sábado, 15 de junho de 2024

Resenha — Incidente em Antares

VERÍSSIMO, Érico. Incidente em Antares. São Paulo: Globo, 1997.


É chocante como um livro permanece o mesmo, mas a gente muda tanto. Devo ter lido Incidente em Antares a primeira vez na adolescência e lembro de ter gostado. Hoje, na vida adulta, ainda gosto muito do livro, mas de uma maneira muito mais profunda.
Há conversa fiada em torno de tudo. Até (e principalmente) de Deus. (p. 144)
Em termos de qualidade literária, neste livro temos Veríssimo mais mordaz que nunca, as ironias não param. Ainda que O tempo e o vento seja considerado o magnus opum de Veríssimo, talvez seja em Incidente em Antares que o autor esteja no ápice da sua capacidade descritiva-narrativa. Consegue construir capítulos inteiros sem nenhum diálogo e ainda assim não temos escolha senão ficar com os olhos grudados porque é simplesmente interessante demais.

Haveria vários, vários momentos no livro que eu poderia transcrever aqui pra mostrar a capacidade descritiva de Érico Veríssimo, mas opto por só duas palavras. Em determinado momento, Veríssimo descreve que o personagem tem uma "voz atenorada". Que maneira elegante de dizer que alguém tem voz de tenor e, por consequência, que o timbre de sua voz é mais agudo. Tá loco, Érico Veríssimo é um exagero de bom.

Em termos de estrutura, no lugar de longos capítulos com várias cenas, Érico Veríssimo opta por fazer vários capítulos de uma única cena. Fico em cima do muro quanto a essa decisão. Se por um lado torna o texto mais dinâmico, por outro o cara é tão bom em fazer cenas que posso facilmente fechar o livro depois de um capítulo sem que pareça que estou interrompendo o ritmo da leitura. Em outras palavras, a decisão do autor ajuda o ritmo e atrapalha o ritmo. Por outro lado, quantas vezes se consegue escrever um livro com exatos 100 capítulos?

Érico Veríssimo destrói todas as máximas da escrita criativa. Tchekhov ficaria decepcionado em ver um capítulo inteiro que não contribui diretamente para a trama, um capítulo que meramente mostra a cena de uma empregada doméstica. Deveras a cena seria totalmente descartável para a trama; mas, meu Deus, que bom que ela está ali. É genial. Os críticos literários que critiquem, eu amo o fato de está cena estar aqui. Traz uma humanidade ao livro que é difícil de explicar.

Além disso, achei muito interessante como depois que o "incidente" acontece, Érico muda o protagonista da história de tal forma que aquele que antes era o herói pelo qual nós acompanhamos o desenrolar dos fatos agora se torna o vilão, de repente o personagem que nos fazia dar pequenos sorrisos com suas aventuras agora se torna alguém que rapidamente identificamos como decaído.

Ainda no quesito estrutura, a primeira parte do livro poderia ser facilmente lida como um ensaio sobre o que é o Brasil. Se em "Um lugar ao sol" eu argumento que Érico Veríssimo descreveu com maestria o espírito da vida; aqui ele fez o mesmo com a alma do Brasil.
— O P Gerôncio me disse que a Matriz está precisando duns consertos e duma pinturinha.
— O Brasil também, Tibé, o Brasil também. (p. 57)
O grande tema do livro não é outro senão o Brasil e suas incongruências. Nesse livro Veríssimo descreve com força o que é a política partidária brasileira desde a sua origem: confusão e discursos pra inglês ver. Como sempre, brilhante descrição do que é o Brasil verdadeiro.

Além disso, ler a história do Brasil sob a narrativa de Érico Veríssimo talvez tenha sido o que me fez gostar tanto de ficção histórica. Li uns 5 capítulos seguidos em que tudo era só narrativa de Getúlio Vargas e seu fim. Pura história do Brasil e eu vidrado em tudo, incapaz de parar de ler.

Veríssimo escreveu o livro em 1971, quando o regime militar ainda estava em vigor (ainda que numa descrescente, deveras), e hoje, já mais maduro, percebo como foi um ato de coragem. O livro não tem pena nenhuma em comentar sua história recente, sobre 1964, sobre atos institucionais... Rapaz, o bicho foi corajoso mesmo.

Aliás, em Incidente em Antares Veríssimo põe pra fora tudo que estava na ponta da língua há anos. Depois que a torrente começa, ele não tem escolha senão deixar ela inundar tudo. O posicionamento do autor perante a realidade da sociedade em que vive é muito clara.
Não, não voltes mais, Tibé. O fim de um homem não é nenhum espetáculo bonito. (p. 106)
[...] se por um lado o homem jamais se habitua à ideia da própria morte, por outro aceita sempre, e com admirável facilidade, a morte alheia. (p. 341)
Como pode um ser humano ser capaz de explicar tão habilmente a vida do brasileiro, quem sabe até mesmo o tão eludido conceito de "brasilidade"? Ele não fala da brasilidade como perspectiva externa, mas a verdadeira brasilidade que está no âmago do que chamamos de Brasil; aquele segredo de família que todo mundo sabe mas ninguém fala e quando chega alguém de fora fazemos de tudo para que não vejam ou descubram.

Enfim, o livro é um admirável conjunto de sátira, ironia, drama, e (veja só) até humor. Em vários momentos gargalhei de rir. No futuro, esse livro ainda me trará novas reflexões. É fácil pra mim ver que ainda haverá um futuro que vou reler isso aqui e ver as coisas sob outra perspectiva, trazendo ainda mais sabor pra história. Sei disso, porque já está acontecendo agora. Mal posso esperar pela próxima vez.
— Você também por aqui?
— Pois é. Coisas da vida. Depois eu explico. Me ajude a abrir os outros quatro caixões. (p. 234)

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