terça-feira, 22 de julho de 2025

Resenha — (In)fungível

MARTORELLI, Renato. (In)fungível. Patuá: 2022. Ebook.


Eu quero muito, muito dar uma chance à literatura brasileira contemporânea; mas ela não colabora. É triste dizer isso, ainda mais porque creio que esse livro tinha muito potencial. Bom, vamos à resenha.

O livro traz a história de dois personagens: Joseilton, um pobre esquizofrênico que mora na pobreza de São Paulo, e Brian Lyndon Johnson, um jovem britânico, rico e bipolar. A narrativa trata dos dois separadamente e elas se tocam brevemente no final. 

Aqui já começo a falar o que o livro tem de bom: o começo me fascinou muito. O jeito que o autor narra a vida de Joseilton é muito bom. Acho que é simplesmente porque o autor me parece honesto. Soa como se, ao contar uma história, ele simplesmente contasse uma história. Ainda se percebe um pouco de firula, mas dá pra relevar. Rapidamente eu já estava envolvido, não nego — até porque sou muito fã de drama urbano. 

Aliás, de modo geral, a capacidade de narração do autor é invejável. Cobre um tempo grande com poucas palavras e sem perder o leitor. Tem algo muito humano no que o autor traz. A lenta transição da doença de Joseilton é muito bem montada, tem um toque de frescor. Algumas circunstâncias são meio caricatas. Novamente, não é bem polido, mas é bom. 

Porém, o que o livro tem de bom acaba aí. No começo, achei que o personagem principal sofre do problema de ser muito passivo. O autor é tão suave com ele que o rapaz parece não ter traços firmes de personalidade. Algumas mudanças bruscas de comportamento, por exemplo, sem nenhum setup prévio, tornam o personagem menos crível. Mas isso era apenas a ponta do iceberg.

Enquanto o autor é ótimo em narração, é triste ler seus diálogos. Mas assim, triste mesmo. Mesmo. De dar raiva e pena ao mesmo tempo. Não parece duas pessoas conversando, mas dois bonecos sem vida humana. Se isso já era evidente na narrativa mal polida, nos diálogos é que se escancarou de vez. 

O autor testa a nossa paciência desnecessariamente. Enquanto na narrativa inicial temos algo de visceral e humano, na parte em que o personagem Brian é o principal, tudo soa artificial. Os personagens parecem os mesmos, são superficiais, a narrativa ainda é razoável, mas é o tipo de coisa que não compensa. 

Não bastasse a artificialidade dos personagens, o autor ainda consegue piorar a situação inserindo vários diálogos que não levam a absolutamente lugar nenhum. Os personagens do nada começam a discutir temas profundos, o que deixa evidente que o autor só queria filosofar e encontrar uma plateia pra seu blablablá. O autor usa isso como um recurso narrativo barato e é de tão mau gosto que salta aos olhos do leitor. 

Ainda no quesito personagens, parece que o autor só sabe escrever dois tipos de personagem: o indignado e o manda-chuva. O indignado se exaspera com tudo, fala palavrão, é um descontrolado que quer ter razão. O manda-chuva, por outro lado, é o que sempre fala calmo, que está por cima da carne seca. Todos, TODOS os personagens do livro preenchem esses dois papeis uma hora ou outra. 

Os personagens não são personagens, são marionetes que se encaixam nesses papeis. Não têm personalidade, não tem vontade, não dá vontade de ler. Na verdade, o autor, sem saber, se descreveu na seguinte citação:
[...] as suas letras denotam sentimentos forçados e desejos afetados, sem qualquer naturalidade e conexão com o público em geral. (p. 101)
Sabe, é triste. De verdade, dá pena. No começo do livro o autor traz uma abordagem única e fascinante: um personagem principal esquizofrênico. Aí quando retornamos a esse personagem esse traço é simplesmente ignorado (*emoji de palhaço*). Pior: até agora estou tentando descobrir qual foi  o propósito narrativo em inserir um segundo personagem principal da Inglaterra numa história que já estava tão boa com um personagem brasileiro.

De novo, não posso negar que o autor tem estamina. O cara tem fôlego pra escrever. Honestamente, é de impressionar que a pessoa aguente escrever 312 páginas disso e lidar com esses personagens por tanto tempo. Enfim. Foi bom enquanto durou, pena que durou pouco. Do meio do livro pro fim, o autor me fez (novamente) desgostar da literatura contemporânea.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Resenha — O vale dos mortos

OLIVEIRA, Rodrigo de. O vale dos mortos. São Paulo: Faro Editorial, 2014.


Novamente um livro que me foi doado. Geralmente não doamos coisas ótimas, talvez coisas boas. Por isso minha expectativa não estava tão alta sobre o livro, ainda mais por se tratar de um autor contemporâneo. Olha, que grata surpresa!

A história tem uma premissa atraente. Por milênios, houve um planeta oculto no Sistema Solar chamado Absinto. Ele passa perto da Terra e veem-se centenas, milhares de pequenos pontos brancos saindo da Terra em direção a ele: são as almas de dois terços da população mundial. Sem alma, os corpos dos que se foram se transformam em zumbis, e o último terço restante da humanidade agora tem que tentar sobreviver. 

A história se passa no Brasil (não surpreende, o autor é brasileiro), mais especificamente em São José dos Campos. Ivan e Estela estão no shopping com seus dois filhos quando o cataclisma acontece e eles se veem cercados de zumbis. Eles então precisam dar um jeito de sobreviver, ter acesso a comida, água, armamento, e tentar formar uma comunidade de sobreviventes para resistir neste novo mundo.

