CASTILHO, Paulo. Fora de Horas. Barcelona: Contexto, 2001.
Fala, meu povo! Estamos aí de volta para mais uma resenha! O livro de hoje é um excelente exemplo daqueles tesouros de estante. Refiro-me, claro, àqueles livros que às vezes compramos e ficam na nossa estante até chegar num ponto que sequer lembramos que eles ainda existem. No caso de Fora de Horas, descobri que tinha um pouco de literatura portuguesa contemporânea na minha estante. Que coisa, não?
A primeira coisa que fica clara, portanto, é que estamos lidando com um português diferente. E isso é bem legal. É muito interessante notar como o nosso idioma revela traços do nosso povo, da mesma forma que o uso do português pelos portugueses também os revela.
Por isso, nós temos aqui algumas expressões como "pequeno-almoço", que quer dizer café-da-manhã, e o uso muito forte de pronomes em posições que, aos olhos do brasileiro comum, pode parecer que trata-se de um português mais "culto"; embora, claro, trate-se apenas de um uso diferente do idioma.
Bom, a história desenvolve-se com o narrador Luís na maior parte do tempo. Ele é um poeta português que está passando por uma crise de divórcio e foi para os EUA para tentar espairecer a mente. Lá ele encontra-se com uma amiga de longa data, Maria José, com quem viaja pelo território americano junto de outras pessoas (dentre elas uma jovem chamada Clara, que torna-se importante pra história depois).
Embora a maior parte do tempo o livro seja narrado por Luís, temos alguns capítulos de Maria José e não dá pra dizer que a trama pessoal dela é secundária, está mais para uma segunda história primária, tão importante quanto a de Luís. Por isso, eu acho que, no fundo, eles são quase a mesma pessoa, ou melhor, espelhos um do outro. E não necessariamente num bom sentido.
O livro, que é altamente introspectivo, trata de conflitos pessoais, dificuldades de relacionamento e problemas amorosos de modo geral, tudo isso mergulhado no drama da meia-idade e nos Estados Unidos da década de 1980. O livro não é uma história de amor entre Luís e Maria José, que fique bem claro (aliás, o único indício de algo neste sentido é logo afundado pelo autor na primeira parte do livro).
Quanto aos personagens, Luis me parece exageradamente volúvel, muito tendente a paixões e uso quase desesperado da palavra "amor". Que o autor quisesse fazer um personagem carente, vá lá que fosse; mas desse jeito ficou tão forçado que beirou o inverossímil. O desespero pessoal dele é tão forte que me pergunto se alguém poderia chegar no nível de entrega que ele chegou sem se degenerar.
Além de Maria José, de quem já falei um pouco, a única personagem que merece ainda menção é a Clara, que no livro representa a força da juventude e serve para contrastar não só com o comportamento mas também as ações dos dois mais velhos.
Tem algo sobre os personagens que me dá agonia: eles parecem existir apenas a partir da sua relação com outros. Nos seus infindáveis monólogos, estão sempre a falar do que os outros pensam, agem, do que eles fazem, e como tudo isso os afeta. Mas resume-se a isso. É gente imatura que, no fundo, não sabe falar de ideias, mas apenas de outras pessoas.
E ô povinho que já gosta de falar de problemas, defeitos e traumas. Aff. Ficam roendo a questão até ela quase se desintegrar, ocasião essa em que se atêm a outro problema só para, quando este também cansar, voltarem ao primeiro.
Isto pode ser resumido em: personagens exageradamente psicanalistas. E excelentes em analisar o comportamento do outro, enquanto pensam também estarem julgando a si mesmos e compreendendo-se com perfeição. Embora eu entenda a atração por esse mergulho na psiquê humana, por outro lado vejo que ela não me interessa tanto quanto a relação ou interação que os personagens têm uns com os outros. Porque é esta relação ou interação que, diferente dos excessivos monólogos, realmente revela a verdade sobre a natureza e psiquê dos personagens.
Isto se traduz na estrutura do livro não apenas pela trama, mas pelos gigantescos parágrafos que servem para ajudar a mergulhar no personagem. Quando os vi pela primeira vez quase desisti de ler, mas depois que me acostumei, torna-se quase impossível resistir ao mergulho. No caso da figura abaixo, o parágrafo começou na página anterior e, embora não seja o caso, tem vezes que dura por umas três páginas.
No fundo, porém, permaneço dividido entre gostar ou entediar-me com os parágrafos longos e as descrições excessivas. Elas são excessivas, mas é evidente que foi proposital do autor. Por isso, me é difícil afirmar com certeza se gostei desse design ou não. Talvez a minha mente só esteja habituado demais às narrativas com mais acontecimentos ou até mesmo mais enxutas, mas não sei.
