamos ao certo; mas em lugar de confundir o leitor, a autora nos traz curiosidade.

No começo me perguntei se era proposital e depois cheguei à conclusão de que era sim. Há certa maestria nas frases curtas, nas sentenças com pontos finais seguidos, nas quebras de parágrafo que imprimem um ritmo bem próprio à narrativa. Se a personagem principal sente dor e faz coisas devagar, a narrativa sabe espelhar isso. O livro é um absurdo de bem estruturado.
Cuidar de idosos é conhecer o horror. É se despedir, dia após dia, da imagem romântica do velho sorridente na capa de um folheto de um lugar que só faz cuidar de idosos. (p. 71)
Tudo nesse livro é um doce meio amargo que é gostoso, mas ao mesmo tempo ruim. Os capítulos são duros e perfurantes, mas são tão macios e fluidos que a gente nem percebe. É quase impossível ler um capítulo e aquilo não ficar um gosto na boca, sabe? É meio que sem escolha que a gente fecha o livro porque aquilo fica ressoando ressoando na nossa cabeça. 

A gente torce por Anja, mas desde o começo a autora já diz que não vai dar certo, que não há por que ter esperança, é uma tragédia anunciada já no primeiro capítulo. Mas é tudo tão bem colocado que não temos escolha senão sentir simpatia pela personagem e ficarmos tristes quando as coisas dão errado.
E depois desceu de novo porque tinha que tomar as providências que se tomam quando morre alguém. Morria-lhe Dulce. (p. 100-101)
Um livro de meras 128 páginas que é capaz de ser tão marcante. Quando termina, não dá vontade de continuar, porque é triste, triste. Mas, ao mesmo tempo, é tão bom que a gente fica até a última palavra, lendo tudo, acompanhando tudo. Me diga se essa não é a sina da vida brasileira? 

Depois de ler e pesquisar na internet, percebi que não foi à toa que o livro foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021, na categoria Melhor Romance de Estreia, e do Prêmio Jabuti, na categoria Melhor Romance Literário. Faz absolutamente todo sentido. 

Que satisfação, aspira, que satisfação. Dá até vontade de ler mais literatura brasileira. Meus agradecimentos à autora. 

terça-feira, 22 de julho de 2025

Resenha — (In)fungível

MARTORELLI, Renato. (In)fungível. Patuá: 2022. Ebook.


Eu quero muito, muito dar uma chance à literatura brasileira contemporânea; mas ela não colabora. É triste dizer isso, ainda mais porque creio que esse livro tinha muito potencial. Bom, vamos à resenha.

O livro traz a história de dois personagens: Joseilton, um pobre esquizofrênico que mora na pobreza de São Paulo, e Brian Lyndon Johnson, um jovem britânico, rico e bipolar. A narrativa trata dos dois separadamente e elas se tocam brevemente no final. 

Aqui já começo a falar o que o livro tem de bom: o começo me fascinou muito. O jeito que o autor narra a vida de Joseilton é muito bom. Acho que é simplesmente porque o autor me parece honesto. Soa como se, ao contar uma história, ele simplesmente contasse uma história. Ainda se percebe um pouco de firula, mas dá pra relevar. Rapidamente eu já estava envolvido, não nego — até porque sou muito fã de drama urbano. 

Aliás, de modo geral, a capacidade de narração do autor é invejável. Cobre um tempo grande com poucas palavras e sem perder o leitor. Tem algo muito humano no que o autor traz. A lenta transição da doença de Joseilton é muito bem montada, tem um toque de frescor. Algumas circunstâncias são meio caricatas. Novamente, não é bem polido, mas é bom. 

Porém, o que o livro tem de bom acaba aí. No começo, achei que o personagem principal sofre do problema de ser muito passivo. O autor é tão suave com ele que o rapaz parece não ter traços firmes de personalidade. Algumas mudanças bruscas de comportamento, por exemplo, sem nenhum setup prévio, tornam o personagem menos crível. Mas isso era apenas a ponta do iceberg.

Enquanto o autor é ótimo em narração, é triste ler seus diálogos. Mas assim, triste mesmo. Mesmo. De dar raiva e pena ao mesmo tempo. Não parece duas pessoas conversando, mas dois bonecos sem vida humana. Se isso já era evidente na narrativa mal polida, nos diálogos é que se escancarou de vez. 

O autor testa a nossa paciência desnecessariamente. Enquanto na narrativa inicial temos algo de visceral e humano, na parte em que o personagem Brian é o principal, tudo soa artificial. Os personagens parecem os mesmos, são superficiais, a narrativa ainda é razoável, mas é o tipo de coisa que não compensa. 

Não bastasse a artificialidade dos personagens, o autor ainda consegue piorar a situação inserindo vários diálogos que não levam a absolutamente lugar nenhum. Os personagens do nada começam a discutir temas profundos, o que deixa evidente que o autor só queria filosofar e encontrar uma plateia pra seu blablablá. O autor usa isso como um recurso narrativo barato e é de tão mau gosto que salta aos olhos do leitor. 

