terça-feira, 31 de dezembro de 2024

2024: o resumo da ópera

E aqui estamos nós de novo. Acabou-se o ano. É a época de rever o que fizemos e ficar triste em ver que não cumprimos quase nada das metas que estabelecemos para nós mesmos. Pra minha sorte, não tive meta nenhuma e ainda assim consegui dobrar a meta de decepção. Vamos ao resumo da ópera.



1. Livros resenhados

Não tive um bom ano literário e, por isso, as leituras sofreram. Conquanto tenham sido melhores que ano passado, não dá pra dizer que menos de dois livros por mês é algo do qual se orgulhar — muito embora a pesquisa oficial sobre leitura no Brasil desse ano tenha mostrado que menos de 50% dos brasileiros sequer folheiam um livro durante o ano todo.
Nesse ano é muito fácil escolher o melhor: La catedral del mar, disparado. Uma ficção histórica de fazer inveja. É o livro que eu sempre quis ler e não sabia. Absurdamente visceral e realista, contando a história de um rapaz que nasce e cresce em Barcelona no contexto da Inquisição espanhola e o período medieval. Até agora ainda consigo lembrar de cenas do livro que me dão arrepios de tão boas.

Por outro lado, também ganha em disparada a pior leitura: Ready Player Two. O autor conseguiu destruir tudo que construiu com o primeiro livro, apenas com o intento de lucrar. É o retrato da nossa época, creio.

Pensando na quantidade de livros, houve uma ligeira recuperação em relação ao ano anterior, mas ainda muito aquém do histórico. O que aconteceu com aquele Gabriel? Será que as prioridades mudaram tanto? Será que simplesmente não encontrei tantos livros bons? Não sei.
2018: 27 livros
2019: 37 livros
2020: 40 livros
2021: 21 livros
2022: 35 livros
2023: 20 livros
2024: 23 livros
 
2. Concursos literários e produções

Este tópico está intimamente ligado com a nova seção que criei abaixo. Por enquanto, basta dizer que estou explorando novos horizontes. 

Acho que aqui oficialmente começa a ladainha da tristeza e do porquê meu ano literário foi tão ruim. Na verdade, os concursos são apenas reflexo do desânimo, não o contrário. Este foi oficialmente meu pior ano (disparado!) em textos aprovados para concursos/revistas literárias. Mas tem o pulo do gato: neste ano não submeti nenhum texto para concursos ou revistas literárias no Brasil.


Minha teoria é que lá fora a competição é muito maior e, do meu ponto de vista, a exigência também. Já percebi no Brasil que tem alguns lugares que se eu mandar texto, quase certeza de que ele será aprovado. O problema é que vai o meu e vários outros que, do meu humilde ponto de vista, não têm qualidade nenhuma. Eu simplesmente queimo um texto para nada. E nada mesmo, porque essas publicações são, em regra, vazias. Lá fora, a história é outra.

Também tem o fato de que não escrevi textos direcionados. No Brasil, via de regra eu olho o edital ou a revista literária e escrevo um texto que se encaixa na proposta deles. Não fiz isso para os EUA. Pela tabela é possível ver que foram praticamente os mesmos textos enviados para revistas diferentes. É bem possível que isso tenha contribuído. Ou é simplesmente a conclusão mais simples: meus textos são uma bosta.
2018: 18 textos enviados, 4 aprovados → 22% de aproveitamento
2019: 17 textos enviados, 4 aprovados → 23% de aproveitamento
2020: 18 textos enviados, 6 aprovados → 33% de aproveitamento
2021: 35 textos enviados, 6 aprovados → 17% de aproveitamento
2022: 46 textos enviados, 7 aprovados → 15% de aproveitamento
2023: 10 textos enviados, 4 aprovados → 40% de aproveitamento
2024: 25 textos enviados, 1 aprovado → 4% de aproveitamento
Sei que os números são apenas números (tenho dito isso em todos esses anos). Mas ainda são a métrica que temos, que posso fazer? Nos resta então o seguinte gráfico:



3. "Carreira" literária

Talvez essa aqui seja a parte mais interessante dessa retrospectiva. Tudo que falei acima está intimamente ligado com o que vou falar agora. 2024 foi um ano bem triste para a minha literatura, em especial para meus livros. 

