LEWIS. C. S. Perelandra: viagem a Vênus. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019.
Preciso parar. Porque neste exato momento – em que eu acabei de terminar o livro – não tenho a menor condição de escrever esta resenha. Eu preciso digerir, pensar. Minto. Eu preciso me recuperar dessa leitura. Volto em breve, com a mente mais clara.
[No dia seguinte]
E aí, meu povo! Agora sim, com a mente um pouco mais calma, acho que consigo escrever essa resenha sem me deixar arrebatar pela inundação de sentimentos que surgiram ontem por conta deste livro incrível, Perelandra, o segundo livro da Trilogia Cósmica de C. S. Lewis.
Como já comentei na resenha anterior, esta trilogia surgiu (reza a lenda) por conta de uma aposta com Tolkien, amigo de Lewis, que propôs que ambos escrevessem livros de ficção científica, sendo que Lewis ficou com viagem no espaço. E, depois de Além do planeta silencioso, temos novamente o personagem Ransom viajando a outro planeta: Vênus, um mundo em surgimento. Ah, em determinado ponto desta resenha HAVERÁ SPOILERS, mas não se preocupem que vou deixar bem claro.
A ficção científica no começo do século XX ainda caminhava para sua maturidade. Não eram muitos os nomes que criavam este gênero de maneira séria; mas os poucos que fizeram deixaram sua marca. Uma das características deste tempo era o cientificismo dos livros. Comentei algo sobre isso na resenha de Vinte mil léguas submarinas e no começo de Perelandra, vejo Lewis pincelando algo assim.
Mas isto se dá por pouco tempo, porque também aqui vemos traços do estilo de Lewis, que cria uma obra cujo foco não é o conflito homem-tecnologia (como é clássico na ficção científica), mas entre homem-homem. Por isso, o livro pende muito para fantasia, num misto interessante de gêneros que poucos conseguem fazer.
Algo que começou no primeiro livro agora ganhou mais forma. Lewis cria um idioma fictício chamado Solar Antigo, que seria o idioma falado por todos em todos os planetas, uma vez que apenas na Terra teria acontecido a maldição de Babel, em que as pessoas foram dispersos por muitos idiomas. E isto é interessante porque tem outro autor que conhecemos e que adora criar idiomas: Tolkien.
Na outra resenha não comentei nada da tradução porque nada me chamou a atenção; mas nesse aqui vi algo preocupante: um erro. Não preciso ter lido no original pra saber que ali deveria ter sido "pistas" em vez de "dicas":
"Como se deu uma viagem num caixão celestial Ransom nunca descreveu. Ele disse que não podia. Mas umas dicas estranhas sobre a jornada acabaram aparecendo aqui e ali, [...]" (p. 42)
Do meu humilde ponto de vista, a palavra "dicas" aponta para o caminho que o autor quer e talvez até seja a tradução literal mais correta (presumo que a palavra em inglês seja "hints"); mas quando estamos falando de entendimento do texto, não basta apenas traduzir do modo mais literal, é necessário ver o contexto e adaptar para o melhor entendimento. É, eu repito, um humilde ponto de vista.
As descrições, novamente. Lewis é muito bom pra descrever um mundo onde a mente não saberia bem dizer o que é o quê. Infelizmente ficou bagunçado demais e tudo muito repleto de "então ele não sabe como mas estava" ou "de repente, ele se viu em". Isso me soa como preguiça ou incapacidade de descrever. E olha só essa citação (Poxa, Lewis! Falei descriçãozinha barata kkkkkkk):
"De alguma maneira, ele conseguiu subir nela e se grudou em sua superfície..." (p. 246)
A descrição inicial de Perelandra (ou Vênus, para os terráqueos) não me agradou nadinha. Não só as descrições são exuberantes e pomposas em demasia, não há senso de urgência na ação do personagem e, assim como ocorreu algumas vezes no primeiro livro, parece que ele está passeando e é chato pra caramba ler isso.
Por outro lado, não posso negar que Lewis tem um exímio domínio do tempo na narração quando diz coisas do tipo: "eles ficaram três horas conversando" ou "a escalada não durou mais que vinte minutos". Parece besteira, mas quando a gente está escrevendo é meio complicado encontrar um meio termo entre narrar cada pequena passagem do tempo e narrar de modo suficiente e agradável para o bom entendimento do leitor. Lewis encontrou esse equilíbrio e isso não é um pequeno feito.
[A partir daqui haverá pequenos SPOILERS, mas, se eu fosse você, continuava, porque eles são leves e não vão estragar sua leitura tanto assim – a não ser que você seja um daqueles puristas radicais. Eu vou falar basicamente dos aspectos da obra mais relacionados diretamente à ficção cristã]
O livro traz uma interpretação do autor sobre vida fora da terra: existiam seres inteligentes nos planetas. Planetas mais antigos podiam ter qualquer tipo de forma humanoide ou até mesmo animalesca; mas depois que Maledil (que é um nome que ele dá pra Jesus) tomou a forma de homem, todas as novas raças passaram até aspecto humanoide porque esta seria a melhor representação da imagem e semelhança dele. Não sei se é o que o autor realmente acredita, mas é o que foi apresentado no livro.