Ainda no quesito personagens, parece que o autor só sabe escrever dois tipos de personagem: o indignado e o manda-chuva. O indignado se exaspera com tudo, fala palavrão, é um descontrolado que quer ter razão. O manda-chuva, por outro lado, é o que sempre fala calmo, que está por cima da carne seca. Todos, TODOS os personagens do livro preenchem esses dois papeis uma hora ou outra. 

Os personagens não são personagens, são marionetes que se encaixam nesses papeis. Não têm personalidade, não tem vontade, não dá vontade de ler. Na verdade, o autor, sem saber, se descreveu na seguinte citação:
[...] as suas letras denotam sentimentos forçados e desejos afetados, sem qualquer naturalidade e conexão com o público em geral. (p. 101)
Sabe, é triste. De verdade, dá pena. No começo do livro o autor traz uma abordagem única e fascinante: um personagem principal esquizofrênico. Aí quando retornamos a esse personagem esse traço é simplesmente ignorado (*emoji de palhaço*). Pior: até agora estou tentando descobrir qual foi  o propósito narrativo em inserir um segundo personagem principal da Inglaterra numa história que já estava tão boa com um personagem brasileiro.

De novo, não posso negar que o autor tem estamina. O cara tem fôlego pra escrever. Honestamente, é de impressionar que a pessoa aguente escrever 312 páginas disso e lidar com esses personagens por tanto tempo. Enfim. Foi bom enquanto durou, pena que durou pouco. Do meio do livro pro fim, o autor me fez (novamente) desgostar da literatura contemporânea.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Resenha — O vale dos mortos

OLIVEIRA, Rodrigo de. O vale dos mortos. São Paulo: Faro Editorial, 2014.


Novamente um livro que me foi doado. Geralmente não doamos coisas ótimas, talvez coisas boas. Por isso minha expectativa não estava tão alta sobre o livro, ainda mais por se tratar de um autor contemporâneo. Olha, que grata surpresa!

A história tem uma premissa atraente. Por milênios, houve um planeta oculto no Sistema Solar chamado Absinto. Ele passa perto da Terra e veem-se centenas, milhares de pequenos pontos brancos saindo da Terra em direção a ele: são as almas de dois terços da população mundial. Sem alma, os corpos dos que se foram se transformam em zumbis, e o último terço restante da humanidade agora tem que tentar sobreviver. 

A história se passa no Brasil (não surpreende, o autor é brasileiro), mais especificamente em São José dos Campos. Ivan e Estela estão no shopping com seus dois filhos quando o cataclisma acontece e eles se veem cercados de zumbis. Eles então precisam dar um jeito de sobreviver, ter acesso a comida, água, armamento, e tentar formar uma comunidade de sobreviventes para resistir neste novo mundo.

De acordo com Stephen King, os três pilares da escrita são narração, descrição, e diálogo. Os três são importantes, embora nem sempre absolutamente necessários. Este livro tem boa narração e razoável descrição, só peca nos diálogos

Infelizmente os personagens agem como pessoas reais, mas não falam como tais. São frases bem artificiais, com poucas exceções. Na maior parte das vezes, parece que o autor quer fazer os personagens soarem de um modo específico, em vez de simplesmente deixar eles falarem. Do meu humilde ponto de vista, esta é a marca de um autor iniciante. Não me surpreende que este seja o primeiro livro do autor (pelo menos acho que é). Mas, se isso é o que o autor faz de pior, mal posso esperar pra ver outras das suas obras!

Enquanto achei os diálogos bem ruinzinhos, não posso dizer o mesmo da narrativa e da trama. O autor consegue fazer exatamente aquilo que eu busco quando leio: ser transportado para outro mundo. De repente eu não estou mais sentado numa cadeira lendo o livro, eu estou lá em São José dos Campos, desesperado junto com os personagens, tentando entender como vamos fazer pra sair vivos dessa. 

É muito interessante ver que o autor conta a história sem pressa. Dá um pouco de agonia, mas acho que isso serve à historia. Aliás, tem muitos momentos de tensão, e dá vontade de continuar lendo — a marca de um bom livro. 
O som da metralhadora encheu o ar, deixando o resto do mundo em silêncio, por instantes. A maioria deles ficou atônita por alguns segundos. Então aquele era o som da guerra? (p. 193)
Sinto no livro alguns traços de Júlio Verne e Arthur C. Clarke, com aquela ficção científica hard, que buscava, de fato, argumentos científicos para embasar sua ficção (ainda que as explicações científicas fossem, naturalmente, meio absurdas). Tem um quê de informativo em alguns momentos, trazendo fatos sobre o local ou o ambiente que, no fundo, não acrescentam muita coisa pra história. 

Aliás, o livro tem muitas pontas soltas ou cenas que pouco contribuem. No começo elas me incomodaram, mas pelo pouco que vi na internet, parece que o livro tem continuação. Presumo, então, que muitas dessas pontas são trabalhadas nos outros livros.

Em termos de enredo mesmo, se o livro tem um defeito pra mim, é que os zumbis pouco influenciam na história. Sei que é estranho dizer isso, mas depois do embate inicial, os zumbis são como uma coisa qualquer. Por exemplo, ninguém sequer é mordido por um zumbi e se transforma. Os caras vão lutar contra os bichos sem arma de fogo... e ganham, tranquilos. Se o livro é sobre zumbis, esperava que eles tivessem uma participação mais efetiva na história.