Desde 2019/2020, tenho publicado quase um livro por ano.
  • Personagens não bíblicos e suas histórias (2019) foi meu "debut" e teve uma excelente abertura. Não foi a abertura que a editora esperava, mas dentro das minhas proximidades, saiu muito bem.
  • Meu segundo livro foi É a vida: microcontos de risadas, amor e morte (2021). Esse saiu chorando, mas atribuí isso à pandemia. 
  • Quando chegou meu terceiro livro, Outros personagens não bíblicos e suas histórias (2022), eu esperava uma recepção parecida com o primeiro. Mas foi um tremendo fiasco. Enquanto o primeiro vendeu 600 exemplares tranquilo (só parou por causa da pandemia), esse outro não vendeu nem 300. 
  • Não satisfeito com as derrotas, lancei o Pois é e outros microcontos (2023), na esperança de que os microcontos me dessem alguma abertura em escolas para que eu pudesse fazer oficinas (coisa que o É a vida fez muito bem). Esse também não saiu quase nada.
Esse ano todos os meus livros ficaram encalhados. Resolvi colocá-los na Amazon. Teve trimestre (trimestre!) que meu total de vendas foi de R$0,10 (sim, dez centavos). Comecei a ficar com angústia de ver tantas caixas de livros encalhados no quarto, era um atestado da morte da minha literatura. 

Distribuí sugestões de oficina em escolas. Fiz toda uma formalidade, apresentei um programa por escrito, sugestão de contrapartida, cronograma, tudo. Algumas escolas nem me receberam. Outras disseram que iriam me chamar para seus festivais literários ou para dar a oficina em outro momento. Nenhuma entrou em contato de novo. 

Ano passado escrevi meu primeiro romance, Coisas da vida, que foi contemplado no Concurso “IV Literatura de Circunstâncias” da UFRR, mas que ficou só nisso mesmo e nunca foi publicado. Quando entrei em contato com a editora para ver se havia alguma atualização, se limitaram a dizer que estava previsto no edital que o livro só seria publicado se houvesse possibilidade. E é isso.

Tentei então submeter o livro como projeto no edital da Lei Paulo Gustavo, lançado pela Secretaria de Cultura de RR. Fiz todo o projeto, seria o único romance roraimense que se passa totalmente na cidade de Boa Vista, é uma história que fala da realidade local, no meu projeto coloquei como sugestão a doação de 500 exemplares para escolas de todo o Estado, no cronograma e orçamento coloquei valores condizentes com a realidade do país, pensei em como baratear custos... fiz tudo o que podia. Quando saiu o resultado, meu projeto ficou em último lugar. Ali eu entendi que, de fato, era o fim.
 
Nos meses que se seguiram, doei todo o meu estoque. Tudo. Alguns lugares ainda se solidarizaram comigo e compraram alguns exemplares a preço de custo. Vários outros nunca recebi nem um obrigado, só receberam a doação mesmo e ficou por isso. Quando doei o último exemplar, senti que eram os últimos pregos do caixão. Estava morto, podem elogiá-lo à vontade.

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Pra ser justo, houve dois respiros de literatura esse ano, e os dois graças ao SESC. Fui convidado para palestrar na Semana Literária (é a foto que está acima) e também fui dar oficina no interior de Roraima, em São João da Baliza. Esses momentos foram bem únicos. 

De modo geral, passei (passo?) por um momento bem triste, pensando em desistir mesmo da literatura e talvez voltar para as composições musicais ou até mesmo explorar uma outra arte. Porém ainda surgiu uma luz no fim do túnel: escrever em outro idioma. Foi aí que resolvi enviar textos para o exterior. 

Apesar de apenas 1 ter sido selecionado, encaro isso com bons olhos. Tem escritores nativos do inglês que passam uma vida para conseguirem ser publicados. Eu consegui isso em 2023 e 2024. E olha que o conto de 2023 foi comédia (considerado um dos gêneros mais difíceis de escrever em inglês). Tudo isso me mostrou que talvez haja uma solução.

Esse ano, então, comecei a pensar num romance para escrever diretamente em inglês e publicar no exterior. Estou oficialmente migrando minha literatura para fora. Não pretendo escrever outros textos em português, e nem investir mais na literatura no Brasil de modo geral. Já terminei o plot do meu próximo romance e devo começar a escrevê-lo em meados de Janeiro/2025 pra tentar a sorte por lá. Não sei se vai dar certo, mas sinto que as circunstâncias me empurraram para esse caminho. Quem sabe este não é o futuro?


