Esta foi uma daquelas gratas surpresas que acontecem quando pegamos um livro ao acaso e nos deparamos com uma boa história. Ainda melhor quando percebemos que o autor sabe o que está fazendo, sabe conduzir as cenas, sabe narrar de modo adequado, enfim. Vamos à resenha.
Trata-se de uma história fictícia, mas ambientada na Segunda Guerra Mundial. Acompanhamos a saga de Emil Clemént, um judeu francês preso em Auschwitz. Lá, seu talento com o xadrez vai garantir a sua vida e pode até salvar outros judeus da câmara de gás. Tudo isso enquanto lida com a dinâmica terrível do campo de concentração, onde prisioneiros maltratam outros prisioneiros e líderes nazistas mantém controle ferrenho sobre tudo que acontece.
A estrutura do livro tinha tudo pra dar errado, por isso me surpreendeu bastante que tenha dado certo. O autor opta por fazer uma narrativa alternada. Ao mesmo tempo em que relata os acontecimentos dentro do campo de concentração, também faz os personagens se encontrarem 20 anos depois para lidarem com os fantasmas do passado e seus próprios relacionamentos.
Esse é o tipo de estrutura que tem tudo pra ficar caótica ou clichê, mas preciso reconhecer que os cortes de cena são bem montados. Não parece que estamos acompanhando uma história e de repente vem um flashback; parece que estamos acompanhando a mesma história acontecendo em vários tempos simultaneamente.
Os outros prisioneiros começam a respirar de novo. Eles não se importam com quem o destino escolheu para morrer nesse dia, desde que não tenham sido eles. Não é porquetenham o coração frio por natureza. É simplesmente assim que as coisas são em Auschwitz. (p. 56)
O livro é evidentemente uma ficção histórica, mas nem por isso é menos real. A verdade é simplesmente que a guerra é um grande absurdo e a crueldade humana consegue ser ainda pior. A história, ainda que fictícia, retrata a realidade de Auschwitz — uma realidade absurda.
Também penso que boa parte do que torna essa história tão real são os personagens e as relações humanas presentes em toda a história. O livro não é sobre xadrez, sobre Auschwitz, nem mesmo sobre nazismo. O livro é sobre ser humano em tempos difíceis — sejam eles de guerra ou de paz. Sim, porque o livro nos convida a pensar se é possível ser humano em tempos de paz também, ainda mais uma paz marcada pelas atrocidades da guerra.
Mas o Häftling [prisioneiro] número 163291 fez pé firme.— Sempre se tem uma escolha, Herr Hauptsturmführer [Senhor Capitão], caso se esteja disposto a aceitar as consequências. (p. 142)
Enfim, me deu pena quando o livro terminou, porque eu queria mais. Li até a última página, incluindo glossário, agradecimentos e comentário histórico, e ainda achei pouco. Como falei, foi um daqueles livros que me surpreendeeu muito e deu pena quando terminou. Livro bem escrito, emocionante, ressoante (que faz pensar)... nem parece literatura contemporânea.
Por mais livros que nos surpreendam.