Mas dá pra perdoar porque o drama humano é realmente a alma da narrativa. Isso é bem comum em livros de sobrevivência: dizer que o problema não está na catástrofe que tem potencial pra destruir a humanidade, mas na própria humanidade. Creio que o autor faz isso bem em certa medida. Tenho a impressão que ele ficou com um pouco de receio de pesar a mão nesse assunto; mas penso que o que ele fez, fez razoavelmente bem. 

Enfim, pra mim esse tem clara de um romance de estreia e, como já pesquisei, o autor tem outros livros. Se o cara consegue fazer isso num romance de estreia, mal posso esperar pra ver o que mais ele preparou! É até difícil de acreditar, mas estou animado pra ler literatura brasileira contemporânea! É de tirar o chapéu pro autor. 

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Resenha — Os demônios

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Martin Claret, 2020.


A sorte é que arrependimento não mata. Estava todo orgulhoso com minha meta de ler a obra completa de Dostoiévski, mas já me arrependi. Nem tudo na vida são flores. Meu Deus, que livro chato.

É até difícil dizer do que se trata a história. São tantos núcleos, e vários deles com tantos assuntos desconexos que não sei por onde começar. Nas primeiras duzentas páginas a gente acha que a história é sobre um escritor falido e sua relação platônica com a mecena que o sustenta; depois parece que a história é sobre o filho da velha rica; depois a história vira sobre o filho do escritor falido. Aí no final já não sabemos mais de nada.

O livro tem muitos problemas. Tem descrições e narrações longas que não contribuem em NADA para a história; tem diálogos sem fim que não chegam a lugar nenhum; tem mais de 700 páginas que, se fôssemos honestos, poderiam ser resumidas em 200 e estaria de bom tamanho. Esse livro é a decadência de Dostoiévski. Parece até Jane Austen de tão chato.

Li até o fim porque todo mundo disse que no final ele ficava bom, que valia a pena aguentar a chatice. Não acreditem nisso, é mentira! O livro ganha fôlego na terceira parte (terceira!), mas logo se perde, o personagem que nós acompanhamos é colocado de escanteio, outros surgem e o livro trata como se a história toda fosse sobre eles. É uma encheção de linguiça que nunca vi igual.

Não tem como fazer bons debates sobre os temas trazidos (revoluções, sociedade, niilismo, ateísmo, etc), porque eles ficam afogados no mar de coisas supérfluas. Tem algumas frases legais, algumas reflexões bem nível Dostoiévski... mas não dá vontade de citar, não dá ânimo. A gente se sente traído, enganado por ter desperdiçado tanto tempo.

É o tipo de coisa que não vale a pena. Não perca seu tempo com esse livro, vá ler Irmãos Karamazóv ou alguma das noveletas menores. É muito mais proveito de Dostoiévski.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Resenha — O clube de xadrez da morte

DONOGHUE, John. O clube de xadrez da morte. Rio de Janeiro: Rocco, 2021.


Esta foi uma daquelas gratas surpresas que acontecem quando pegamos um livro ao acaso e nos deparamos com uma boa história. Ainda melhor quando percebemos que o autor sabe o que está fazendo, sabe conduzir as cenas, sabe narrar de modo adequado, enfim. Vamos à resenha.

Trata-se de uma história fictícia, mas ambientada na Segunda Guerra Mundial. Acompanhamos a saga de Emil Clemént, um judeu francês preso em Auschwitz. Lá, seu talento com o xadrez vai garantir a sua vida e pode até salvar outros judeus da câmara de gás. Tudo isso enquanto lida com a dinâmica terrível do campo de concentração, onde prisioneiros maltratam outros prisioneiros e líderes nazistas mantém controle ferrenho sobre tudo que acontece.
A estrutura do livro tinha tudo pra dar errado, por isso me surpreendeu bastante que tenha dado certo. O autor opta por fazer uma narrativa alternada. Ao mesmo tempo em que relata os acontecimentos dentro do campo de concentração, também faz os personagens se encontrarem 20 anos depois para lidarem com os fantasmas do passado e seus próprios relacionamentos.

Esse é o tipo de estrutura que tem tudo pra ficar caótica ou clichê, mas preciso reconhecer que os cortes de cena são bem montados. Não parece que estamos acompanhando uma história e de repente vem um flashback; parece que estamos acompanhando a mesma história acontecendo em vários tempos simultaneamente.
Os outros prisioneiros começam a respirar de novo. Eles não se importam com quem o destino escolheu para morrer nesse dia, desde que não tenham sido eles. Não é porquetenham o coração frio por natureza. É simplesmente assim que as coisas são em Auschwitz. (p. 56)
O livro é evidentemente uma ficção histórica, mas nem por isso é menos real. A verdade é simplesmente que a guerra é um grande absurdo e a crueldade humana consegue ser ainda pior. A história, ainda que fictícia, retrata a realidade de Auschwitz — uma realidade absurda.

