segunda-feira, 4 de março de 2019

Resenha - Jogador nº 1

CLINE, Ernest. Jogador nº 1. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.


Alguns livros passam pela gente e nós não temos noção do que eles podem vir a ser. O que quero dizer é que um dia alguém leu Shakespeare e pensou: "Nossa, isso é muito bom! Vamos divulgar, vamos ler". Mas pode ser que muitos o tenham lido e sequer tenham pensado: "Ah, isso aqui é muito bom! Mas tão bom que vamos continuar lendo pelos próximos trezentos anos". O que quero dizer é que por vezes nos deparamos com livros que são muito bons, mas não temos ideia do que eles se tornarão um dia. E eu acho que Jogador nº 1 vai entrar pro hall dos clássicos da ficção científica.

Pode não carregar a filosofia de um Philip Dick ou a abrangência de um William Gibson, mas tem aí um toque de Douglas Adams que tanto amamos. Há um blurb do USA Today que diz que o livro é quando: "Willy Wonka se encontra com Matrix". Não há descrição mais perfeita! Quero dizer, talvez haja aí um exagero, mas se você não leu, essa chamada dá a tonalidade do livro.

A história é uma grande aventura no universo virtual do OASIS e a caça pelo Easter Egg que Halliday, o criador do OASIS, deixou antes de morrer. Quem conseguir encontrar o ovo, terá o controle e domínio absoluto do OASIS, incluindo domínio sobre as ações da empresa e todas as propriedades de Halliday. Num cenário distópico do fim do século XXI, este é o sonho de muita gente, seja do jovem Wade ou da grande multinacional IOI, que quer a todo custo tomar o controle do OASIS e transformá-lo numa plataforma de vendas, em vez de diversão.

Sobre toda a distopia que o livro cria, eu me pergunto se ela é crível. A IOI é colocada como uma super-corporação (maior que o Big Brother), capaz até mesmo de tomar pessoas como escravos para pagamento de dívidas. Eu, particularmente, acho esse cenário forçado até mesmo para uma distopia. Que pessoas sejam escravizadas em cenários cyberpunks é natural, mas sempre há um intricado processo para tentar justificar moralmente isto (coisa que Jogador nº 1 não se preocupa) ou, pelo menos, é feito por alguém que detenha o uso legítimo da força em alguma instância. Mas tudo bem, porque o foco do livro é realmente outro.

A tradução foi infeliz em algum momento. Há muitos, muitos "juntamente com", tantos que é de revirar os olhos. Também o excesso de verbos no particípio deixou algumas passagens estranhas. Tudo bem que em inglês é comum, mas na tradução fica evidente que precisava não só traduzir as palavras, mas o significado.

Mas a gente também tem que dar um desconto pra tradutora Carolina Caires Coelho. Eu entendo a dificuldade que deve ter sido pra traduzir algumas expressões que são intrínsecas à cultura pop ou, o pior, um jogo de palavras que só faz sentido em inglês: a tradução é mais do que palavras, há sentido por detrás delas. Senti a dificuldade disso quando o livro fala dos enigmas de Halliday. Mas, mesmo assim penso que a tradutora fez um bom trabalho, ainda que tivesse que recorrer a algumas notas de rodapé para dar a profundidade que só a tradução literal não podia dar (esteticamente não ficou muito agradável ter as notas de rodapé como necessidade, mas entendo que foi a maneira que encontrou).

Em outros momentos, agora falando do cerne do livro dele, me pergunto se Cline tirou mesmo toda a gordura do filé (termos de Stephen King), porque há partes que não contribuem tanto pra história, mas não é problema. Vi pelo menos dois momento assim e em alguns momentos a descrição me parece um pouco exagerada; na ânsia de deixar bem claro alguns ambientes, acho que peca, mas também não interfere em quase nada, é só preciosismo meu. Ah, e como é quase impossível de evitar, a obra tem um ou dois momentos "Deus ex machina", mas dá pra perdoar (risos). Tanta coisa já acontece, vamo dá uma colher de chá pro autor.

Como é natural, o livro é em ordens de grandeza superior ao filme. Este último, naturalmente, é uma adaptação para as telas (tanto pela necessidade de reduzir uma história grande a um curto período de tempo como pelas necessidades financeiras de fazer um filme). Mas também vale destacar que há trechos do livro que seriam impróprios para a telona. Percebo que esses momentos no livro apontam que ele foi escrito para um público nerd mais velho mesmo.

Não obstante, o encadeamento do livro é brilhante; em determinado momento parece que o livro vai perder fôlego, mas o autor retoma a boa narrativa. E é muito legal que ter conhecimento da cultura nerd/geek dos 1980s ajuda mas não é essencial, porque as descrições do autor são suficientes para se familiarizar, embora não dê pra relatar tudo. Em um ou dois momentos precisei googlar alguns termos ou nomes: não que fosse necessário, mas eu queria entender melhor a cena.

O livro tem uma alternância entre o real e o virtual que é constante e há tensão dos dois lados da moeda. Achei bacana que não é o velho dilema escapista entre o "mundo que se vive" e "aquele que se quer" (embora isto esteja presente no livro). A alternância entre os mundos é relevante e se complementa. A trama se desenvolve no mundo real e no virtual de maneira que ambos são importantes, mas, verdade seja dita, o virtual tem preponderância.

Cline repete o número 42 em diversos momentos: eu vi o que você fez aí, espertinho. Me pergunto quantos easter eggs ele mesmo não escondeu em sua obra. Teve um ou dois trechos que meu sentido aranha de gamer old school apitou dizendo "Tem alguma referência escondida aqui", mas não quis cavar, preferi deixar o mistério pra depois.

Quando terminei de ler o livro me deu uma tristeza aguda. Uma nostalgia tal que não sentia há muito tempo. Sabe quando a gente se familiariza com uma história? Sabe quando a gente aprende a gostar de alguns personagens, torcer por eles, conhecer sua história? O livro termina com um final feliz, mas o leitor não consegue evitar a ligeira infelicidade de ter que voltar ao mundo real e não ouvir mais histórias daqueles personagens naquele mundo fantástico onde tudo pode acontecer.

God help me, o livro é arrebatador. Espero que todos os geeks e nerds leiam esse livro que, com certeza, vai entrar permanentemente pra minha estante. Espero que se divirtam com todas as grandes possibilidades que ele oferece, que acompanhem e torçam por Wade nesse livro e se emocionem com cada grande passo na aventura. Quando tudo termina, não é do começo, do meio ou do fim que sentimos falta, mas da jornada pelo OASIS. E que baita de uma jornada.

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