Aqui há um limite que nós sempre vemos quando lemos ficção cristã: criar um ser que não tenha pecado. Nossa própria estrutura de pensamento é marcada pelo pecado, não temos como evitar. Embora a Mulher em Vênus não tenha a mesma proibição que os humanos da Terra quanto ao pecado, fica evidente em vários momentos que ela já tinha o conhecimento do bem e do mal – não necessariamente porque tivesse, mas porque é impossível para o autor (ou qualquer ser humano) se desvencilhar dela.
Vou ser honesto e dizer que em determinado momento, Lewis quase chegou no limite da minha paciência. Aquele papo teológico no meio da história me pareceu sem sentido, não fosse aquela subida reviravolta no final do capítulo eu até diria desnecessária.
Mas isto foi um engano, porque o livro é deveras bem intrigante e o que eu achei que seria só uma divagação do autor, era na verdade o começo do que se tornaria o âmago de toda essa aventura: a história da Queda, mas acontecendo em outro planeta, com outros dois seres criados.
CA-RAM-BA! Que diálogo absurdo de fascinante sobre a obediência! O que parecia um tratado de filosofia solto no meio do texto é na verdade um estudo brilhante (eu repito, brilhante!!) sobre a primeira obediência. Olhe esse trecho:
"Ah, quão bem eu entendo isso agora! Nós não podemos andar fora da vontade de Maleldil, mas Ele nos deu uma maneira de andar fora da nossa vontade." (165)
Eu escrevi esse parágrafo acima logo depois que li e me deparei com o que Lewis realmente propunha no livro: um estudo avançado da condição humana e do pecado. Parece loucura falar destes temas num livro de aventura; mas eu vi que é justamente o contrário: é essa profundidade que dá ao livro uma dimensão mais completa e à própria história um significado a mais, uma reverberação que vai além dos feitos dos personagens ou suas falas.
Lewis é muito competente em mostrar a capacidade do inimigo de perverter a verdade, todo o seu método ardiloso para enganar (método esse que não precisa ser elegante, podendo até ser infantil, não importa. Desde que ele atinja seus objetivos). E não só a capacidade, mas as estratégias, como a subversão da ordem natural de Deus, tal como aconteceu na Terra.
[Fim dos SPOILERS mais fracos que eu já vi na vida – sério, se você ler não vai nem sentir depois]
Assim como aconteceu no primeiro livro, o autor tem seus momentos de genialidade com as palavras – que é o que, convenhamos, foi um marco seu para toda a obra da literatura cristã (e eu não me refiro apenas à ficção). Além da citação que eu mencionei na seção acima, veja também este trecho abaixo:
"O silêncio interior é uma conquista difícil para a nossa raça. Existe uma parte tagarelante da nossa mente que continua em ação até que seja corrigida, tagarelando mesmo nos lugares mais santos." (p. 196)
O nome "Ransom"!!! (eu ia colocar isso aqui na parte dos spoilers, mas resolvi deixar assim solto mesmo porque vale a pena ler essa parte – se eu pudesse esquecer e ler de novo eu faria... aliás, quer saber? Acho que vou ler de novo mesmo lembrando, de tão bom que é).
Gente, pra concluir, vou dizer que poucos livros me fazem chorar. Mas fazem. Eu choro porque me emociono com os personagens, com os acontecimentos, com as lutas e as vitórias tão almejadas. Mas, no fundo, eu choro por algo que é ficção. Eu não sei explicar como, mas Lewis me fez chorar pela Verdade. Não. Eu chorei pela falta da plenitude da Verdade e isso dilacerou meu coração, porque eu lembrei de onde estava e para onde eu deveria ir. Eu quero viver na perfeição da Verdade e da Vida.
O Eduardo Ribeiro do Instagram @paragrapho_cristao havia comentado que este era seu livro favorito da Trilogia Cósmica. Eu geralmente penso bastante antes de concordar com alguma opinião assim, pra não ser influenciado; mas dessa vez talvez ele tenha completa razão, porque eu me peguei pensando aqui: "Como é que Lewis vai superar esse aqui?". É tão bom que eu tenho minhas dúvidas se dá.
Mas isso eu vou dizer depois que vencer Aquela fortaleza medonha. Nos vemos em breve, meu povo!
1 comentários:
Parabéns pela resenha,sempre sóbria, embora emocionante. Esse livro também me traz essa reflexão sobre a vida para a qual fomos criados e acho que por isso gosto tanto dele. Aaa, o próximo livro começa bem chato, mas garanto que melhora.
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