Também penso que boa parte do que torna essa história tão real são os personagens e as relações humanas presentes em toda a história. O livro não é sobre xadrez, sobre Auschwitz, nem mesmo sobre nazismo. O livro é sobre ser humano em tempos difíceis — sejam eles de guerra ou de paz. Sim, porque o livro nos convida a pensar se é possível ser humano em tempos de paz também, ainda mais uma paz marcada pelas atrocidades da guerra.
Mas o Häftling [prisioneiro] número 163291 fez pé firme.
— Sempre se tem uma escolha, Herr Hauptsturmführer [Senhor Capitão], caso se esteja disposto a aceitar as consequências. (p. 142)
Enfim, me deu pena quando o livro terminou, porque eu queria mais. Li até a última página, incluindo glossário, agradecimentos e comentário histórico, e ainda achei pouco. Como falei, foi um daqueles livros que me surpreendeeu muito e deu pena quando terminou. Livro bem escrito, emocionante, ressoante (que faz pensar)... nem parece literatura contemporânea.

Por mais livros que nos surpreendam.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Resenha — Mind Machines

ZALES, Dimas. Mind Machines: Human++ (Book 1). New York: Mozaika, 2016.


Fico extremamente triste quando vejo um livro que tem potencial para ser bom, mas que é desperdiçado por insistir em obedecer a fórmulas do mercado do que é uma boa história. Infelizmente, a fórmula é falida e seu livro se torna apenas mais um entre muitos. Bom, vamos à resenha.

Neste livro de ficção científica, acompanhamos a história de Mike Cohen, um filho de imigrantes russos que mora nos EUA. Mike é multimilionário e investe parte de sua fortuna numa nova tecnologia chamada "Brainocytes", robôs nanotecnológicos que são injetados na corrente sanguínea de uma pessoa e vão para o cérebro, onde aprimoram os neurônios e a pessoa. Ele faz isso porque sua mãe tem Alzheimers e ele vê nisso uma chance de salvá-la.

Essa premissa me fez botar bastante fé na história, me pareceu que seria sobre família. Ele tem um parzinho romântico (Ada) que é uma cientista no projeto, um outro amigo russo rico (Mitya), e um primo considerado perigoso por seu passado criminoso (Joe). Porém isso não durou.

Preciso confessar que vejo que há certa maturidade na escrita do autor. Não foi à toa que os primeiros 55% do livro foram bem agradáveis de se ler. O cara realmente sabe escrever, não só os diálogos, a narrativa, mas até as elocubrações filosóficas sobre o uso de tecnologia e seus impactos na sociedade me fizeram pensar que este seria um bom livro de ficção científica, daqueles que fazem a gente pensar.

Porém, como disse no primeiro parágrafo, logo o livro caiu nos clichês. A mãe do personagem principal é raptada e de repente não estamos mais lendo um livro sobre família, virou uma história de ação estilo 007, onde agora personagens com cyber-poderes vão até a Rússia para invadir uma instalação militar e salvar a mãe do protagonista. 

Cara, deu pena ver isso acontecer. O livro perdeu toda a razão de ser, virou só mais um clichê porque (presumo eu) o autor pensou que talvez isso pudesse virar filme. É a única explicação que consigo pensar. Desperdiçou todo o potencial de explorar os limites da humanidade, de ver até onde a tecnologia pode realmente ajudar, de questionar o que torna o humano, humano.

Além disso (ou talvez, por causa disso) logo os personagens ficam em segundo plano, e só o que importa é a ação propriamente dita. Os personagens não evoluem, permanecem o mesmo do começo. Não há nenhum claro problema a ser consertado neles, o arco é apenas uma série de eventos (deveras, até interessantes em certa medida), mas que são apenas eventos.

Segue-se que só nos interessamos nos eventos, não nas pessoas, elas se tornam bem esquecíveis. O personagem principal apenas ganha mais poder por conta da experiência que viveu, mas psicológica ou moralmente não muda nada. Ou seja, fez toda a jornada do herói só pra voltar pra casa o mesmo que começou. Em outras palavras, fez a jornada por nada.

Enfim, é a tristeza de ver clichês e mais clichês. Daí a minha grande dificuldade em ler literatura contemporânea. Pra mim ela é toda igual. Quero estar errado, mas esse livro não está ajudando. Infelizmente não ficará na minha estante — mesmo sendo ebook.

sábado, 26 de abril de 2025

Leitura não concluída — Little Women

ALCOTT, Louisa May. Little Women. Amazon Classics, Kindle Edition, 2017


Outra leitura que não deu pra aguentar. Fui até 25% e percebi que já não estava mais valendo a pena. Little Women é simplesmente um livro chato. Pra todos os efeitos, é praticamente um livro sem enredo definido. O ritmo é lento, mas o pior mesmo são as descrições intermináveis de eventos tão simplórios. Me parece uma Jane Austen — aquela escrita vitoriana, que quer contar tudo nos mínimos detalhes (mas que não fazem diferença nenhuma pra história).

Não posso negar que as personagens são interessantes, que a autora é capaz de mostrar a beleza da vida simples e comum (com vários momentos emocionantes até) — mas tudo isso fica eclipsado pela falta de uma linha que carregue o enredo pra frente. A autora precisa que o leitor simplesmente "queira" conhecer as personagens pra que a leitura siga adiante. O livo, na verdade, parece mais uma série de pequenos contos sobre as personagens do que um romance. 

