ARANTES, Márcia.
Dinheiro. Edição Kindle, 2024.
Estava decidido a não ler esse livro, porque já tinha lido outras coisas da Márcia e nunca fez muito o meu estilo. Comprei para apoiar uma colega escritora. Mas aí terminei um livro, tinha nada pra fazer, abri o app do Kindle e dei uma colher de chá. Li como quem não espera nada. E me peguei lendo, lendo, lendo. Colher de chá virou colher de sopa, de repente era colher de servir. Vamos à resenha.
O livro conta a história de vários personagens que se encontram por acaso na cidade de Affonso Camargo, no interior do Paraná. Ali o corretor de imóveis Marcelo, o coach Lamartine, e os próprios habitantes da cidade terão que enfrentar uns aos outros e seus desejos ocultos por poder, dinheiro e vingança.
"Rico e pobre. Bom e mau. Puta e santa. Aqui, a gente não é nada." (posição 873)
De modo geral, a narrativa é fluida, a escrita da autora é simples e mordaz ao mesmo tempo, dura até. A narrativa é "multi plot", ou seja, tem vários personagens principais e acompanhamos a história pelos olhos deles de modo alternado. Também achei a introdução de personagens bem natural.
As transições são bem feitas, a gente pula de um pro outro sem sentir tanto o peso desse salto. A autora deixa a gente constantemente curioso, ela sabe terminar as seções de modo que não fica aquele clichê do "oh, o que será que vai acontecer?", mas, ao mesmo tempo, a gente fica sim querendo saber o que vai acontecer.
Aliás, a narrativa tem o toque da autora. É inquietante, sempre parece que tem algo de errado no ar. O texto é exageradamente autêntico, soa único, soa como a autora (mesmo que eu não a conheça direito). Acho que foi isso que me fisgou tanto e me prendeu no livro, ver que era alguém real, humano, contando uma história.
Isso fica nítido quando vemos as descrições, por exemplo, que me parecem desnecessárias, e até acho que muitas são supérfluas, mas não sei explicar por que elas me fascinam tanto. Me pego não só lendo, mas saboreando mesmo várias delas, me deixando levar e entrar na história.
Ele quis abrir, e como quis, para encarar os olhos amarelos do maior e mais perigoso arquétipo de poder, a águia que tanto pode levar uma nação ao status de maior do mundo quanto derrubar um homem fraco para baixo do poço mais fundo. (posição 1484)
Alguns erros de digitação passaram batido, mas é normal — e não me refiro aos erros propositais mencionados em trocas de mensagens de texto pelo celular (isso, na verdade, eu achei muito bom). Além disso, a meu ver, as notas de rodapé não acrescentam em nada. Algumas vezes até tiram a graça porque em vez de deixar o leitor deduzir sozinho, vai lá e expõe de mão beijada. Nenhuma das notas de rodapé explicou algo que já não pudesse ser inferido pelo texto — e até quando não dá pra inferir, a contribuição não é necessária porque o leitor não precisava saber daquilo pra entender o que está acontecendo na cena.
O livro é divido em três partes. Devorei a primeira parte, achei muito bem escrito e maravilhoso... até que cheguei na segunda e terceira partes. Aí começaram os problemas.
Primeiro, achei um tiro no pé trazer personagem novo logo no começo da segunda parte. É desgastante ter que se familiarizar de novo com alguém, isso foi um banho de água fria no ritmo do livro, que em vez de se intensificar, desacelerou demais, pra depois turbinar demais na terceira parte.
A partir da segunda parte, há uma série de eventos forçados, que não têm construção natural ou qualquer indicativo, fica parecendo que foi só por fazer. Aí coisas que eram pra ter vindo pro leitor como um choque, soam como forçada de barra do roteiro.
Achei grave também as súbitas mudanças psicológicas pelas quais as personagens passam. Do nada metade das pessoas vê o homicídio ou a conspiração como solução razoável para seus problemas. E pior que nem faz tanto sentido, tudo pode ser resolvido de outras formas, embora o roteiro tente mostrar que só tem uma.
Os personagens que foram tão bem construídos e cativantes na primeira parte, com todas as suas contradições e absurdos, vão gradualmente tornando-se mais e mais caricaturas de si. A coisa se torna tão absurda que o vilão da história no final se torna vítima e a gente quase fica torcendo pra que ele consiga se safar.
Não tenho como negar que na terceira parte a autora soube trazer uma narrativa acelerada, até bem construída. O problema é que isso só intensificou os problemas que já estavam acontecendo na segunda parte, tornando os personagens ainda mais caricatos e os eventos ainda mais forçados. De repente todo mundo tem corda, faca, sabe amordaçar e amarrar o outro, com força e instinto pra matar. Impressionante.
Entendo a escolha da autora com os eventos da terceira parte; mas, pra mim, só teria justificativa se acontecesse no começo do livro e guiasse a trama. Não ajuda a resolver a história, só insere mais confusão. Além disso, quebra um pouco o contrato com o leitor, que do nada se vê imerso num outro tipo de gênero que o livro não se propôs nadinha até então. É interessante sim a mistura de distopia com apocalipse zumbi, até curti... mas não teve nada no decorrer do livro que apontasse pra isso.
Tanto é que as reflexões temáticas da terceira parte são até muito boas, mas desconexas do cerne da história, que saiu da ganância para a vingança, e depois largou toda a construção narrativa que fez e ficou só com um fiozinho da meada pra chegar no final. A terceira parte finge que o livro inteiro foi sobre dinheiro, quando a maior parte das motivações e tramoias foi baseada em vingança. E aí o tema é jogado pelos ares e o livro termina do jeito que dá.
A multidão voa para o dinheiro como águias atrás de sua carninha. (posição 2581)
Qual é a minha conclusão então. Creio que autora fez um excelente trabaho na construção simbólica do livro. As constantes analogias óbvias e implícitas sobre a águia e a galinha, coragem e covardia, dinheiro e poder, até mesmo o detalhe gráfico de usar a imagem de uma galinha nas transições de cena. Faz muito tempo que não vejo algo tão bem trabalhado assim, é nítido como a escritora ganhou maturidade com sua própria forma de escrever. É de ler e ficar com inveja de uma escrita tão poderosa.
É justamente por causa disso que os problemas que apontei me doeram tanto, achei uma grande, grande pena (ba-dum-tss). Se tivesse mantido a mão sobre o roteiro e os personagens que teve na primeira parte, esse livro teria sido uma obra-prima, e olha que falo isso de um gênero que eu nem curto direito. Se considerar essas questões, creio que a autora se tornaria referência no seu gênero literário.