#O resumo da ópera
  • Livros lidos: 23
  • Textos escritos: provavelmente nenhum, embora tenha feito umas 3-4 traduções de textos meus. Por outro lado comecei a plotar 3 livros esse ano e um deles vingou, tenho a estrutura dele completinha já.
  • Textos enviados pra concursos literários: 25
  • Textos aprovados: 1
Em 2023 escrevi meu primeiro romance aos trancos, dessa vez fiz com mais técnica, espero que ele saia com mais qualidade. Vamos ver. Pretendo usar meus contatos para me ajudar com a publicação no exterior e talvez até com publicidade — mas vamos ver.

No momento, o único plano é tentar escrever um bom livro. É isso. O que vai ser dele eu não sei. Mas, pelo menos, Deus, me ajuda a contar uma boa história. De tudo que perdi, é disso que sinto mais falta.

Mas vamos ver. 
Amanhã é 2025 e eu não sei o que esperar dele. Alguém sabe?

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Resenha — The Complete Poetical Works of Edgar Allan Poe

INGRAM, John H (ed.). The Complete Poetical Works of Edgar Allan Poe. New York: A. L. Burt Company, 1875. Digital Kindle Edition (2011).


Então, né. Acabou que voltei. É que fiquei tão animado com meu novo Kindle que resolvi pegar alguma coisa de graça na Amazon, só pra estrear ele mesmo. Acabou que encontrei essa coletânea com as obras de Poe e resolvi dar uma chance. Não costumo resenhar livros de poesia, mas depois que terminei de ler percebi que precisava registrar algo sobre ele.

Eu já havia lido Poe há algum tempo. Na verdade, eu havia lido apenas O corvo e não tinha curtido muito. Penso que é porque eu achava que se tratava de uma narrativa em prosa, não de um poema com algum fundo mórbido. Aliás, pensei que seria algo de terror, e não senti medo nenhum lendo o conto. Acontece que eram apenas minhas expectativas que estavam erradas. Poe é sim muito bom.

Nesta obra temos vários de seus poemas e não dá pra negar que ele é um mestre da palavra. O corvo em si é fantástico, muito bom. Relendo agora com outros olhos, realmente entendi que poesia é sinônimo de ritmo. Além disso, achei genial como Poe não tinha medo de repetição de palavras quando elas serviam para fortalecer a ideia do ritmo. Além disso, ao contrário do que me pareceu no começo não é um poeta limitado a um único tema. 
A DREAM WITHIN A DREAM.

Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow—
You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand—
How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep—while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?
Por um lado, enquanto foi possível explorar outras áreas de Poe que eu não conhecia, também não posso dizer que tudo que ele produziu são flores. Uma crítica que ouso fazer é que é uma poesia, acho, exageradamente intelectualizada. Soa como Machado, citando frases em outros idiomas como se o leitor tivesse obrigação de saber do que se trata (claro que no contexto o francês era a língua franca do mundo). 

Além disso, temos as constantes referências a Grécia clássica. Mano, não consigo entender que fascinio é esse que pro cara ser intelectual ele tem que citar ou estar familiarizado com personagens da Grécia antiga. Honestamente me soa como intelectualismo de fachada.

Outra coisa é que achei muito mais interessantes os seus poemas do que os monólogos de filosofia e teologia (não deve ser à toa que ele é conhecido pelos seus poemas e não outros textos). Não obstante, nota-se que ele era um ávido leitor de poesia. Inclusive elogiando outros poetas.

Por outro lado, os comentários dele sobre poesia e escrita são MUITO interessantes. No ensaio The Poetic Principle ele ensina o que entende por "princípio poético" e como isso guia sua própria forma de escrita — absurdamente genial, cheio de insights muito bons. 

No outro, The Philosophy of Composition, Poe praticamente dá uma aula de como escrever. Ele usa seu próprio poema O corvo e explica como ele fez para escrevê-lo. Nossa, o tanto que dá pra gente aprender sobre poesia com esses dois textos... já li livros inteiros que não ensinaram tão bem como ele.

