sábado, 4 de agosto de 2018

Resenha - Sobre a Escrita III

KING, Stephen. Sobre a escrita: a arte em memórias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.


Pois bem. Chegamos então à terceira e última parte da resenha desse livro incrível de Stephen King, em que nos dá dicas de como escrever, dicas de como encarar a arte de escrever e, o que considero o mais importante, nos dá insights sobre a sua vida. Ele dá um resumo autobiográfico daqueles momentos marcantes em sua vida que ele imagina que tiveram impacto na sua carreira de escritor. Hoje vou abordar duas seções do livro dele de uma vez, que estão intimamente ligadas.


CURRÍCULO E SOBRE A VIDA: UM POSTSCRIPTUM

Steve nos apresenta o que chama de seu "currículo". Ele conta histórias da sua infância, como a babá que peidava na sua cara (sim, ele usa essas palavras) e mesmo o terrível episódio da agulha no seu ouvido por conta de um tratamento médico. Em todos esses momentos a linguagem de Steve é a mais despojada possível. Parece que ele está conversando com um velho amigo. Eu.

Nós aprendemos que durante uma boa parte da infância de Steve ele foi dado à leitura, várias revistas em quadrinhos e livros fizeram parte de seus dias solitários quando ficou doente. Isso caminhou naturalmente para o dia em que ele resolveu escrever uma história por ele mesmo. Sua mãe depois ficara um pouco decepcionada em saber que a primeira história do filho teria sido copiada de uma revista em quadrinho, então ela o encorajou a escrever a sua própria história.

Na vida de Steve foram marcantes as palavras de encorajamento que recebeu, primeiro da sua mãe e depois de sua esposa. Isso fica nítido no discurso dele e mostra o quando pequenas palavras podem fazer a diferença na vida de uma pessoa.

Embora Steve não tivesse vivido ainda na era de ouro da televisão, sua adolescência foi marcada pelo cinema e, em especial (adivinhem!) filmes de terror e também ficção científica. Conta-nos ele que era parte de sua rotina ir aos finais de semana ao único cinema na região para apreciar as telonas. Teve até uma vez que ele resolveu transformar um livro em filme, na época da escola, e foi sucesso durante um breve tempo, sem saber que estava plagiando tudo.

Uma coisa que me impressionou na história de Steve, é que ele não é um grande gênio, por assim dizer. Ele teve um começo igual a nós. Ele escrevia para revistas literárias e recebia muitas cartas negativas; conseguiu um emprego num jornal local e o editor precisava corrigir muito do que ele escrevia. Ele tinha um prego na parede de seu quarto onde pendurava as cartas de rejeição; em determinado momento foram tantas que precisou trocar o prego por um mais firme.

Quando trabalhou no jornal local, Steve aprendeu algumas importantes lições como as que já nos ensinou (e mencionei em posts passados): é possível reduzir; escreva com a porta fechada e reescreva com a porta aberta. O editor explicou a ele que quando se escreve alguma coisa pela primeira vez, aquilo é só seu (a porta fechada); mas depois que você compartilha isso (a porta aberta), então passa a ser de todos. Por isso reescrever com a porta aberta é importante: você descobre o que realmente escreveu e se conseguiu escrever direito.

Um outro ponto alto na história da vida de Steve é seu encontro com Tabitha Spruce (ou Tabby, para íntimos), que tornou-se sua esposa e a maior companheira da sua carreira literária. Pra ser bem sincero, surpreende-me como a história desses dois ainda não virou um romance. É absolutamente linda! E é provavelmente a melhor parte do livro. 

