quinta-feira, 15 de abril de 2021

Resenha – A análise da cadela procriadora e outros contos

ARANTES, Márcia. A análise da cadela procriadora e outros contos. Aparecida de Goiânia: Building Dreams, 2020.


O lance é o seguinte. Imagine que você não gosta de beterraba, mas faz degustação de sorvetes pra dizer se são bons ou ruins. Aí aparece pra você um sorvete de beterraba. Por mais que você goste e entenda de sorvete, sua análise será influenciada pelo fato de não gostar daquele sabor. Acho que este é o meu caso com o livro. 

Pra começar, devo admitir que existe coragem da autora em investir nesse gênero de escrita. Eu tive dificuldade pra definir o que é. Tem uma agressividade constante no texto. Não é só uma abordagem mais direta ou seca, não, é o intuito quase de agredir o leitor. Foi só então que eu vi que a própria autora define seu estilo como "ficção transgressiva com uma pitada de gore". Então eu disse: "Ahh, pronto, tá explicado." E digo mais: excelente definição.


Mas, pra mim, ela passa do limite. Algumas coisas chegam num ponto em que eu me pergunto: pra que eu vou perder meu tempo lendo uma coisa dessa? Ou pior: pra que alguém vai escrever algo assim? A troco de quê? Prefiro reservar meu tempo pra coisas que me façam crescer. Já tenho agonias e dores o suficiente na vida real. Não defendo o escapismo, mas não é parte do meu gosto dedicar tempo a essas coisas tão absurdas. 

E digo isto porque a verdade é que a violência e o gore não se sustentam. A mente humana tem a terrível capacidade de se acostumar com o horrendo em pouco tempo. Então quando se chega no final, o que era pra ser horrível, se torna cansativo. O leitor dá de ombros para os horrores da história e fica entediado, esperando o fim chegar.

Tá, mas antes então vamos falar da diagramação. No começo eu achei chiquérrimo aquelas páginas pretas. Do meio pro fim, já não achei prático. Que elas funcionassem como uma separação entre os contos, sei lá, ficaria legal. Agora começar cada conto com elas foi de matar, porque isso quebra demais o ritmo da leitura (e piora ainda mais quando se lê à noite). A gente tem que inverter a cor da letra e fica preso nisso por duas páginas antes de conseguir começar a ler com tranquilidade. 

Quando a gente vai diagramar, precisa optar sempre pelo que torna mais agradável ao leitor. O texto é do autor, beleza; mas a leitura não. A leitura é minha. Por isso ela precisa ser o mais agradável possível. Manter a constância é muito importante.

Isso se traduz também nas divisórias nos textos. Entendo a opção de selecionar uma pra cada conto, mas isso torna o livro menos homogêneo. Em vez de funcionar como uma antologia de ponta a ponta, funciona mais como um "juntado" de contos. Isto não é algo ruim em si, mas do meu ponto de vista uma boa antologia precisa ter uma boa coesão interna.

Ainda nesse tópico, não entendi de jeito nenhum o porquê daquele espaço a mais no final de cada parágrafo. Pra ser honesto isso não incomodou, mas na hora que folheei o livro foi a primeira coisa que me saltou aos olhos. 

Também não entendi a escolha pelo tamanho do livro, acho que ficou grande demais pra pouco texto (apenas seis contos compõem a obra). Se tivesse ficado no tradicional 14x21 penso que teria sido melhor. Ainda nos aspectos físicos, não gosto de capa com laminação brilho (fica marca de dedo, reflete na luz, etc) e achei curtas as orelhas do livro; mas esses dois últimos eu admito que é frescura.

Bom, passando para o conteúdo, o livro, de modo geral, cumpre a função mais básica que eu espero em qualquer coisa que leio: ele me faz mergulhar na história. Acho que este é o principal mérito de um bom texto. Eu preciso ser capaz de mergulhar sem ver o que está na superfície da história, por mais que fique óbvio.

Mas, como falei, isso foi "de modo geral". Existem alguns pontos que me fizeram olhar para fora do que estava escrito e atrapalharam um pouco minha imersão. Refiro-me a algumas coisas na diagramação que me chamaram a atenção e um ou outro desenrolar de trama que me fez pensar: "Ah, já sei o que vai acontecer no final".

O conto que dá nome ao livro, sinceramente, não me convenceu nadinha com aquele relato da mulher. Uma pessoa submetida a extremo cansaço, trauma mental e ainda vai escrever historinha? Desculpa, só em filme e livro mesmo. Passa uma visão errada de como funciona um tratamento. Essa é uma etapa já mais avançada da coisa. Não me convence que uma pessoa catatônica vá fazer aquilo, especialmente se considerarmos o conteúdo do que ela escreve – extremamente próximo à sua realidade.

Em vez de trazer uma visão mais próxima de um assunto tão pouco discutido, fantasia-se sobre ele. Não somente isso, mas o relato da mulher catatônica (além de super bem construído para alguém que claramente não estava em plenitude das capacidades mentais) não se difere em quase nada do relato da psicóloga em questão de estilo. Ou seja, não parece que é outra pessoa escrevendo.

Além disso, a personagem é uma baita ultra gênia da literatura. Escrevendo um conto do modo como escreveu em poucos minutos. Novamente, a linha do que poderia se aproveitar com um tema tão sensível vai ficando cada vez mais longe. O conto tem o mesmo erro de premissa do primeiro: ele já diz o que vai acontecer e não tem reviravolta, simplesmente acontece e o leitor diz: Tá, mas isso eu já sabia, e agora?

Os dois últimos contos são só uma desculpa para o gore. Não tem praticamente plot nenhum, as páginas são gastas só com descrições do gore e muito pouco ou quase nada de história/enredo. Ambos começam com uma tentativa pífia de terror, vão pro gore gratuito e terminam sem nada. As premissas são interessantes, mas mal trabalhadas. Os contos não reverberam, não contribuem e sequer impactam – isso porque, como já falei, a mente humana se acostuma. O que era pra ser horrendo, torna-se cansativo, quase corriqueiro, depois que a gente já leu o que estava nas páginas anteriores. 
"O inferno caíra dentro de seu coração e pressionava seus músculos para fora, querendo romper ossos, carne e pele para expandir seu reino de dor." (p. 91)
Pra finalizar, não vou negar que encontrei alguns trechos bem escritos, como este citado acima. Há uns momentos que mostram certa maturidade na apresentação e desenvolvimento do texto. Aliás, se você ver bem essa resenha, vai notar que praticamente não cito essas questões. Meus maiores problemas estão mesmo com o gênero e o conteúdo, que são como beterraba pra mim. 

Ali nas últimas páginas, a explicação que a autora fez sobre os contos no final foi desnecessária. É interessante para o autor se justificar e explicar o que fez – mas quem deveria fazer isso em primeiro lugar é a sua obra, não ele mesmo. A obra precisa ter sustância por ela mesmo, sem precisar de uma ajudinha do escritor no fim.

Tendo dito isto, eu sinceramente não recomendo o livro. Vá gastar seu tempo com outra coisa, meu filho. Não caia no chamado do abismo. Esse poço sem fundo só serve pra nos puxar pra baixo e muito pouco contribua para o que realmente importa: a vida.

0 comentários:

Postar um comentário