Nestes termos, talvez essa seja mesmo a proposta do livro e por isso não aguentei terminar — porém convenhamos que 46 capítulos de lenga-lenga é difícil de engolir, especialmente quando muitos dos dramas são meio "frufrus", macios, há uma boa dose de proselitismo no livro (o que, inclusive, me faz pensar que este é um livro infantil, na verdade).

Isso tudo torna a leitura bem entendiante. Mesmo com personagens bem trabalhados, é difícil ficar preso a um livro que não conta uma história. Parece mais que estou vendo uma série de pinturas em cenas do que uma narrativa coesa. 

Entendo que o livro tem uma importância acadêmica e social, não tiro a validade disso. Porém, como leitura por prazer (que é o que faço), está longe de ser uma boa opção. Não deu nem pra terminar.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Resenha — Contos amargos

MORALES, Alessandra; MACHADO, Allana; CATÃO, Bruno; MENDONÇA, Paulo Vitor Mendonça. Contos amargos. Indaiatuba: Pen Dragon, 2016. Ebook.


Nossa, quanta decepção. Isso aqui era pra ser uma antologia de contos amargos, tristes, chocantes, dramáticos. A ideia é interessante, ainda mais pra mim que sou um escritor hiperrealista e ama retratar a sociedade e as pessoas tais como elas são. Mas esse livro não passou nem perto de ser bom.

Os contos na sua marioria começam bem, mas parece que têm medo de se levar a sério — sendo que visam tratar de temáticas sérias. Cria-se uma desconexão e o leitor fica meio que a ver navios no fim. De modo geral, são todos mal escritos. Me soam como algo a ser esperado de adolescentes que participaram de um workshop de literatura. Ou seja, têm ali algum potencial, mas claramente não é bom ainda, tem que trabalhar muita coisa. 

Li o livro até o fim na esperança de encontrar nele alguma coisa que servisse. O título do livro é contos amargos, mas amargo mesmo é o tempo que a gente perde lendo essas histórias. A cada novo capítulo eu me obrigo a dar uma chance, uma oportunidade de ler uma história bem escrita. E o duro é que, como falei, muitas começam bem... mas só começam. Isso torna ainda mais amargo chegar no final e perceber que a história e o meu tempo foram perdidos.

Acho que o que mais me apavora é ver que esse livro foi escrito a quatro mãos (oito, no caso). Me assusta que os autores tenham escrito esses textos, enviado uns aos outros e no fim tivessem achado bom. Não é possível uma coisa dessa. 

Pra mim que eles ficaram naquele constrangimento típico do brasileiro que sabe que a coisa não está boa, mas não tem coragem de falar, pra não ofender a outra pessoa. Se foi isso, optaram por ofender o leitor em lugar do autor — ou pior, e mais horrível: eles realmente achavam que os contos eram bons.

Esse livro só confirma tudo que já vi da editora Pendragon: qualquer um que pagar pra publicar consegue publicar qualquer bosta. Seria melhor a editora ter se chamado de gráfica logo porque ficava menos feio. TODOS os títulos que já peguei da Pendragon são péssimos e perda de tempo. Talvez não seja de surpreender que a "editora" fechou as portas no começo desse ano. É função de bons editores evitar que porcarias como essas cheguem ao público.

Enfim, o livro foi uma perda de tempo e fiz questão de deletá-lo permanentemente da minha biblioteca de livros digitais. É o timpo de coisa que nem vale a pena. Fica aí o aviso sincero.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Leitura não concluída — Agent Zero

MARS, Jack. Agent Zero. 2019. Ebook. Acho que é autopublicado. 


Graças a Deus isso foi de graça na Amazon. 

Assim, é bem escrito, dá pra ver que o autor tem certa maturidade, mas não tenho muito mais a dizer além disso. Não aguentei terminar. Li 25% do livro (até a página 103!) e já foi forçando ali no final. 

O problema todo do livro é que ele é SUPER CLICHÊ. É um professor universitário de História (sempre é alguém assim, né?) que é raptado e descobre que tem um chip de supressão de memória instalado no cérebro. Ele não é Professor Lawson, ele é na verdade... Keen Steele, Agent Zero! Wow, scadush, boom!

Cara, é clichê atrás de clichê. O pior mesmo é ver o personagem principal fazendo tudo "sem saber" como fez. Tiram o chip da cabeça dele, imediatamente ele sabe lutar, desarma os bandidos, mata 4 e consegue fugir. Sabe falar inglês, francês, alemão e arranha no russo. É simplesmente clichê demais. As cenas são as mesmas: ele fazendo graça de bonzão, Europa super conectada, ele sabe fugir, sabe onde está, sabe o que tem que fazer. Ele sabe tudo!

O livro não é nada nada original. Eu teria ficado muito mais curioso se em lugar de já saber de tudo, ele decidisse que não quer ser esse agente secreto, que gostava mais da vida anterior. Ou então que, mesmo depois de ter o chip tirado, ele continuasse sem lembrar de nada, e ainda assim tivesse que sobreviver e dar um jeito de salvar a família. Essas premissas em si já seriam muito mais interessantes!