Sabe, é muito legal ver um grande escritor sendo gente como a gente. Casando, tendo filhos, vivendo com pouca grana, tendo que ralar pra conseguir alguma coisa. O grande livro que estreou King foi Carrie, a Estranha. Sabe como começou? Ele teve uma ideia e escreveu no papel, mas achou que não ia dar futuro. Sua mulher estava limpando a escrivaninha quando viu as folhas de papel amassado, ela abriu pra ler e falou pra Steve: 
-- Porque você não escreve mais sobre isso, quero saber o que vai acontecer.
-- Mas Tabby, o que eu sei sobre meninas durante a escola?
-- Não se preocupe, eu te ajudo com isso
Steve ia jogar o papel fora. Ele ia desistir da ideia. Tabby, com suas palavras de encorajamento foi quem mudou o curso das coisas! E depois que Steve escreveu o livro e enviou para editora, Tabby perguntou quanto eles conseguiriam ganhar com aquilo. Steve disse que, no máximo, uns 60 mil dólares. Tabby quase caiu pra trás: era muita grana! Mas Steve explicou que mesmo que ganhassem tudo isso, pelo contrato, 50% era da editora. Mas, ainda assim!

Um dia Steve estava sozinho em casa e recebeu uma ligação. Era da editora. O editor pediu pra ele sentar, porque precisava contar o que aconteceu. Steve ficou nervoso e o editor falou: "Steve, conseguimos vender os direitos do seu livro." Steve pediu para saber como tinha sido, e o editor respondeu: "Vendemos por 400 mil dólares".

King nos conta que ele pediu pro editor repetir isso umas dez vezes até acreditar de verdade. 400 mil! Ele havia conseguido 200 mil dólares de uma vez, por conta do contrato! Mas era mais do que o sêxtuplo do que estava esperando! Steve conta que ficou angustiado porque sua esposa não estava em casa e precisava compartilhar as boas novas com ela. Quando finalmente chegou, ele fez ela sentar e contou a novidade. Tabby levantou-se, olhou ao redor para o apartamento minúsculo e feio, para os dois filhos brincando na sala, abraçou Steve, e chorou.

Um outro aspecto interessante da vida de Steve é que, tendo mulher e filhos, ele não podia só escrever (pelo menos não a princípio). Ele precisava trabalhar. Conta-nos que durante um tempo trabalhou dobrando lençóis em lavanderias enquanto sua mulher trabalhava no Dunkin Donuts. Ele escrevia depois do trabalho e às vezes na hora do almoço também. Em outro momento da sua vida, precisou dar aulas para poder se sustentar.

Ora! Essa não é a vida de todos nós, aspirantes? Foi pra mim um grande incentivo saber que um grande nome da literatura contemporânea não nasceu com isso, ele ascendeu. Isso significa que eu posso também! Significa que você pode também! Tem vários trechos do livro em que me emociona ver Steve como pai carregando fraldas sujas, enquanto o outro menino vomita, a mãe carregando algumas compras que caem no chão. Isso é a vida! Essa é a nossa vida! E saber que não existe passe de mágica ou um grande poder que muda tudo: é trabalho duro! É esforço! E isso eu posso fazer!

E na vida de Steve isso foi uma grande verdade. Quando ele começou não era o famoso "Stephen King". Ele mesmo diz, quando enviou Carrie para tentar uma editora, que ele era "apenas um peixe pequeno em um rio bem caudaloso". King não tinha renome, ele teria que construir isso aos poucos.

Voltando um pouco, volto a falar da história de amor de Steve e Tabby. Tem uma outra parte da vida de Steve que é bem marcante: ele se tornou alcoólatra e viciado em cocaína. Pois é, eu também não sabia. Nesta época da vida, já firmado como escritor, ele se justificava na armadilha do "artista incurável", como se a verdadeira arte viesse da dor, das drogas e o sofrimento fosse condição sine qua non para se poder fazer arte (em parte influenciado por Hemingway e outros do pós-guerra que se deixavam levar e marcaram esse estereótipo).

Tabby precisou reunir família e amigos para organizar um grupo de intervenção e fazer Steve sair dessa vida. Ela deu-lhe um ultimato: ir para a reabilitação e receber ajuda ou dar o fora de casa. Bum! Caramba... nessa hora eu me coloquei no lugar de Steve: "Caramba, mas minha vida é minha arte, eu não posso perder isso". Sabe? É um turning point na vida do artista. Pensei logo nos filmes e como o artista abandona tudo e todos pela arte: mas isso era apenas o estereótipo e eu estava me deixando levar por ele, confirmando-o.

