sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Resenha — Nem sinal de asas

DANTÉS, Marcela. Nem sinal de asas. São Paulo: Editora Patuá, 2020.


Que alívio, que alívio. Quando parece que tudo está perdido me deparo com uma belezura dessas. É difícil dizer que esse livro é um bálsamo, porque de bálsamo ele não tem nada; mas é. Porque é um sinal de que a boa literatura brasileira ainda está viva.
Toda resistência tem um limite, o seu era estar em carne viva. Ardiam camadas profundas dentro da pele. Ela era uma criança miúda e mesmo sem saber queria conhecer a sua força e até onde ela ia. (p. 32-33)
O livro conta a história de Anja (sim, é esse nome mesmo). Tímida, negra com manchas na pele, cresceu num prédio que um dia já fora um hotel de luxo. Ali teve amigos, dissabores, traumas, e sua mãe, Dulce. Aos poucos, as pessoas foram indo, foram indo, e ela foi ficando. De repente já não fazia mais falta pra ninguém. E então encontram-na morta, mumificada. Havia morrido há anos e ninguém tinha notado. 

Tudo nesse livro é impactante. A voz da autora é simplesmente sensacional. É que a autora tem voz. Ela fala como ela é, não como outro. Há certa honestidade em ler seu relato. Uma mistura de lirismo com prosa em alguns momentos, mas prosa, história, narrativa. Combinação muito interessante.
Os pés pra cima do carpete áspero e azul e o resto do corpo em cima dos pés. (p. 13)
A narrativa é um primor. A autora sabe honrar a inteligência do leitor. Ela expõe os fatos de modo não-linear e deixa pra gente juntar as peças. Às vezes nem sabemos em que tempo estamos ao certo; mas em lugar de confundir o leitor, a autora nos traz curiosidade.

No começo me perguntei se era proposital e depois cheguei à conclusão de que era sim. Há certa maestria nas frases curtas, nas sentenças com pontos finais seguidos, nas quebras de parágrafo que imprimem um ritmo bem próprio à narrativa. Se a personagem principal sente dor e faz coisas devagar, a narrativa sabe espelhar isso. O livro é um absurdo de bem estruturado.
Cuidar de idosos é conhecer o horror. É se despedir, dia após dia, da imagem romântica do velho sorridente na capa de um folheto de um lugar que só faz cuidar de idosos. (p. 71)
Tudo nesse livro é um doce meio amargo que é gostoso, mas ao mesmo tempo ruim. Os capítulos são duros e perfurantes, mas são tão macios e fluidos que a gente nem percebe. É quase impossível ler um capítulo e aquilo não ficar um gosto na boca, sabe? É meio que sem escolha que a gente fecha o livro porque aquilo fica ressoando ressoando na nossa cabeça. 

A gente torce por Anja, mas desde o começo a autora já diz que não vai dar certo, que não há por que ter esperança, é uma tragédia anunciada já no primeiro capítulo. Mas é tudo tão bem colocado que não temos escolha senão sentir simpatia pela personagem e ficarmos tristes quando as coisas dão errado.
E depois desceu de novo porque tinha que tomar as providências que se tomam quando morre alguém. Morria-lhe Dulce. (p. 100-101)
Um livro de meras 128 páginas que é capaz de ser tão marcante. Quando termina, não dá vontade de continuar, porque é triste, triste. Mas, ao mesmo tempo, é tão bom que a gente fica até a última palavra, lendo tudo, acompanhando tudo. Me diga se essa não é a sina da vida brasileira? 

Depois de ler e pesquisar na internet, percebi que não foi à toa que o livro foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021, na categoria Melhor Romance de Estreia, e do Prêmio Jabuti, na categoria Melhor Romance Literário. Faz absolutamente todo sentido. 

Que satisfação, aspira, que satisfação. Dá até vontade de ler mais literatura brasileira. Meus agradecimentos à autora.