Enfim, como qualquer outro escritor, há textos e textos. Além de O corvo e Dream within a dream, que citei aqui, houve outros poemas que li mais de uma vez, absorvendo as nuances e a profundidade do autor. Honestamente não esperava gostar tanto de Poe, mas a verdade é que o homem cativou. Permanece na estante, o safado.

(Agora sim, acho que esse foi o último de 2024)

sábado, 21 de dezembro de 2024

Resenha — A vida secreta dos grandes autores

SCHNAKENBERG, Robert. A vida secreta dos grandes autores: o que os professores nunca contaram sobre os famosos romancistas, poetas e dramaturgos. São Paulo: Ediouro, 2008.


Eis o que parece ser a minha última leitura de 2024. Um livro que comprei num sebo em Brasília, só pra ter alguma coisa fácil pra ler na viagem de volta. Sem muito o que dizer, vamos à resenha.

Trata-se de um livro de curiosidades, não tem outra coisa. Aqui vemos causos e detalhes sobre a vida de Shakespeare, Byron, Edgar Allan Poe, Charles Dickens, Tolstói, Conan Doyle, Tolkien, Hemingway e vários outros.

O livro em si é interessante, mas, por incrível que pareça, a leitura cansa. Primeiro porque não há uma narrativa que una todos os capítulos, são apenas fascículos independentes cheios de curiosidades sobre grandes personalidades.

Soma-se a isso também o problema de que... bem, perdoe a franqueza e a ignorância... eu sequer conhecia todos os autores listados. Perdão por não lembrar quem era Louisa May Alcott (embora eu soubesse sim do seu livro Mulherzinhas) ou William Faulkner. Honestamente, nem sei porque peço desculpas, não sabia que era obrigado a conhecer todos. 

De qualquer forma, o livro é interessante. Sabia que o "corvo" do famoso poema de Poe era um corvo real cujo dono era Dickens? Sabia que Mark Twain era amigo de Nikola Tesla e chegou até a patentear algumas invenções? Sabia que após a fama Conan Doyle não suportava mais Sherlock Holmes e decidius matá-lo, mas os fãs foram pra frente da casa dele protestar? 

É para isso que o livro serve, para que a gente possa conhecer um pouco mais sobre os autores mas, principalmente, para que a gente possa mostrar nossa sapiência com esses fatos interessantes nas rodas dos amigos que, assim como nós, fingem que leram todos esses autores. 

Bom, mas acho que valeu a leitura, já que a finalidade era ser simples e ter algum entretenimento. Gostaria de finalizar citando parte do apêndice do livro, que traz as últimas palavras de algumas dessas grandes celebridades. 

As últimas palavras de Lord Byron foram "Agora vou dormir. Boa noite." Oscar Wilde disse: "Meu papel de parede e eu estamos lutando um duelo mortal. Um de nós dois terá de sair daqui." Mas os dois que mais me chamaram a atenção foram H. G. Wells, que disse: "Vá embora. Estou bem."; e Walt Whitman, cujas últimas palavras foram: "Me segure, eu quero cagar."

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Resenha — Chernobyl

LEATHERBARROW, Andrew. Chernobyl: 01:23:40. Porto Alegre: L&PM, 2020.


Ganhei este livro porque um amigo mudou-se e resolveu se livrar de coisa parada presentar-me com parte de seu acervo. Como estou viajando, resolvi que seria uma boa oportunidade pra me dedicar à leitura sem grandes interrupções, e deu certo.

Este livro é uma não-ficção escrita por um entusiasta, um aficcionado do acidente de Chernobyl. Andrew Leatherbarrow nada mais é do que um fã e, depois de tanto pesquisar sobre Chernobyl, percebeu que tinha reunido um poderoso arsenal de dados sobre o caso e foi convencido a publicá-los em livro.

A estrutura do livro segue um padrão estranho. No começo temos uma exposição e introdução ao tema. A seguir, cada capítulo ora fala do acidente em si e suas consequências, ora da viagem que o autor fez ao local do acidente e como isso marcou sua vida. 

Confesso que não vi tanta utilidade no relato pessoal do autor, me interessaram mesmo as partes que falaram do acidente e das dificuldades absurdas que as pessoas tiveram para lidar com as consequências do mesmo. Dizer que ele foi até o telhado de um prédio pra bater umas fotos e isso deixou ele nostálgico, bem... já não sei.