De acordo com Stephen King, os três pilares da escrita são narração, descrição, e diálogo. Os três são importantes, embora nem sempre absolutamente necessários. Este livro tem boa narração e razoável descrição, só peca nos diálogos

Infelizmente os personagens agem como pessoas reais, mas não falam como tais. São frases bem artificiais, com poucas exceções. Na maior parte das vezes, parece que o autor quer fazer os personagens soarem de um modo específico, em vez de simplesmente deixar eles falarem. Do meu humilde ponto de vista, esta é a marca de um autor iniciante. Não me surpreende que este seja o primeiro livro do autor (pelo menos acho que é). Mas, se isso é o que o autor faz de pior, mal posso esperar pra ver outras das suas obras!

Enquanto achei os diálogos bem ruinzinhos, não posso dizer o mesmo da narrativa e da trama. O autor consegue fazer exatamente aquilo que eu busco quando leio: ser transportado para outro mundo. De repente eu não estou mais sentado numa cadeira lendo o livro, eu estou lá em São José dos Campos, desesperado junto com os personagens, tentando entender como vamos fazer pra sair vivos dessa. 

É muito interessante ver que o autor conta a história sem pressa. Dá um pouco de agonia, mas acho que isso serve à historia. Aliás, tem muitos momentos de tensão, e dá vontade de continuar lendo — a marca de um bom livro. 
O som da metralhadora encheu o ar, deixando o resto do mundo em silêncio, por instantes. A maioria deles ficou atônita por alguns segundos. Então aquele era o som da guerra? (p. 193)
Sinto no livro alguns traços de Júlio Verne e Arthur C. Clarke, com aquela ficção científica hard, que buscava, de fato, argumentos científicos para embasar sua ficção (ainda que as explicações científicas fossem, naturalmente, meio absurdas). Tem um quê de informativo em alguns momentos, trazendo fatos sobre o local ou o ambiente que, no fundo, não acrescentam muita coisa pra história. 

Aliás, o livro tem muitas pontas soltas ou cenas que pouco contribuem. No começo elas me incomodaram, mas pelo pouco que vi na internet, parece que o livro tem continuação. Presumo, então, que muitas dessas pontas são trabalhadas nos outros livros.

Em termos de enredo mesmo, se o livro tem um defeito pra mim, é que os zumbis pouco influenciam na história. Sei que é estranho dizer isso, mas depois do embate inicial, os zumbis são como uma coisa qualquer. Por exemplo, ninguém sequer é mordido por um zumbi e se transforma. Os caras vão lutar contra os bichos sem arma de fogo... e ganham, tranquilos. Se o livro é sobre zumbis, esperava que eles tivessem uma participação mais efetiva na história.

Mas dá pra perdoar porque o drama humano é realmente a alma da narrativa. Isso é bem comum em livros de sobrevivência: dizer que o problema não está na catástrofe que tem potencial pra destruir a humanidade, mas na própria humanidade. Creio que o autor faz isso bem em certa medida. Tenho a impressão que ele ficou com um pouco de receio de pesar a mão nesse assunto; mas penso que o que ele fez, fez razoavelmente bem. 

Enfim, pra mim esse tem clara de um romance de estreia e, como já pesquisei, o autor tem outros livros. Se o cara consegue fazer isso num romance de estreia, mal posso esperar pra ver o que mais ele preparou! É até difícil de acreditar, mas estou animado pra ler literatura brasileira contemporânea! É de tirar o chapéu pro autor. 

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Resenha — Os demônios

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Martin Claret, 2020.


A sorte é que arrependimento não mata. Estava todo orgulhoso com minha meta de ler a obra completa de Dostoiévski, mas já me arrependi. Nem tudo na vida são flores. Meu Deus, que livro chato.

É até difícil dizer do que se trata a história. São tantos núcleos, e vários deles com tantos assuntos desconexos que não sei por onde começar. Nas primeiras duzentas páginas a gente acha que a história é sobre um escritor falido e sua relação platônica com a mecena que o sustenta; depois parece que a história é sobre o filho da velha rica; depois a história vira sobre o filho do escritor falido. Aí no final já não sabemos mais de nada.

O livro tem muitos problemas. Tem descrições e narrações longas que não contribuem em NADA para a história; tem diálogos sem fim que não chegam a lugar nenhum; tem mais de 700 páginas que, se fôssemos honestos, poderiam ser resumidas em 200 e estaria de bom tamanho. Esse livro é a decadência de Dostoiévski. Parece até Jane Austen de tão chato.

Li até o fim porque todo mundo disse que no final ele ficava bom, que valia a pena aguentar a chatice. Não acreditem nisso, é mentira! O livro ganha fôlego na terceira parte (terceira!), mas logo se perde, o personagem que nós acompanhamos é colocado de escanteio, outros surgem e o livro trata como se a história toda fosse sobre eles. É uma encheção de linguiça que nunca vi igual.

Não tem como fazer bons debates sobre os temas trazidos (revoluções, sociedade, niilismo, ateísmo, etc), porque eles ficam afogados no mar de coisas supérfluas. Tem algumas frases legais, algumas reflexões bem nível Dostoiévski... mas não dá vontade de citar, não dá ânimo. A gente se sente traído, enganado por ter desperdiçado tanto tempo.

É o tipo de coisa que não vale a pena. Não perca seu tempo com esse livro, vá ler Irmãos Karamazóv ou alguma das noveletas menores. É muito mais proveito de Dostoiévski.