sexta-feira, 23 de abril de 2021

Resenha – A mãe

GORKI, Máximo. A mãe. Edipe (?): ?, 197?



Gente, sem querer acho que acertei na loteria dos livros. Se o bendito site da Biblioteca Nacional abrisse, eu poderia ter certeza de que este livro é classificado lá como "obra rara". Presumo eu que se trata de uma edição de pelo menos uns 50 anos (embora eu tenha quase certeza de que ela é mais antiga do que isso!). Pra completar: super bem conservada, com tudo intacto.

Acho que não preciso ter vergonha de admitir que não conhecia esse autor. Máximo Gorki, pseudônimo de Aleksei Peshkov, foi um dos mais importantes escritores no começo da União Soviética (ele morreu nos anos 1930). Defensor árduo e apaixonado do regime socialista, ele imprime uma boa dose de militância nas suas obras.

Aqui tem um ponto interessante antes de partir para a análise da obra. Nunca escondi de ninguém que não tenho paixões pelo socialismo; mas achei muito bom ver que, apesar da discordância de ideias, eu consigo apreciar uma obra que tem claramente uma inclinação política. E não só apreciar, mas extrair coisas boas, coisas que marcam. Creio que essa deve ser a essência de todo bom leitor.
"Acostumados a ser oprimidos pela vida, aquela gente considerava todas as transformações possíveis como próprias somente a tornarem o seu jugo ainda mais pesado." (p. 7)
Como falei, eu não conhecia o autor. Logo no começo, com essa citação aí em cima, eu já saquei que o cara tinha cara de ser da era modernista. Trazia o realismo forte da Rússia pré-sovietica. Há umas tendências na escrita que apontam pra isso também, como as temáticas mais chofres e personagens que são os mais pés-rapados possíveis da sociedade.

O livro não tem necessariamente uma linguagem simples, até por conta da época da tradução (pra se ter ideia, encontrei um "rehaver" – e não foi erro de digitação). Mas, não sei por que, o livro é extremamente fluido e dá vontade de continuar lendo página atrás de página. Dissesse que era um cliffhanger atrás do outro, mas nem isso! Não sei explicar, talvez seja pura e simplesmente a capacidade narrativa do autor, que fisga o leitor de jeito. 

Existe na linguagem da literatura russa alguma coisa de truncado que não sei explicar direito. Ora é direto demais, ora é melindroso demais. Isso deixa o texto truncado de um jeito estranho. Imagino que é só uma forma cultural de organizar a linguagem. Um jeito tão diferente do meu que, embora eu não saiba dizer exatamente o que é, percebo uma diferença.

Já que citei a tradução, vou falar da revisão do livro, porque oxente viu! Olha, sinceramente eu acho que o tradutor devia estar numa pressa danada (não sei se por culpa dele mesmo ou da editora), porque pense num livro cheio de problemas. Há vários erros de digitação, como ausência de travessões em determinados momentos, erros de português mesmo (ausência de letras, por exemplo). 

Mas acho que vale lembrar que essa é realmente uma edição antiga – uma edição que não tinha Word pra mostrar os erros básicos. Pra ter uma ideia, em uma nota de rodapé o tradutor fez referência a "réis" pra dar ao leitor uma noção de valor em relação aos "copeques" russos.
"Somos todos nascidos da mesma mãe, da grande, da invencível ideia da fraternidade operária, em todos os países da terra." (p. 34)
Quanto ao conteúdo da obra, a mistura da verdade com a mentira nos discursos dos revolucionário é ao mesmo tempo triste e cruel. Um fiapo de verdade, que serve de floreio pra um conglomerado de mentiras. É a essência da filosofia mais perversa que pode haver. Infelizmente eu vejo que há ali uma semente de boa-fé, de vontade de fazer o que é certo. Meu problema não é o "o quê", mas "como" isso é realizado. Mas nesse ponto não estamos mais falando de literatura, então prefiro seguir em frente.

O foco narrativo na mãe foi uma sacada muito inteligente do meu ponto de vista. Embora o filho seja o personagem com traços mais próximos de um "herói", o autor deixa as cenas sempre centradas na mãe, na sua realidade, no seus dilemas, no seu jeito de ver a cena. Ele faz aquilo que eu mais gosto: falar dos personagens cujas histórias poderiam até passar despercebidas, mesmo que isso não signifique que eles não sejam importantes.

Até em momentos cruciais da trama, nós ficamos à margem dos grandes acontecimentos ou, mesmo estando neles, não conseguimos entender o que se passa. Por quê? Porque é exatamente assim que a mãe, uma senhora de idade, iletrada e alienada, vê e experimenta a situação.
"O meu marido me bateu tanto, que sacudiu de mim todas as recordações. A minha alma era completamente fechada; tornou-se depois cega e muda." (p. 84)
O autor não tem pena de mostrar a realidade da época. Tá que boa parte do que ele escreve tem por objetivo um pouco de sensacionalismo pra gerar um sentimento de revolta. Mas vale lembrar que ele não estava necessariamente exagerando a realidade, uma vez que aquilo era realmente comum – e que o próprio autor chegou a experimentar várias agruras dos pobres.

Na segunda parte o livro dá uma desacelerada grande demais pro meu gosto. Eu acho que isso se deu em razão da falta de um ticking clock, ou seja, de algum acontecimento no futuro que desse pressão à história. Embora os fatos sejam interessantes, a gente só vê a protagonista vagar entre acontecimentos, sem noção certa de futuro. Isso acaba deixando o texto entediante. Mas talvez isso seja parte do estilo do autor, que realmente foge um pouco ao entretenimento meramente comercial.
"– Eu não lhe queria mal, nem me alegro por ele ter morrido... Tinha apenas dó dele... E agora... nem mesmo isso sinto mais...
– Eis o que é a vida, mamãe!" (p. 116)
O livro tem frases muito impactantes que fazem a gente pensar. Como falei, essa é a grande beleza da boa leitura: eu consigo ver frases que fazem o texto brilhar. O autor é extremamente inteligente na escolha de algumas palavras e – o mais triste – terrivelmente certeiro nas realidades que descreve e nos sentimentos que desnuda.

Penso que, neste ponto, ele se aproxima muito de Érico Veríssimo (quiçá este último até tenha lido Gorki!). Falar da realidade, do dia a dia, dos personagens que não estão no centro dos acontecimentos e, ainda assim, fisgar o leitor com histórias fantásticas, porque percebemos que a beleza da vida não está apenas no grande ou complexo, mas especialmente no pequeno e no simples.
"É certo o que diz, Natacha! declarou a outra, depois de refletir. Para viver é preciso que se espera alguma coisa. Nada esperar, é viver?" (p. 176)
Assim como você, Pélagué Nilovna, mãe do operário militante Pavel Vlassof, eu também não acredito que seja possível viver sem esperar nada. Eu só espero, sinceramente, que a sua esperança esteja nas coisas boa da vida e que seu desejo de alcançá-las não deturpe seus princípios mais básicos. Só assim você poderá um dia conhecer a Verdade.

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