A coisa começou bem quando percebi que esse foi um livro que consegui de graça na Amazon. Confesso que tenho achado bem interessante a leitura no Kindle. Nunca fui contra os ebooks. Embora prefira os físicos, livros virtuais são tão bons quanto seus antepassados quando acertam na escrita. Ou seja, uma história boa será sempre uma boa história, tanto faz o suporte em que se encontre. Enfim, vamos à resenha.
E ali, naquela estreita salinha, sossegada e humilde, gozavam os dois, ao lado um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após um dia inteiro de canseiras ao sol. (p. 75)
Bom, trata-se de um clássico escrito em 1890. Há resenhas, resenhas, estudos e estudos sobre esse livro, por isso me detenho em dar minhas impressões apenas. A história é conhecida de João Romão, que criou seu cortiço ao lado do terreno da sua venda, com ajuda da escrava Bertoleza. Não tardou, o cortiço passou a ser seu próprio microcosmos, trazendo personagens com seus próprios dramas como Pombinha, Jerônimo, Bruxa, Machona, Rita Baiana, entre outros. E, do outro lado, ainda apareceu o Miranda, representante da "boa" sociedade da época.
Confesso que talvez eu esteja tão acostumado com a higienização da literatura, que confesso que não esperava encontrar em "O Cortiço" uma temática tão sexualizada. O sexo (seja na fornicação, no adultério, ou no comércio) é um tema que está sempre em voga, nas mais diferentes esferas da sociedade do livro. Não é à toa que este sempre foi um assunto muito presente na música ou literatura.
Chamou-me a atenção também perceber que O cortiço é um romance de narrativa multifocal, coisa que não vi acontecer com frequência em livros mais antigos. Se hoje estamos acostumados com Game of Thrones ou livros de fantasia que lidam com vários personagens ao mesmo tempo, creio que Aluísio estava à frente do seu tempo ao explorar esse tipo de narrativa.
Mas, honestamente, foi o conceito humano que mais me chamou a atenção em O cortiço. Aluísio me soa exageradamente como um Érico Veríssimo. Ou, devo dizer, Érico soa como um Aluísio: extremamente humano, com uma capacidade descritiva bem própria, de quem fala tudo da pessoa mesmo falando pouco. Como Érico é a minha referência, posso dizer que Aluísio me soa como se Érico fosse das antigas. A narrativa é interessante, e os fatos chamam a atenção, mas são os personagens com sua humanidade que nos cativam.
É muito interessante. Parece que estou lendo vários episódios da Grande Família mas com tudo acontecendo no século XIX. É deveras a balbúrdia da sociedade brasileira na sua maior nitidez. É tão claro que a história se passa em 1890, mas eu enxergo nela o Brasil de hoje. É vizinho se xingando, é parente se invejando, é homem fugindo com mulher, é mulher traindo com outro homem, é gente fazendo falcatrua e no fim do dia sentando à roda de samba pra beber com os amigos.
Aliás, nesse quesito, Aluísio Azevedo é capaz de escalar a tensão da cena do jeito que só quem já viu uma desavença brasileira se desenrolando pode compreender. É absurdo atrás de absurdo, eita atrás de vish, Brasil atrás de Brasil.
Enfim, esse livro me surpreendeu muito porque me assusta em ver que desde 1890 o Brasil já era Brasil. Um cenário quase desalentador. Mas, como bom brasileiro, não tenho outra opção senão sorrir e balançar a cabeça, num meneio de só quem sabe o que é o Brasil pode entender. Finalizo com essa citaçao de Aluísio Azevedo que nos descreve tão bem:
Uma algazarra medonha, em que ninguém se entendia! (p. 53)