sábado, 22 de junho de 2024

Resenha — Hidden child of the Holocaust

CRETZMEYER, Stacy. Hidden child of the Holocaust. New York: Scholastic, 2004.


Outro livro que comprei por apenas 1 dólar. Meu Deus, um único dólar que me trouxe tanta tanta coisa... A gente não tem escolha senão aprender a colocar coisas em perspectivas depois que lê livros como esses. Vamos ao livro.

A obra traz a história real de judia Ruth Kapp, quando esta tinha apenas entre 5 e 6 anos, vivendo na França ocupada pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra. A narrativa é em primeira pessoa e Stacy Cretzmeyer fez um trabalho sensacional em narrar os acontecimentos do ponto de vista de uma criança. Meu Deus, ela era só uma criança.

Acompanhamos Ruth, agora chamada Renée, fugindo com seus pais para o sul da França, onde foram auxiliados por membros da "Resistance", um grupo formado por não-judeus que arriscaram suas vidas para ajudar este grupo que foi injustamente perseguido. 

Segundo a própria Ruth Kapp, este foi o grande motivo que a incentivou a reviver memórias tão horríveis e registrá-las: para que o mundo conhecesse a história desses heróis anônimos aos quais ela deve sua vida

De todos os acontecimentos que o livro traz, acho que o que mais me impactou foi a própria atmosfera de distopia que a Segunda Guerra traz. Não poder sair na rua, ter medo de falar alguma palavra errada, não saber se seu vizinho ou mesmo familiar é amigo ou inimigo, ter que subornar pessoas para conseguir se manter vivo, sobreviver a torturas, passar por mortes horríveis só por ser judeu...

É inacreditável que na história da humanidade uma perseguição tão cega e cruel tenha acontecido, é quase como se não fosse possível, como se não fizesse sentido... e ainda assim aconteceu. 

Esta é uma resenha bem curta porque não tem como eu passar aqui o que o livro traz, simplesmente não tem. É preciso lê-lo. Minha maior tristeza no momento foi descobrir que este livro não foi traduzido para português e muita gente no Brasil talvez nunca chegue a ter conhecimento da vida de Ruth Kapp, uma das muitas crianças escondidas do Holocausto.

sábado, 15 de junho de 2024

Resenha — Incidente em Antares

VERÍSSIMO, Érico. Incidente em Antares. São Paulo: Globo, 1997.


É chocante como um livro permanece o mesmo, mas a gente muda tanto. Devo ter lido Incidente em Antares a primeira vez na adolescência e lembro de ter gostado. Hoje, na vida adulta, ainda gosto muito do livro, mas de uma maneira muito mais profunda.
Há conversa fiada em torno de tudo. Até (e principalmente) de Deus. (p. 144)
Em termos de qualidade literária, neste livro temos Veríssimo mais mordaz que nunca, as ironias não param. Ainda que O tempo e o vento seja considerado o magnus opum de Veríssimo, talvez seja em Incidente em Antares que o autor esteja no ápice da sua capacidade descritiva-narrativa. Consegue construir capítulos inteiros sem nenhum diálogo e ainda assim não temos escolha senão ficar com os olhos grudados porque é simplesmente interessante demais.

Haveria vários, vários momentos no livro que eu poderia transcrever aqui pra mostrar a capacidade descritiva de Érico Veríssimo, mas opto por só duas palavras. Em determinado momento, Veríssimo descreve que o personagem tem uma "voz atenorada". Que maneira elegante de dizer que alguém tem voz de tenor e, por consequência, que o timbre de sua voz é mais agudo. Tá loco, Érico Veríssimo é um exagero de bom.

Em termos de estrutura, no lugar de longos capítulos com várias cenas, Érico Veríssimo opta por fazer vários capítulos de uma única cena. Fico em cima do muro quanto a essa decisão. Se por um lado torna o texto mais dinâmico, por outro o cara é tão bom em fazer cenas que posso facilmente fechar o livro depois de um capítulo sem que pareça que estou interrompendo o ritmo da leitura. Em outras palavras, a decisão do autor ajuda o ritmo e atrapalha o ritmo. Por outro lado, quantas vezes se consegue escrever um livro com exatos 100 capítulos?

Érico Veríssimo destrói todas as máximas da escrita criativa. Tchekhov ficaria decepcionado em ver um capítulo inteiro que não contribui diretamente para a trama, um capítulo que meramente mostra a cena de uma empregada doméstica. Deveras a cena seria totalmente descartável para a trama; mas, meu Deus, que bom que ela está ali. É genial. Os críticos literários que critiquem, eu amo o fato de está cena estar aqui. Traz uma humanidade ao livro que é difícil de explicar.

Além disso, achei muito interessante como depois que o "incidente" acontece, Érico muda o protagonista da história de tal forma que aquele que antes era o herói pelo qual nós acompanhamos o desenrolar dos fatos agora se torna o vilão, de repente o personagem que nos fazia dar pequenos sorrisos com suas aventuras agora se torna alguém que rapidamente identificamos como decaído.

Ainda no quesito estrutura, a primeira parte do livro poderia ser facilmente lida como um ensaio sobre o que é o Brasil. Se em "Um lugar ao sol" eu argumento que Érico Veríssimo descreveu com maestria o espírito da vida; aqui ele fez o mesmo com a alma do Brasil.
— O P Gerôncio me disse que a Matriz está precisando duns consertos e duma pinturinha.
— O Brasil também, Tibé, o Brasil também. (p. 57)
O grande tema do livro não é outro senão o Brasil e suas incongruências. Nesse livro Veríssimo descreve com força o que é a política partidária brasileira desde a sua origem: confusão e discursos pra inglês ver. Como sempre, brilhante descrição do que é o Brasil verdadeiro.