Sabe o que Steve decidiu? Nas suas palavras: "Eu temia não ser mais capaz de trabalhar se parasse de  beber e de me drogar, mas decidi (de novo, tanto quanto eu era capaz de decidir alguma coisa em meu estado mental atormentado e deprimido) que trocaria a escrita pelo casamento e pela chance de ver meus filhos crescerem."

Meu Deus! Família é tudo! Não existe essa de que o artista tem que se isolar do mundo, que tem que decepcionar meio mundo de gente, como se a boa arte viesse da dor! Não! Olha o exemplo de Stephen King! Ele decidiu o que era mais importante e investiu nisso. Que exemplo! E, claro, que ele nunca parou de escrever. Depois que se limpou das drogas, sua escrita voltou meio hesitante, mas ele persistiu e seu estilo voltou firme como nunca!

Esse episódio na vida de Steve ensinou uma importante lição: a mesa de escrever não fica no centro da sala. Ela fica no canto. E ela está no canto porque quando você for escrever, deve lembrar a razão de ela não estar no centro da sala: "A vida não é um suporte à arte. É exatamente o contrário."

Steve tem também alguns posicionamentos interessantes sobre a arte. Por exemplo, numa época em que arte eram pretensos poetas falando de um mundo nebuloso, como se a arte viesse de algum lugar além, inalcançável; poetas incapazes de sequer explicar a mecânica de sua criação. Ele condena isso, tal como faço! Não há nada pior do que "arte pela arte", como fim em si mesma! A arte é feita por nós, para nós!

Quando ele escrevia, tinha uma percepção interessante que o que o escritor pensa do seu personagem não necessariamente é o que o leitor vai pensar. E muitas vezes não querer investir numa história só porque ela é emocional ou é criativamente custosa é uma péssima ideia. Steve encoraja a não termos medo de nossos sentimentos, mas aprender a usá-los.

Pra finalizar essa parte depois fazer uma pequena conclusão, vale mencionar outro episódio da vida de Steve, esse bem recente. Ele foi atropelado e quase morreu. Não estou nem brincando, foi por muito acaso que conseguiu sobreviver, tendo fraturado diversos pontos das pernas, costelas, pulmão perfurado e por aí vai. Foi feia a coisa. 

Ele ainda estava consciente quando o colocaram no helicóptero para levá-lo ao hospital geral da região, o único equipado o suficiente para salvar sua vida. Quando já estava na maca, saindo do helicóptero, ele sentiu-se desfalecer, segurou o enfermeiro pelo braço e disse: "Diga à Tabby que eu a amo muito". 

Sério. Não sei como isso não virou filme de romance, sério. No momento em que ele pensa que vai morrer, que realmente pensa e até sente isso, seu pensamento não está nos seu império de livros, não está na sua grande carreira, nos seus fãs, não! Nada disso! Seu pensamento está na sua esposa, aquela que esteve ao seu lado, naquela que foi peça fundamental em toda a sua história. Não foi a escrita, foi Tabby. 

Isso me leva a uma máxima que não está no livro de King, mas ouso dizer que ele concordaria comigo: Se você está fazendo arte à custa das pessoas que te amam, você está fazendo errado. Se você não entender que sua família (e aqui entenda "família" por aqueles que te amam e te apoiam) é o mais importante, sua arte nunca vai ser plena e você vai viver buscando preencher esse vazio.


# À guisa de conclusão

Uau. Eu falei que esse era um livro e tanto. Eu falei. Não só King, quer dizer, Steve nos dá dicas práticas de como escrever melhor, também nos dá conselhos sobre a literatura de maneira geral e, por sua história, nos ensina a encarar a vida e a arte de uma maneira diferente. Pelo menos foi o que aconteceu comigo. São lições que tenho certeza que vou carregar durante toda a minha vida de artista.

Termino essa resenha com as palavras de encorajamento do próprio Steve para nós, escritores ao acaso: você pode, você deve e, se tomar coragem para começar, você vai. Escrever é mágico, é a água da vida, como qualquer outra arte criativa. A água é de graça. Então beba. Beba até ficar saciado."

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