Em vez disso somos forçados a ler goela abaixo uma história que já vimos acontecer várias e várias vezes. Digo mais, se fosse pra ver esses clichês, era melhor assistir algum filme de Missão Impossível. 

Realmente não deu. Stephen King ensina que todo escritor deve ler muito, visto que a leitura é o combustível criativo da escrita. Porém, ele mesmo argumenta que não se deve ler qualquer coisa. Nosso tempo na Terra é limitado, você não pode ler tudo. O conselho dele então: leia o que é bom.

Aprendendo com o mestre. 
Leitura sequer concluída.

domingo, 20 de abril de 2025

Resenha — O cortiço

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Brasília: Edições Câmara, 2018. Ebook.


A coisa começou bem quando percebi que esse foi um livro que consegui de graça na Amazon. Confesso que tenho achado bem interessante a leitura no Kindle. Nunca fui contra os ebooks. Embora prefira os físicos, livros virtuais são tão bons quanto seus antepassados quando acertam na escrita. Ou seja, uma história boa será sempre uma boa história, tanto faz o suporte em que se encontre. Enfim, vamos à resenha.
E ali, naquela estreita salinha, sossegada e humilde, gozavam os dois, ao lado um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após um dia inteiro de canseiras ao sol. (p. 75)
Bom, trata-se de um clássico escrito em 1890. Há resenhas, resenhas, estudos e estudos sobre esse livro, por isso me detenho em dar minhas impressões apenas. A história é conhecida de João Romão, que criou seu cortiço ao lado do terreno da sua venda, com ajuda da escrava Bertoleza. Não tardou, o cortiço passou a ser seu próprio microcosmos, trazendo personagens com seus próprios dramas como Pombinha, Jerônimo, Bruxa, Machona, Rita Baiana, entre outros. E, do outro lado, ainda apareceu o Miranda, representante da "boa" sociedade da época. 

Confesso que talvez eu esteja tão acostumado com a higienização da literatura, que confesso que não esperava encontrar em "O Cortiço" uma temática tão sexualizada. O sexo (seja na fornicação, no adultério, ou no comércio) é um tema que está sempre em voga, nas mais diferentes esferas da sociedade do livro. Não é à toa que este sempre foi um assunto muito presente na música ou literatura.

Chamou-me a atenção também perceber que O cortiço é um romance de narrativa multifocal, coisa que não vi acontecer com frequência em livros mais antigos. Se hoje estamos acostumados com Game of Thrones ou livros de fantasia que lidam com vários personagens ao mesmo tempo, creio que Aluísio estava à frente do seu tempo ao explorar esse tipo de narrativa.

Mas, honestamente, foi o conceito humano que mais me chamou a atenção em O cortiço. Aluísio me soa exageradamente como um Érico Veríssimo. Ou, devo dizer, Érico soa como um Aluísio: extremamente humano, com uma capacidade descritiva bem própria, de quem fala tudo da pessoa mesmo falando pouco. Como Érico é a minha referência, posso dizer que Aluísio me soa como se Érico fosse das antigas. A narrativa é interessante, e os fatos chamam a atenção, mas são os personagens com sua humanidade que nos cativam.

É muito interessante. Parece que estou lendo vários episódios da Grande Família mas com tudo acontecendo no século XIX. É deveras a balbúrdia da sociedade brasileira na sua maior nitidez. É tão claro que a história se passa em 1890, mas eu enxergo nela o Brasil de hoje. É vizinho se xingando, é parente se invejando, é homem fugindo com mulher, é mulher traindo com outro homem, é gente fazendo falcatrua e no fim do dia sentando à roda de samba pra beber com os amigos.

Aliás, nesse quesito, Aluísio Azevedo é capaz de escalar a tensão da cena do jeito que só quem já viu uma desavença brasileira se desenrolando pode compreender. É absurdo atrás de absurdo, eita atrás de vish, Brasil atrás de Brasil.

Enfim, esse livro me surpreendeu muito porque me assusta em ver que desde 1890 o Brasil já era Brasil. Um cenário quase desalentador. Mas, como bom brasileiro, não tenho outra opção senão sorrir e balançar a cabeça, num meneio de só quem sabe o que é o Brasil pode entender. Finalizo com essa citaçao de Aluísio Azevedo que nos descreve tão bem:
Uma algazarra medonha, em que ninguém se entendia! (p. 53)

domingo, 13 de abril de 2025

Leitura concluída — Mistborn trilogy


Estou aqui me perguntando se li alguma série de fantasia melhor que essa. Nárnia me vêm à cabeça, e, quando muito, alguns livros soltos (Trílio Dourado, por exemplo). Mas honestamente acho que nunca li uma série tão madura e tão bem escrita como essa. Não tive escolha senão ler de ponta a ponta. É um exagero de bem escrito e planejado.

O primeiro livro é impecável, fisga a gente e não deixa escolha. O fim do segundo me deixou um pouco chateado, pareceu forçado. E o fim do terceiro... bem, não sei como me sentir ainda. Certamente resolveu as pontas soltas e também trouxe reviravoltas literalmente até o último capítulo. Talvez a temática tenha me atrapalhado um pouco. Mas que é bem escrito isso é. Outro nível de escrita.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Resenha — The War of the Worlds

WELLS, H. G. The war of the worlds. Amazon Classics, Kindle Edition, 2017.