Além disso, ler a história do Brasil sob a narrativa de Érico Veríssimo talvez tenha sido o que me fez gostar tanto de ficção histórica. Li uns 5 capítulos seguidos em que tudo era só narrativa de Getúlio Vargas e seu fim. Pura história do Brasil e eu vidrado em tudo, incapaz de parar de ler.

Veríssimo escreveu o livro em 1971, quando o regime militar ainda estava em vigor (ainda que numa descrescente, deveras), e hoje, já mais maduro, percebo como foi um ato de coragem. O livro não tem pena nenhuma em comentar sua história recente, sobre 1964, sobre atos institucionais... Rapaz, o bicho foi corajoso mesmo.

Aliás, em Incidente em Antares Veríssimo põe pra fora tudo que estava na ponta da língua há anos. Depois que a torrente começa, ele não tem escolha senão deixar ela inundar tudo. O posicionamento do autor perante a realidade da sociedade em que vive é muito clara.
Não, não voltes mais, Tibé. O fim de um homem não é nenhum espetáculo bonito. (p. 106)
[...] se por um lado o homem jamais se habitua à ideia da própria morte, por outro aceita sempre, e com admirável facilidade, a morte alheia. (p. 341)
Como pode um ser humano ser capaz de explicar tão habilmente a vida do brasileiro, quem sabe até mesmo o tão eludido conceito de "brasilidade"? Ele não fala da brasilidade como perspectiva externa, mas a verdadeira brasilidade que está no âmago do que chamamos de Brasil; aquele segredo de família que todo mundo sabe mas ninguém fala e quando chega alguém de fora fazemos de tudo para que não vejam ou descubram.

Enfim, o livro é um admirável conjunto de sátira, ironia, drama, e (veja só) até humor. Em vários momentos gargalhei de rir. No futuro, esse livro ainda me trará novas reflexões. É fácil pra mim ver que ainda haverá um futuro que vou reler isso aqui e ver as coisas sob outra perspectiva, trazendo ainda mais sabor pra história. Sei disso, porque já está acontecendo agora. Mal posso esperar pela próxima vez.
— Você também por aqui?
— Pois é. Coisas da vida. Depois eu explico. Me ajude a abrir os outros quatro caixões. (p. 234)

domingo, 2 de junho de 2024

Crônicas do cotidiano — XV


Veja só, algumas pessoas vão afirmar (e acertadamente, eu imagino) que dentre as tantas opções de lugares nos Estados Unidos, Chicago não é uma cidade boa para se morar. Como disse, elas provavelmente estão certas... mas eu gostei tanto de lá.

É que Chicago é uma cidade americana, não há dúvidas: ela é organizada, limpa até, bem histórica no contexto americano, com todas as lojas, culturas, pessoas tipicamente americanas. Por outro lado, ela é meio zoada. As pessoas que a gente encontra na rua são das mais variadas. O trânsito é meio doido, em alguns pontos ela é mal-cuidada, meio suja. E nisso ela me lembra o Brasil.

Falei isso pro meu amigo George e ele ficou pistola, que Brasil não pode ser sinônimo de desorganização. Mas ele já morou fora e sabe que é verdade, só se recusa a concordar. E fiquei pensativo se o que me lembrou o Brasil foi mesmo a desorganização. Cheguei à conclusão de que não era isso.

Acho que não é a bagunça. Por que viver nos EUA é tão chato? Porque a vida parece artificial. A vida não é limpa e organizada, toda cheia de estrutura, pelo menos não sempre (ou quase nunca). Uma cidade que é sempre "perfeita" não parece humana. Acho que foi isso que me conquistou em Chicago: ela me parece mais humana.


E aí veja você o contraste que faço dela com Minneapolis (na foto acima). Minneapolis é uma cidade "perfeita". Até o mato das esquinas é podado na régua. As árvores todas plantadas com espaçamento perfeito, não se vê um fio de poste nas ruas. Tudo é limpo, organizado. Mas eu nunca vi tanta contradição numa cidade americana como em Minneapolis.

Peguei o metrô e um ônibus ontem pra passear. O tanto de cracudo que eu encontrei tanto no metrô quanto nos ônibus fez eu me sentir inseguro. As pessoas falando alto, rudes, sem nenhuma empatia ou consideração pelos outros. O grama nos canteiros era verdinha, mas o cheiro dentro do ônibus me fez lembrar outro país que não os EUA. 

E fiquei pensando que talvez Minneapolis seja ainda mais humana que Chicago, que ali estão realidades que demonstram mais quem é uma boa parcela dos americanos. Mas enquanto Chicago não quer (ou, mais provavelmente, não consegue) esconder isso, Minneapolis faz um esforço colossal e mascara, maquia, toda uma realidade que é palpável. 

Chega a ser ridículo. Uma parada de ônibus com um letreiro luminoso, indicando quantos minutos faltam para o próximo ônibus. E logo abaixo dela um homem fumando, carregando um saco de tecido com, o que presumo, tratava-se da totalidade de seus bens.

Às vezes, creio que prefiro estar num lugar onde os problemas são visíveis e escrachados do que num lugar onde as pessoas fingem que está tudo bem. No primeiro, talvez ainda haja quem queira olhar para os problemas e resolvê-los, enquanto no segundo muitos vão só fazer vista grossa e olhar para a grama cortada na régua.