Sobre os fatos em si, o livro trouxe muitos detalhes que eu não conhecia. O autor aponta duas grandes causas para o acidente: problemas na própria construção e estrutura do reator de Chernobyl, e erro humano, devido à falta de consideração que Anatoly Dyatlov, vice-engenheiro-chefe da Usina Nuclear de Chernobil, teve por procedimentos de segurança e a vida humana.

Eu não tinha noção de como se deram os reparos e como foi o processo de contenção. Fiquei muito impressionado em ver que muitos dos que trabalharam nos esforços sabiam muito bem que não voltariam, realmente se sacrificaram para salvar a humanidade. Ou pior: muitos que foram e nem sabiam a que estavam se submetendo. Era gritante a corrupção e o descaso que a União Soviética tinham pela própria população. Triste e revoltante.

Destaco aqui o trabalho dos Liquidadores, dos Biorrobôs, dos bombeiros e dos mineradores — os verdadeiros heróis dessa história.. Mas de todos os detalhes que o livro traz, quero transcrever aqui um relato que o autor faz de outos acidentes radioativos em diferentes lugares no mundo. Os grifos são meus:
[...] mais de 240 pessoas foram expostas à radiação em Goiânia, no Brasil, em setembro de 1987, depois que uma dupla de ladrões desmontou uma cápsula de aço e chumbo que haviam roubado de um hospital meio abandonado ali próximo. 

A cápsula, que fazia parte de um aparelho de radioterapia e continha césio, ficou guardada no quintal da casa de um deles. Lá, os dois ladrões ficaram batendo vários dias na cápsula para perfurar a proteção externa de aço, ao mesmo tempo em que adoeciam. Atribuíram seus sintomas a algum alimento que tivessem ingerido, sem suspeitar do objeto roubado, e depois venderam a cápsula danificada a um sucateiro chamado Devair Ferreira.

Naquela noite, Devair notou que o material interno soltava uma luminosidade azulada e imaginou que devia ser valioso — até sobrenatural. Para protegê-lo, guardou a cápsula na casa onde morava com a esposa, Gabriela, e distribuiu pó e fragmentos de material entre amigos e parentes. 

Um deles foi o irmão de Devair, que deu um pouco do pó de césio para a filha de seis anos de idade. Encantada com aquele brilho mágico azul, a menina ficou brincando com o pó de césio, passando em si mesma como se fosse purpurina e ingerindo partículas radioativas. Dois empregados de Devair ficaram alguns dias mais tentando desmontar a cápsula para extrair o chumbo que continha.

Gabriela foi a primeira a perceber que ela e todos os seus próximos estavam adoecendo gravemente. Um médico lhe disse que era uma reação alérgica a alguma coisa que comera, mas ela estava convicta de que a culpa era do material estranho que tanto fascinara a família. 

Gabriela pegou de volta a cápsula que tinham revendido a outro ferro-velho, levou-a — de ônibus — até um hospital local e lá declarou que aquilo estava “matando [sua] família”. Essa providência impediu que o episódio tivesse uma gravidade muito maior.

O césio então ficou num pátio até o dia seguinte, sem ser identificado, até que um radioterapeuta, a quem um médico do hospital pedira que fosse examinar a cápsula, “chegou bem a tempo de demover os bombeiros de sua intenção inicial de pegarem a fonte e jogarem num rio.”

Gabriela, a menina e os dois empregados de Devair morreram. Devair sobreviveu, mesmo tendo absorvido uma dose maior do que os outros quatro. Como a cápsula tinha sido aberta e transportada várias vezes naquelas duas semanas, diversas áreas da cidade ficaram contaminadas, exigindo a demolição de muitos edifícios. (p. 24-25)
Não há como negar que essas histórias fascinam. São interessantes porque são absurdamente reais. Ainda que a energia nuclear seja a mais eficaz entre todas as energias limpas disponíveis hoje, o risco que ela traz ainda é muito grande. O mundo tem medo demais de um inimigo invisível. Chernobyl certamente não será o último acidente energético, mas espero que seja o último dessas proporções.

Enfim, o livro vale a leitura, ensina demais sobre o que é o ser humano e os limites da ciência. Pelo menos por enquanto, vai sim ficar na estante. 

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Resenha — A camareira

PROSE, Nita. A camareira. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.