Ok, vamos lá acabar logo com esse sofrimento. Descobri que, infelizmente, não gosto de H. G. Wells — na verdade, eu já sabia, mas tentei me enganar e dizer que na época eu não sabia apreciá-lo. Desculpem-me, deve ser uma questão de (mau) gosto. Pelo menos o livro foi de graça. Vamos à resenha.

The war of the worlds ou "Guerra dos Mundos", em português, é um clássico da ficção científica. Acompanhamos a história de um narrador sem nome, na Inglaterra do fim do século XIX, que se vê no meio de uma invasão alienígena oriunda de Marte. Os marcianos vêm à Terra para colonizá-la e transformar o lugar em seu novo planeta, exterminando qualquer um que ouse se opor a eles.
"Why are these things permitted? [...] What are these Martians?"
"What are we?" I answered, clearing my throat. (p. 45)
Meu grande problema com o livro não é por falta de qualidade ou erro do autor, mas é simplesmente porque o livro foi escrito em outra época. Estamos falando de um mundo que não é agitado como o nosso, não é intenso como o nosso, logo é evidente que os livros daquela época terão um ritmo diferente dos de hoje. 

Minha impressão, portanto, é que o livro é lento. Poxa, estamos falando de uma invasão alienígena! Será que as coisas são tão parcimoniosas mesmo como o autor narra? Será que precisa mesmo descrever cada pequena cidade ou estrada por onde o narrador passa na sua fuga? Não seria mais interessante falar como ele está se sentindo e como essa ou aquela estrada impactam diretamente na sua própria história?

Como falei, o livro é reflexo de seu tempo, por isso, no estilo dos clássicos de ficção científica daquela época, em alguns momentos o livro parece mais uma enciclopédia do que uma história em si. Aliás, o livro tem uma pegada bem naturalista extrema, que considera o ser humano como cérebro apenas e todo o resto como acessórios. 

Entendo que os temas do livro são bem interessantes. O autor estava bem à frente do seu tempo em imaginar as grandes máquinas alienígenas, a capacidade de comunicação sem palavras, e até mesmo os argumentos de que os marcianos eram mais desenvolvidos justamente por não fazerem uso de coisas que nós humanos fazemos, mas que seriam superficiais.

Na história, percebi que o autor constantemente ressalta a ignorância das pessoas de um perigo iminente. Creio que isso é central para ele e é até um tema bem importante de ressaltar. Mas, ah mano, um monte de gente morre pra um raio mortal dos aliens e fica por isso mesmo? Tipo, a vida segue normal na cidade vizinha? Ninguém sentiu falta dos entes queridos e foi averiguar? É muita apelação. Mesmo numa era em que não havia comunicação instantânea, ainda haveria comunicação.

A narrativa em si é muito rasa, é só o protagonista andando de um lado para outro e fugindo. Eu diria que há apenas um único momento em que se revela a personalidade do narrador e seu modo de encarar o mundo — refiro-me à cena em que ele está escondido na casa com o pároco. As descrições me soam muito supérfluas e os diálogos são escassos (embora razoavelmente relevantes quando acontecem).

Do meu ponto de vista, a história finalmente fica interessante quando chegamos na marca de 84% do livro, mas aí já é tarde pra mim. E, honestamente, o final é decepcionante. O protagonista não tem relevância nenhuma na história, não passa de um espectador com quem mal temos empatia. Fica difícil defender. 

Bom, enquanto não nego que Wells tinha uma imaginação muito à frente do seu tempo, sendo capaz de prever coisas que a humanidade nem sonharia mas que hoje são quase "naturais" para nós, infelizmente não consigo dizer que curto a narrativa dele. Perdoem-me a franqueza, mas preferi ver o filme.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Resenha — Mountain of lies

EVANS, Jayne. Mountain of lies. Kindle Edition. 2016.


Ok, não sei nem por onde começar. Via de regra eu evito ler autores contemporâneos porque, me desculpem, muita coisa que tem por aí é simplesmente ruim. Se é verdade que democractizou-se o acesso ao mercado literário, também é verdade que com essa democracia veio uma enxurrada de autores medíocres, que publicaram só pra dizer que publicaram mas não têm qualidade nenhuma. Estou muito feliz em dizer que este não é o caso deste livro.

A história desse livro é um romance policial se é que tal gênero existe. A autora conseguiu mesclar muito bem uma história romântica entre Mia e Hudson, ao mesmo tempo que insere nisso um bocado do suspense e adrenalina que vemos em histórias policiais, como traficantes, ameaças de morte e serial killers. 

Eu ainda não tinha visto algo do tipo e achei uma sacada interessantíssima. Tanto é que mesmo eu não curtindo histórias românticas, li o livro do começo ao fim, sempre muito ligado na história, querendo saber o que ia acontecer e torcendo pelo casal ao mesmo tempo.

