quarta-feira, 29 de abril de 2020

Resenha - Viagem à aurora do mundo

VERÍSSIMO, Érico. Viagem à aurora do mundo. São Paulo: Globo, 1996.

– Pois o que o Prof. Fabricius e eu prometemos a vocês é uma excursão através das idades, começando no Período Cambriano e terminando nos tempos recentes.
– Uma viagem à aurora do mundo! – exclamei.
– Isso, romancista. Isso! Uma viagem à aurora do mundo. (p. 83)

Algo dentro de mim sabia que esse dia chegaria; mas, como as evidências até aqui sempre apontaram na direção contrária, surpreendi-me quando chegou. É o dia em que não gostei de um livro de Érico Veríssimo. Vamos à resenha.

Viagem à aurora do mundo conta a história de um escritor que, sem querer, vê-se preso numa casa onde pessoas no mínimo estranhas se reúnem para fazer um experimento científico nunca antes visto. Um grande cientista, Prof. Fabricius, criou uma máquina que consegue captar imagens do passado e projetá-las numa tela. Não é um filme, mas a vida real, o passado da Terra, bem diante dos nossos olhos. A premissa não é ruim, mas é que o livro tem um problema de bases. Vou explicar. 

Não tenho conhecimento científico para embasar o que estou falando, mas minha experiência como leitor e como "escritor" têm mostrado isso. Quando escrevemos um roteiro, livro, conto, etc., precisamos nos ater àquilo que propomos (é bem parecido com o que fazemos na pesquisa científica). Se deixamos o foco ou perdemos nossa base, o texto fica arenoso e o leitor não sabe direito como caminhar nele.

Acontece que neste livro, finalmente Veríssimo mergulhou na ficção científica. Mas parece que ele ainda faz isso como quem pede desculpas. A verdade é que, na sua literatura, Érico Veríssimo sempre apontou um desejo de escrever fantasia, mas sua gana por contar os causos da realidade (o que eu chamo de "fantasia do cotidiano"), sempre o impediram de seguir nesta linha. Mas aqui ele faz isso, o livro é uma espécie de ficção fantasiosa. Porém... 

Érico Veríssimo transformou o livro num texto didático! A ideia de viajar no tempo não é novidade, o diferencial aqui seria a máquina projetar a imagem sem que os personagens viajassem de fato. Porém Veríssimo não foca na viagem em si ou na ficção científica por trás disso, mas explora um caráter didático explicando, por exemplo, o que são as eras pré-históricas, quais são as teorias do surgimento da Terra, da origem da vida, como eram os animais no passado (incluindo até figuras deles!).

Novamente, é o que disse: é um problema de bases. Porque se Veríssimo tivesse focado neste aspecto didático, bom, então não haveria problema! O livro seria perfeito para um professor de Ciências da escola usar, ainda mais numa época (1939!) onde a televisão não era difundida e a sociedade se valia muito do rádio e dos livros para ter informações. 

Mas o que Érico Veríssimo faz é permear a história toda com ares de fantasia. O casarão misterioso, os "bruxos", a "mocinha", o "vilão", o "herói", o "tutor", e por aí vai. O livro acaba oscilando entre dois aspectos que, no fim das contas, não permite que a gente se firme bem em nenhum dos dois. Por isso a leitura, pelo menos para mim, não foi tão agradável quanto poderia ser.

Não obstante, permanece quem o escreveu: do meu ponto de vista, o maior nome da literatura brasileira. Tem umas referências que ele faz que eu acho fenomenais! Eu já deveria ter desconfiado quando ele colocou uma partitura em "Incidente em Antares" e nas várias referências musicais que ele fazia. Mas olha só que bacana essa citação dele, que só vai entender de verdade quem é músico (especialmente os tenores!):
"[...] depois me precipitei corredor em fora, na ponta dos pés, glorioso como um tenor que sai de cena a berrar um dó natural numa fermata que começa junto da prima dona, em cena aberta, [...]" (p. 126)
Talvez o cerne da minha questão com o livro tenha sido o velho problema de expectativas. Não esperava ver em Veríssimo uma literatura infantil como essa (ou seria infanto-juvenil?). Porque, sinceramente, o livro é perfeito pra crianças. Tem um herói, uma mocinha, personagens misteriosos e fantásticos, seres antediluvianos e até figuras! Como disse, talvez tenha sido só um problema de expectativas.

Mesmo assim, como já falei, ainda há ali escondidos os traços do grande escritor que foi (que é!) Érico Veríssimo. Olha só essa frase: 
"– O homem foi, é e será sempre o mais incoerente e estúpido dos animais. Vive a se queixar de que a vida é monótona e de que não lhe acontecem coisas extraordinárias. Sonha com a aventura mas foge quando ela se lhe apresenta." (p. 172)
Nos seus capítulos curtos, Viagem à aurora do mundo talvez seja o livro perfeito para uma criança conhecer o trabalho de Érico Veríssimo e se deixar levar por uma leitura simples. O meu primeiro contato com o autor foi O tempo e o vento, né, mas vamos deixar aí essa sugestão no ar. E eis o fim da resenha, do primeiro livro que não gostei de Érico Veríssimo.

4 comentários:

Jonatas Amaral disse...

Olá!
Eu estava lendo esse livro em 2020, mas só finalizei ele de fato agora em 2022.
Eu demorei tanto tempo assim, primeiramente porque justamente quando cheguei na parte das imagens, comecei a achar muito interessante, porém esse didatismo para mim quebrou um pouco a história.
Contudo, ao voltar a ele esse ano, eu me acostumei. Até comecei a ansiar por essas partes, porque a história em si, passou a ficar desinteressante diante das fantásticas criaturas que apresentava.
Eu entendo perfeitamente o que falas sobre essa mudança de tom do livro. Acabei gostando da obra, mas com ressalvas.

Muito boa a resenha!

Jônatas Amaral
Meu blog - Um Pé Nas Páginas
https://umpenaspaginas.blogspot.com/

Gabriel Alencar disse...

Obrigado pelo comentário, Jonatas! Concordo plenamente com você. Na verdade, a proposta do livro era outra desde o começo, acho que foi mais essa a questão.
Muito obrigado por compartilhar sua opinião! Já vou lá visitar seu blog!

Fagner Garcia Vicente disse...

Li esse livro por volta dos 10, 11 anos, junto com As Aventuras de Tibicuera. Essas obras, para mim, foram a transição da literatura infantil que lia até então, para a literatura "séria". Engraçado que uma professora, ao me ver com Viagem à Aurora do Mundo, me indicou H. G. Wells, me introduzindo no mundo da ficção científica. Anos mais tarde, depois de eu, como bom gaúcho, ter lido praticamente toda a obra do Érico, fui levado por seu Solo de Clarineta a ler Huxley.

Gabriel Alencar disse...

Fagner, muito obrigado pelo comentário! Muito louca essa sua transição do realista Veríssimo pra ficção científica rsrsrs. Pra ser honesto com vc não curti muito Wells, embora Huxley seja muito bom mesmo. De FC pra mim tem dois mestres imbatíveis, cada um a seu modo: Philipk Dick e Douglas Adams.
Mais uma vez te agradeço o comentário, mano!

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