segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Pé d'água

Era um verão daqueles bem escaldantes de Roraima. Na maloca, os jovens faziam troça dele:

– Bora! Não é o senhor que sabe a Dança da Chuva?
– Esses curumins não têm mais respeito pelos velhos!

Mas de tanto tirarem graça com ele, resolveu: se é dança que queriam, era o que iriam ter.

Posicionou-se no centro da maloca e começou a entoar os cânticos antigos. Os meninos achando graça, os adultos balançando a cabeça como quem diz: “Imagine se eu em pleno século XXI ainda vou acreditar nessas besteiras!”

Então aconteceu: caiu um toró. Mas não foi qualquer toró. É um daqueles que, se a gente está em casa, corre pra tirar as roupas do varal e torce pra não ter enchente; ou, se estamos no trabalho, coçamos a cabeça e tentamos decifrar como voltaremos pra casa.

– Pois tome!

O velho estava tão surpreso quanto os meninos. Décadas de dança da chuva nunca fizeram nenhuma diferença... mas agora não havia como negar a eficácia!

Choveu aquele dia todo. E no outro. E no outro.

– Sim, não dá pra fazer parar não? – os outros indígenas perguntavam.
– Não me amole – ele se limitava a dizer.

A verdade é que não tinha ideia de que a dança funcionaria e, agora que funcionou, tampouco tinha ideia de como reverter a situação. Ele não sabia nenhuma dança de não-chuva!

Os meses passaram e a maloca virou uma palafita. Trocaram a plantação de mandioca pela pescaria diária. Os jornais do mundo inteiro relatavam a chuva torrencial na Amazônia brasileira. Um noticiário internacional resumiu:

– Pense num toró!

A comunidade, que no começo exaltou os poderes do velho, agora já não aguentava mais.
– Faça alguma coisa!

[...]


Texto completo no e-book da 1ª Mostra Picuá de Cinema e Literatura, disponível aqui.

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