sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Cotidiano

Engraçado pensar como há 200 anos as pessoas achavam que 2221 seria “o Futuro”, né? Ah, porque a tecnologia vai revolucionar o mundo; ah, porque estamos numa nova era. Ah, porque isso e aquilo. Ai, ai. Eu só faço rir. Antigamente tudo era cheio de esperança. Não sei por quê.

Aqui estou eu no metrô empanturrado de gente. Brasília ainda é a mesma coisa, especialmente os governos. Entra gente, sai gente, e nada muda. É a história do Brasil desde sempre. Tem carros voadores? Não tem. Tem gente morando na Lua? Não tem. É sério que todo mundo achava que o Brasil ia alavancar assim do nada?

Do metrô consigo ver boa parte da cidade subterrânea e seus moradores. Todo dia preciso virar a cara, porque não tem quem aguente olhar para aquilo. Ah e não me venha com moralismos. Todo dia tem guerra na televisão e não vejo ninguém reclamando mais.

O vagão está lotado por causa do horário. Uma velha está sentada próximo à saída. Ela tirou um dos olhos pra ajustar alguma coisa. Eu hein. Onde é que esse mundo vai parar. Não se sabe mais quem é quem. E ninguém se satisfaz mais.

Saio do metrô e caminho pelos túneis intermináveis até chegar no meu elevador. Juro que um dia eu canso dessa mesmice. Olha lá, já estão trocando o letreiro de um dos Ministérios. Toda vez é isso. Governo novo, ministério novo, pessoas novas – e só isso, porque o resto é tudo igual.

Quando finalmente chego no trabalho, o festival de burocracia continua. Não tem mais papel, pelo menos isso. Agora a gente faz tudo pelos cytrons. Francisco me cumprimenta:

– Olá, Raul! – sorridente, ele caminha em direção a sua mesa.

Eu respondo apenas com um meneio da cabeça. Manhãs não são pra mim e não tem quem me faça tomar aquelas pílulas de humor. Mexem demais com nosso corpo sem a gente saber. Ah! E nem me fale sobre coisas que fazem com a gente sem sabermos. Eita, aí eu ficaria aqui pra sempre.

Engraçado isso. Às vezes eu tenho a impressão de que, na verdade, estive aqui desde sempre. Uma sensação estranha. Mas o ruim mesmo é o pensamento que vem depois: que eu vou ficar aqui pra sempre. Sento na mesa e tiro meu cytron do bolso. Conecto ele na tela à minha frente, que se ilumina e mostra as tarefas do dia. Eu suspiro e, resignado, começo a trabalhar.

O dia transcorre sem absolutamente nada interessante. Nada. Eu queria ter alguma coisa pra te contar, mas não tem. Talvez quem more lá na Cidade Alta, na “Nova Brasília” possa te contar as últimas fofocas; possa te contar como estava a bolsa de valores e o que eles ganharam; possa, quem sabe, até contar alguma coisa que te faça rir.

Na volta é o mesmo metrô, a mesma multidão, a mesma fuligem cobrindo a cidade, os mesmos canteiros com flores naturalizadas, outdoors com gente famosa e os moribundos pedindo esmolas. É tudo o mesmo que sempre foi.

De novo estou fora do metrô e caminho em direção ao meu apartamento. É meu único alento, porque no caminho dele está o último bosque do Centro-Oeste. Uma vez eu li que “bosque” era uma espécie de floresta pequena, não um conjunto de cinco árvores. Mas não sei se é verdade. 

Quando chego no meu prédio, lá está de novo um elevador. É o mesmo modelo que eu usei hoje de manhã. Tem vezes que quando estou dentro dele, não sei se estou indo pro trabalho ou pra casa. É tudo tão igual que eu me confundo.

Em poucos segundos estou em casa. Entro no apartamento, jogo o casaco e a pasta em cima do sofá, vou direto pro quarto. Aff. Chega disso, chega, chega. Preciso é descansar mesmo. Não sei como se vive assim. 

Tiro a roupa e deito na cama, hoje o dia foi daqueles. Que nem ontem, que nem amanhã. Puxo o cabo de trás do meu pescoço e ligo na tomada. Ah! Bem melhor. Digito no meu braço uns comandos e me deito tranquilo. Pronto. Por hoje é só e amanhã tem mais. Mais do mesmo que sempre foi.

Conto selecionado e publicado no Podcast "Literatura Já!", disponível aqui.

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