domingo, 10 de agosto de 2025

Resenha — Entre lembrar e esquecer

PAZ, Mauro. Entre lembrar e esquecer. São Paulo: Patuá, 2017.


Caramba, estamos com uma enxurrada de livros bons nestes últimos tempos. Graças a Deus, estava precisando mesmo disso. Esse foi um livro que tinha uma amostra disponível na Amazon. Eu literalmente li a primeira página e nem continuei com a amostra: já comprei o livro, sabia que a leitura valeria a pena. 

É que o autor tem um jeito muito próprio de contar a história. É moderno sem ser moderninho. Faz uso dos elementos porque eles fazem sentido, não simplesmente porque quer usá-los. Olha só como começa o livro:
Depois de mudar para São Paulo, sempre que o telefone vibrava e na tela surgia o número de casa de minha mãe, eu esperava uma notícia de morte. Numa tarde de setembro a notícia chegou. (p. 5)
Em um único parágrafo o autor me traz que hove uma mudança para outro lugar, que o personagem principal tem proximidade ou carinho pela mãe (se ele tem, por que mudou?), e que houve uma morte. Foi isso que eu li e pensei: "É, não tem jeito, vou ter que comprar esse livro".

A história então é sobre um jornalista do Rio Grande do Sul que foi morar em São Paulo. Um dia ele recebe uma ligação de que seu sobrinho havia morrido e agora ele precisa voltar para Porto Alegre, onde vai ter que lidar não apenas com o luto da família, mas com as próprias relações familiares e os dramas que o fizeram um dia ir embora daquele lugar. 

O autor segue ao pé da letra um conselho que já vi em vários livros técnicas de escrita: não tenha pena do seu personagem, faça ele passar por tudo e um pouco mais. Olha, o autor seguiu o conselho à risca. De fato o personagem vai de mal a pior, e a gente torcendo por ele a todo momento. 
Mataram meu menino e, de repente, o colo ficou vazio. Parece que foi ontem. (p. 49)
O narrador faz uso excelente de uma narrativa não-linear. Acompanhamos a história presente, mas os mergulhos no passado não são sentidos como flashback, mas como pedaços de um quebra-cabeça que ajuda a construir o presente. Em suma, do jeito que uma boa narrativa não-linear deve ser. Aliás, a escrita é tão fluida que o autor só vai falar o nome do personagem principal na segunda metade do livro... e eu nem tinha percebido isso.

Ainda sobre estrutura, o autor é deveras esperto. Os capítulos curtinhos, alguns com poucos parágrafos, deixam a gente com a sensação de quero-mais toda hora e dão sensação de que conquistamos ou completamos uma pequena etapa. Ah, é só mais um pouquinho. E a curiosidade batendo, e a gente querendo saber, e vamo ler só mais um vai. 

Desde o começo fica evidente que o tema do livro é o luto. E que abordagem magistral do autor. Parece que estamos ao mesmo tempo longe e perto da cena. É uma sensação de desconexão presente, algo que quem já sentiu o luto sabe. 
Contra a morte não existe justiça ou vingança. A morte é a lei [...] (p. 5)
Se a morte é a lei, a invenção da arma de fogo foi uma emenda escrita pelo homem. (p. 67) 
A morte citada no começo do livro é do sobrinho do personagem: um menino negro que foi a uma festa num condomínio de elite em Porto Alegre e apareceu morto no dia seguinte. Ninguém viu, ninguém sabe. Polícia arquivou o caso como acidente e nem investigou. Boa parte do livro é o conflito que gira em torno de querer saber o que aconteceu de fato com o rapaz naquela noite. 

Daí é natural entender que outro grande tema do livro é o racismo. Creio que o autor soube tratar o tema sem proselitismo exagerado. Em alguns momentos, gostaria que ele tivesse me mostrado mais, em vez de só falar, deixar eu mesmo ter vivido ou sentido na pele um pouco do que o personagem passou, em vez de só apontar de longe. Mas confesso que, olhando pra trás, vejo que isso é mais preciosismo da minha parte. Não tem como negar que o autor soube abordar muito bem o tema. 
Entre a namorada branca e a família negra, mil e seiscentos quilômetros. Uma distância tão confortável quanto frágil. (p. 27)
E já que estou falando tanto de temas, lembro de ter lido em "O segredo do best-seller", que os bons livros tem um tema que compõe 30% do seu enredo, ficando os outros 70% divididos em outros 2 ou 3. Esse livro faz isso muito bem. Central é o luto. Acessórios são o racismo e os relacionamentos familiares (pais e filhos, irmãos, e até a paternidade em si), sendo que todos eles dialogam e reforçam o tema principal.

Talvez o mais triste de toda essa história, foi saber que o autor se inspirou em uma história real. Na noite de sábado, 27/04/2013, Eduardo Vinícius Fösch dos Santos, 17 anos, se despediu da família para ir a uma festa em um condomínio de luxo da zona Sul de Porto Alegre, na qual era o único convidado negro. Ele nunca mais voltou. Cinco horas depois do final da festa, gravemente ferido, foi levado ao HPS, onde morreu nove dias depois. Investigado como morte acidental pelo Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca), o caso sofreu duas tentativas de arquivamento, mas, por pressão da família, foi reaberto com dois indiciamentos e uma conclusão do Ministério Público: Eduardo foi assassinado. Notícia completa aqui.

Atualizações. 2024: a mãe morreu, sem ver a justiça ser feita (notícia competa aqui). 2025: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, aceitou a denúncia contra o Brasil de violação de direitos humanos, tendo em vista que o caso começou em 2013 e hoje, doze anos depois, ainda permanece sem solução (relatório completo aqui). Pequeno spoiler de alguém formado em Relações Internacionais: não boto fé nenhuma de que a OEA possa fazer alguma coisa.
A narrativa mantém vivos personagens que nem existiram, como Quixote ou Brás Cubas, mas se tornaram mais concretos em nossas memórias do que milhões de pessoas que deram a vida para construir grandes cidades e quase nunca se colocam a narrar. (p. 69) 
Enfim, me peguei com pena de ler o livro. É que a leitura estava tão boa que eu não queria que acabasse. Foi aquelas leituras que doem, mas doem gostoso. Leituras que ficam ressoando na nossa cabeça mesmo depois que o livro já está fechado e guardado. Certamente fiquei curioso por ler outros livros do autor. Vi que ele lançou um em 2023, vai já vai entrar pra lista. Que leitura boa, meus caros.

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