sábado, 20 de novembro de 2021

Resenha – A peste

CAMUS, Albert. A peste. São Paulo: Círculo do Livro, 1987 (?).

"Mas Rieux endireitou-se e disse, com uma voz firme, que aquilo era tolice e que não era vergonha preferir a felicidade.

— Sim — disse Rambert —, mas pode haver vergonha em ser feliz sozinho.

Tarrou, que nada dissera até então, observou sem voltar a cabeça, que, se Rambert queria compartilhar da desgraça dos homens, jamais teria tempo para ser feliz. Era preciso escolher.

— Não é isso — disse Rambert. — Pensei sempre que era estranho a esta cidade e que nada tinha a ver com vocês. Mas agora que vi o que vi, sei que sou daqui, quer queira, quer não. A história diz respeito a todos nós." (p. 145)
Fui descobrir que Albert Camus foi um ganhador do Nobel de literatura depois que já tinha terminado de ler e me surpreender com este livro. Novamente, mais um achado que ganhei por meio de uma doação. Rapaz, será que o antigo dono sabia a preciosidade que estava dando de graça?

O livro é o que o nome diz. Numa pequena cidade francesa na Argélia começam a surgir sintomas estranhos, primeiro em ratos e depois nas pessoas. Os sintomas ficam mais graves e se espalham de maneira vertiginosa. Quando menos se espera, já não havia mais o que fazer: a peste bubônica estava instaurada na cidade. A única solução: fechar todas as saídas e entrar em quarentena até que tudo passe. Meu Deus... onde foi que já vi isso?
"[...] Bastou que alguém pensasse em fazer a soma, e a soma era alarmante. Em apenas alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, [...] que se tratava de uma verdadeira epidemia." (p. 29)
Nós acompanhamos a história pelos olhos do Dr. Rieux, um médico que de repente se vê como um dos personagens principais no meio do caos da pandemia de uma doença incurável. Por meio dele é que vemos não só os acontecimentos, mas impressões fantásticas que ele têm sobre as pessoas, seus comportamentos e sobre a própria condição humana. 

Tudo isso é feito de maneira extremamente sutil. Não há somente um, mas vários momentos em que Camus mostra por que foi realmente digno de um Nobel de literatura. Tem uma capacidade de falar de modo bem profundo, mas abordando temas simples e cotidianos. Quem lesse o livro buscando apenas o enredo, talvez até achasse chatas as passagens significativas como a abaixo; mas o bom leitor veria o escritor não apenas descrevendo uma cena, senão também derramando parte da sua alma no texto:
"Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e me tagarelices o tempo que lhes resta para viver." (p. 8)
Creio que a leitura deste livro em outros tempos talvez trouxesse menor significância para mim; mas, vivendo hoje no meio de uma pandemia (um nível acima da epidemia!), não consigo evitar o fascínio com a capacidade do autor. Ele definitivamente fez seu dever de casa. 

As pesquisas tornaram o cenário muito verossímil e explicou muito bem até às atitudes dos personagens. Ora, não é fácil descrever um período de tragédia quando não se vive ele. Mas, na descrição do autor, parece que está descrevendo o mundo atual. 

Só pra dar um exemplo claro: não é de hoje que politica e peste se relacionam. Há uma cena em que o prefeito teme admitir oficialmente que é a peste chegou na cidade. Isto ocorre porque haveria uma série de implicações sanitárias e restritivas previstas em lei que ele seria obrigado a seguir como prefeito. Medidas estas que seriam bem impopulares. Ora... onde foi que já vi isso?
"A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes." (p. 127)
Antes de ir direto para o fim do livro, gostaria de destacar dois pontos que me chamaram a atenção. A primeira foi a cena inenarrável, uma exímia demonstração de habilidade: a cena da morte da criança. Que cena, meus amigos. Sem melodrama, sem exageros, sem grandes arroubos e, ainda assim, cheia de drama, cheia do exagero e arroubo que só a morte consegue trazer. 

Uma outra característica interessante, é que o autor não acredita em heróis. Em mais de um momento ele afirma que não poderia destacar quem foi o herói da luta contra a peste. Foram os médicos? Foram aqueles que continuaram trabalhando nos serviços essenciais apesar do perigo? Foram os voluntários das diversas forças-tarefa que lutaram contra a peste em vários lugares? Como, como selecionar uma única pessoa, um herói, nesta multidão de heróis?

E, se há vários heróis, já não faz sentido o próprio uso da palavra "herói", daquele que se destaca acima dos outros, daquele que traz sobre si as dificuldades em nome do bem do outro. Achei deveras bem interessante essa reflexão de Camus, porque quando olho para a minha própria epidemia (pandêmica), não consigo descordar das reflexões do autor.
"Na verdade, era difícil decidir que se tratava de uma vitória. Era-se apenas obrigado a verificar que a doença partia como viera." (p. 186)
No fim do livro (desculpa o spoiler) a peste termina. Fiquei um pouco sentida emocionado porque, para mim ainda não passou. E percebo que talvez isto seja verdade para o próprio autor. Há um sentimento bittersweet muito latente. Se por um lado a peste termina para os que sobreviveram e se reencontram com seus queridos, ela permanece para os que sobreviveram e agora não têm mais os seus queridos.

Que final triste e ao mesmo tempo tão belo. Há algo na narrativo de Camus que mistura poesia com prosa. Pra ser bem honesto, até me lembra um 1pouco o que Shakespeare faz, misturando, além de tudo, uma boa dose de filosofia. Como pode esse povo escrever tão bem, a ponto de transmitir não somente o que está nas palavras, mas algo além delas?

Não preciso dizer que fiquei bem impressionado com essa leitura, talvez, justamente, porque fui pra ela sem expectativa nenhuma, era só um livro doado e um passatempo enquanto não decidia se leria algo mais sério ou não. Caiu no meu colo cheio de seriedade e o tempo passou que nem vi. Leitura mais que recomendada.

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P.S.: da série "coisas que a gente ganha com livros usados"


Será que ganhava algum bônus se colecionasse vários selos? 

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