A esses parágrafos longos, pode-se somar os esquemas de diálogos em parágrafos corridos, sem quebras. Bem moderninho. Vou colocar uma citação abaixo que exemplifica bem o que quero dizer. E não, eu não errei a diagramação do parágrafo, é assim mesmo:
"Devíamos ter tomado um avião até São Francisco e alugado então um carro para o regresso. Amanhã guias tu – disse a Maria José. Depois perguntou à Clara se ela não estava também farta. A Clara respondeu: não, estou com o Luís. Eu disse: por mim continuava assim eternamente." (p. 140)
Não só pela temática, mas até pela estrutura do livro, exige-se um certo estado de espírito pra ler. Não adianta chegar com pressa ou agitado demais, porque não vai dar pra se concentrar. O livro trata de introspecção, e é preciso estar preparado para isso.
Ao falar da trama do livro, no segundo 1/4 do livro ele muda de uma narrativa "de casa" para uma história de viagem, com alguns conflitos no caminho. Não creio que essa mudança veio para o bem. Na verdade, estou cada vez mais convencido de que inserir uma viagem de carro na história não foi uma boa escolha.
Isso não seria ruim necessariamente se o livro fosse se toda em torno da viagem. O problema é que ela ocupa o segundo ato quase todo do enredo e depois o livro perde fôlego para continuar. Logo, assim como no término de uma viagem os personagens já estão cansados, também o leitor perde vigor conforme a viagem termina.
O mergulho de Luís no mundo de Clara não é feito de modo suave, o que torna os capítulos em que ele descreve cenas com ela episódicos demais, sem que haja uma linha que ajude a construir de modo sutil a tensão que o autor quer imprimir nessa relação. Aliás, toda essa história é colocada fora de hora. Já no último 1/3 do livro ela vem do nada e ainda tenta no final ser cheia de peso e significados. Infelizmente não funciona assim, ela só pareceu solta no meio do livro.
Por isso, quando o final retorna à dinâmica Luis – Maria José, o leitor sente um alívio por finalmente ver-se em terreno familiar. Porém, não posso deixar de notar que talvez essa tenha sido a exata intenção do autor, uma vez que isto reflete o exato estado de espírito de Luís. E, neste ponto, o livro deixa claro porque ganhou prêmios literários importantes.
Porém não posso deixar de notar que o final é anti-climático demais. Últimas 5 páginas do livro e o autor ainda está desenvolvendo coisas dos personagens. Aí é demais, meu filho. Enquanto eu esperava resolução, o livrou tentou abordar questões novas e isso não curti; embora eu reconheça que isso pode ter sido o exato propósito do autor, para subverter convenções.
Niilismo. Era essa a palavra que tanto procurei pra definir a temática do livro. Mas não um niilismo suicida, porém uma abordagem moral (própria de Nietzsche, claro) que constantemente torna o narrador inerte diante da sua própria realidade, e que, ao interagir com outros personagens, descobre que eles também estão afundados nessa mesma realidade:
"Cada um, como tantas vezes sucede, a ouvir a o outro mais por cortesia do que por interesse verdadeiro. No fundo, interessados sobretudo em encontrar uma caixa de ressonância perante a qual pudéssemos desenrolar o tema preferido: falar de si mesmo." (p. 90)
"Creio, creio hoje firmemente, que os seres humanos não foram destinados a verdadeiramente comunicar. É-nos dado um nome e uma identidade própria quando nascemos. Somos indivíduos e indivíduos permanecemos. Somos únicos e únicos queremos ser. Natural é que pagamos o preço." (p. 196)
Sei que depois de tudo isso que falei, parece que eu odiei o livro e vou jogar ele fora. Mas não é isso. Todas as quebras de paradigmas e constantes subversões que quebram a expectativa podem ser coisas boas! É claro que esta é minha experiência como leitor e pode não ser a de outros que não curtem essa abordagem mais "meta" (porque eu não estou mais analisando a escrita em si, mas a escrita da escrita).
Não se enganem, o livro não é ruim, por incrível que pareça! Tem alguma coisa nele que é hipnotizante. O estilo do livro, no final das contas, impacta. E a gama de temas que ele aborda acaba capturando a atenção do leitor. Não foi à toa que o livro ganhou vários prêmios em Portugal e solidificou a carreira literária do autor.
Por mais estranho que pareça, eu convido você a dar uma chance e ter uma leitura diferente. E, olha, ainda bem que eu resolvi fazer arqueologia de estante.
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