segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Resenha — Filhos de Vênus

PIMENTEL, Aldenor. Filhos de Vênus. Boa Vista: Wei, 2024.


Existe uma felicidade secreta que só os esquecidos têm. As pessoas de boa memória não conseguem entender e talvez até achem um absurdo dizer isso: mas é que esquecer pode ser bem divertido. Não esquecer em si, mas a chance que a memória ruim nos dá de redescobrir

O autor do livro, Aldenor Pimentel, me contatou para que eu fosse um dos leitores beta dessa obra. Lembro de ter lido e enviado comentários. Mas agora, mais de um ano depois, eu não lembrava de quase nada da história. Ler este livro e me surpreender com os fatos, ter a chance de arregalar os olhos com as reviravoltas, são as coisas boas que os esquecidos têm. 
Pra alguns, o tempo é um furacão, que nos arrasta sem pressa. (p. 15)
A história do livro é bem interessante. Estamos numa sociedade onde as pessoas são feitas de barro ou de mármore. Os Filhos da Terra, como Eva, são frágeis, quebradiços; seu barro não pode ficar molhado por muito tempo; a única coisa que têm a seu favor é que eles têm os dois braços. Os Filhos de Vênus, por outro lado, são de mármore. São rígidos, fortes, bonitos de se ver, como Cláudio, o filho da rainha. O único porém é que eles nasceram sem braços e precisam escravizar os Filhos da Terra para viver.

O primeiro capítulo é um arraso! A narração é muito bem executada. Dá vontade de continuar lendo, de entender a razão das coisas, de ver o que vai acontecer com a escrava que vai trabalhar no palácio real e se apaixonar pelo príncipe, de como a sociedade estratificada foi criada e organizada. 

As descrições também são na medida, o autor faz um excelente uso da falta de descrições em vários momentos justamente para forçar o leitor a montar a cena na cabeça. Esse tipo de respeito à inteligência do leitor tem sido cada vez mais raro e por isso eu a apreciei bastante.

Pensando nos três pilares da escrita, tal como expostos por Stephen King (narração, descrição e diálogo), creio que a única falha mesmo são os diálogos. A maioria dos personagens são caricatos e os diálogos rasos, as reações são exageradas. Mas confesso que é possível superar essas dificuldades, porque realmente a narração é exímia.

Gosto bastante da informalidade com a qual o livro conta a história. Parece que de fato estamos ouvindo alguém falar com a gente, nos relacionamos com o texto que está cheio de trocadilhos (inclusive, até me pergunto se eles funcionariam em outro idioma — tendo a crer que não) e também cheio de brasilidades. Ainda que em alguns momentos me pareça que o autor forçou a mão para fazer caber algumas expressões, essa característica do texto é bem presente e torna a leitura fluida.

A princípio achei os capítulos curtos demais, porém creio que eles servem ao seu propósito e funcionam bem: falam o que têm que falar e fazem a história rodar. Por outro lado, alguns capítulos me parecem um pouco corridos demais. Não é que eles não funcionem como são, mas é que eu não me importaria em ter visto algumas cenas se desenrolarem com um pouco mais de calma, talvez com mais detalhes, com trejeitos que revelassem mais o personagem.

Porém, creio que a grande força do livro está na temática. A alegoria do livro é muito clara. A famosa luta de classes é bem evidente desde o começo e muito bem explorada no decorrer do livro por meio de símbolos. O livro explica seu mundo pelo simples fato de que alguém foi lá e fez, e isso criou um sistema ao qual todos se submetem. 

Nesse sentido, o livro é uma clara distopia: um sistema maior que obriga as partes a se comportarem de determinada forma e até molda suas expectativas sobre o que deveria ser ou não. Creio que o autor apresenta o marxismo de uma forma bem original que não tinha visto ainda.

Além dos diálogos, meu único porém é que acho que no epílogo o autor se explicou demais. O texto já tinha deixado tudo bem claro e algumas explicações finais soaram meio gratuitas. Também preferia que o autor não tivesse adicionado os posfácios, já que redundam no mesmo problema do epílogo.
Em outras terras, Vênus será uma deusa admirada pelos quatro cantos do mundo. A ela será destinado aposento digno de sua importância. O mundo inteiro vai admirar sua beleza. E quem olhar sua cara não exagerará seu coração de pedra. (p. 99)
Não obstante, esse livro é muito interessante. É um livro que nos prende, que, no mínimo, nos faz pensar sobre a condição humana ou a condição da sociedade. E como nos últimos tempos tenho lido bastante literatura brasileira contemporânea (vide as últimas resenhas postadas aqui), creio que tenho algum cacife pra dizer que estamos diante de uma admirável obra de literatura brasileira — coisa que não tem sido tão comum nos últimos tempos.

Ah, e por fim, só pra se ter ideia de como eu realmente havia esquecido do livro. Comecei a leitura pelo prólogo. Achei as primeiras frases bem interessantes, argutas de um jeito que me deu curiosidade de ler. Logo pensei: "Quem será que escreveu? Porque sei que o Aldenor gosta de convidar autores locais. Vou já ver quem é, fiquei curioso pra ler outras coisas escritas por esse autor."

Quem escreveu o prefácio fui eu.

0 comentários:

Postar um comentário