Aliás, a autora é bem inteligente em construir a narrativa romântica. Como leitores, queremos que eles fiquem juntos, mas a autora constantemente os empurra em direções opostas, o que deixa a gente com uma agonia danada pra ver o que vai acontecer. Honestamente, é uma aula de como escrever histórias românticas, utilizando cada ato do livo de maneira deliberada a intensificar o conflito e aumentar a satisfação pela sua resolução.

Cheguei a estudar como escrever histórias românticas. Não lembro bem os detalhes, mas lembro que cada cena do livro deve sempre ser utilizada de forma a intensificar a história do casal; além disso, no primeiro ato, o casal ignora o amor; no segundo, eles dão uma chance para o amor; no terceiro, eles lutam pelo amor. A autora seguiu a cartilha à risca e o fez de forma tão elegante que não tenho como não tirar o chapéu para ela.

Aliás toda a escrita da autora demonstra um nível de maturidade que poucos autores têm. Surpreende-me ver que este foi o primeiro livro da autora, me pergunto se ela já não publicou por aí com algum pseudônimo. Veja só, por exemplo, a frase de abertura do livro:
The only reason she wouldn't win this year's Darwin Award was because they'd never find her body. (p. 4)
As descrições são elegantes, inseridas dentro de falas ou narrações, quase despercebidas. A autora é eficiente em usar outros elementos do texto pra aumentar a sua densidade. Além disso, fica evidente que ela sabe escrever para as massas, onde até as cenas quentes são bem trabalhadas na medida que atinja o grande público sem serem tão explícitas.

E a história em si é muito boa também. A autora soube construir bem os personagens, a gente fica de fato intrigado com o passado sombrio deles (excelente uso da técnica de "ghost") e ao mesmo tempo torcendo que eles abram mão das suas próprias máscaras para que fiquem um com o outro.

Engraçado que a gente torce por um final, tem quase certeza que ele vai acontecer, e quando acontece ainda assim nos emocionamos. Ou o livro é muito bem narrado, ou, assim como Érico Veríssimo dizia, sou uma vaca sentimental. Ou ambos.

Enfim, não tenho mais o que dizer do livro senão afirmar que é uma excelente leitura. Eu já quero até ler os outros livros da autora. Não é sempre que encontro algo tão bom na literatura contemporânea. Espero que a autora continue a escrever livros tão bons quanto esse.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Resenha — Max and the multiverse

WHEELER, Zachry. Max and the multiverse: book one. Mayhematic Press. Amazon KDP, 2017.


Ok, então né. Esse aqui entra pra categoria de "ainda bem que foi de graça". Encontrei este ebook em promoção na Amazon e achei a premissa interessante. Max é um jovem terráqueo que, toda vez que dorme, acorda em uma nova realidade do multiverso. Simples assim. Achei a premissa boa, vi que o livro tinha mais de 1300 avaliações na Amazon, com 4,1/5 estrelas. Ah, vamos ver, né? Hunf.
"I'm a cat, not your therapist." (p. 83)
Max and the multiverse propõe ser uma comédia sci-fi. Ele nos apresenta a história de Max, um garoto que, sem saber, acaba viajando pelo multiverso, indo parar numa Terra onde os dinossauros ainda existiam, ou em uma onde se fala igual o Yoda, ou mesmo em uma onde a viagem intergalática é possível. E nessa última, ele acaba levando seu gato Ross com ele e se encontrando com Zoey e Perra, duas aventureiras espaciais que têm uma carga perigosa que pode destruir o universo.

Olha, sendo bem honesto, o autor não é ruim, mas se veem traços fortes de amadorismo (como frases ou trechos muito explicativos). Além disso, ele abertamente tenta imitar Douglas Adams. Mas só tenta mesmo. Honestamente não considero isso um pecado, creio que é natural e até bom que autores copiem seus mestres no que eles fazem de bom — mas, meu filho, já que você está colando, pelo menos tire 10 na prova. E nem isso.

O autor paga mico, achando que está sendo o espertalhão quando na verdade a gente já entendeu o que ia acontecer desde a primeira linha. Ele se leva muito a sério e com isso perde a chance de ser, de fato, esperto. Ele não entende que ser randômico não significa fazer a coisa de qualquer jeito. O brilhantismo de Adams está justamente na loucura "ordenada", ou no mínimo lógica.

Ah, e se se essa é a ideia de roteiro do autor, nossa, então estou muito bem. O primeiro ato da história contribuiu para quase nada. A impressão que tiver é que o livro fora escrito por um adolescente. Cenas bem sem noção, que tentam ser engraçadas mas conseguem apenas ser o clichê do clichê.

O livro é um festival de "tell" em lugar de "show". Um exagero de cenas explicativas gratuitas. Além disso, o autor é claramente muito bom em world e lore-building, mas não em character-building. Tanto é que aquele que deveria ser o personagem principal, Max, não passa de um coadjuvante de terceira categoria. Quando a história finalmente pega no tranco no começo do Ato 2, a gente mal lembra que ele ainda está lá.

Enfim, ainda bem que foi de graça. Me assusta como esse livro teve uma recepção boa e ainda ganhou medalha de ouro em alguma premiação aí. Olha, vou te contar, é cada um que me aparece, viu?