Comprei esse livro porque de repente me vi sem nada pra ler. Encontrava-me num estranho interregno em que não queria ler nada grande demais, nem algo pequeno demais. Uma leitura básica qualquer seria perfeita. E foi navegando na Amazon que encontrei esse livro por um preço razoável. Então vamos à resenha.

A camareira, como o nome sugere, conta a história de uma camareira de um grande e luxuoso hotel. Esta personagem, que tem mania de limpeza e dificuldade no traço social (parece uma forma de autismo, inclusive), certo dia encontra um grande empresário morto no seu quarto de hotel. Então ela se vê no meio de uma trama que envolve negócios escusos, gente perigosa, e suspeitas que recaem sobre ela.

Tratei o livro, a princípio, como uma mera leitura de entretenimento, aqueles livros básicos que se tornam bestsellers só porque usam todos os clichês. E, honestamente, o livro meio que é isso mesmo. Mas não posso negar que encontrei, algumas reflexões sutis e profundas em alguns momentos — ainda que não seja nada que saia demais do lugar-comum.
[...] a sujeira tem mania de se esconder embaixo das coisas, de se enfiar nos espaços. (p. 68)
O gênero do livro me parece meio confuso. Começamos acompanhando a história da camareira, do seu trabalho, seus medos e esperanças. Me pareceu que seria um drama contemporâneo. Mas das duas uma: ou a autora se perdeu, ou ela resolveu capturar o público usando de alguns clichês do gênero heist pra intensificar a trama. Honestamente não creio que isso é um problema tão grande assim, mas meio que rompe o contrato com o leitor e a gente se sente meio tapeado.

A tradução também me pareceu questionável em alguns momentos. Não li o original em inglês, mas em alguns momentos a leitura me pareceu pouco fluída ou entroncada mesmo. Ora a tradutora é bem informal, ora encontramos "ela retorquiu". Dá pra ler bem, é até tranquilo, mas volta e meia a gente dá uma pausa e tem que reler pra ver se entendeu mesmo, o que prejudica o fluxo da leitura.

Sobre os personagens e a trama em si, não achei nada do outro mundo. É bom o suficiente pra captar a nossa atenção, segue aquela regra básica de livros de entretenimento, os arcos são bem claros. Não sei até que ponto houve de fato consistência com a personagem principal, que oscilava entre alguns extremos que não faziam sentido com o que fora apresentado até então.

No fim das contas, é um livro médio, básico, mas que cumpre o seu papel. Diria que o livro, em sua totalidade, é honesto com o leitor ao proporcionar entretenimento e nos fazer mergulhar o suficiente na história para querer saber o que vai acontecer. 

É um livro que vai mudar a vida de alguém? Provavelmente não. Mas pra quem quer passar o tempo com uma leitura de boas, vale a pena. 

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Crônicas que eu não deveria publicar — 3

Algumas coisas me dão pena. Conquanto eu entenda que o princípio da autodeterminação dos povos é essencial para uma vida em sociedade, isso não diminui em mim o sentimento de pena por ver pessoas vivendo uma vida que, a meu ver, é tão penosa.

Lembro da primeira vez que, depois de passar meses em Brasília por conta de uma viagem a serviço, voltei para Boa Vista. Era um voo da madrugada e foi um baque quando saí do aeroporto e recebi aquela lufada de vento quente de 30ºC às 2 da manhã. Tomei um susto ao perceber que aquela era a realidade da cidade, do povo que vive ali. Meu primeiro pensamento foi: "Meu Deus... como é que tem gente que se submete a isso?"

Sentimento parecido tenho agora que passei dois dias em Manaus. Me dá muita pena ver um povo que se acostumou à bagunça e à sujeira. Até mesmo nos lugares mais arrumados fica bem clara a falta de atenção com os detalhes, a falta de esmero e cuidado. É que eles já não enxergam mais.

É um povo que se acostumou ao caos do trânsito, por exemplo. Ser civil no trânsito é motivo para irritação dos motoristas. O certo é você tomar proveito, passar na frente, fechar o outro carro, dificultar para o pedestre. Os outros que esperem, nunca eu.

No começo me deu raiva, mas agora me dá pena. Porque a impressão que tenho é essa, que o povo se acostumou e já nem enxerga mais. A má vontade em ser atendido é outro ponto que ressalta isso. Já se acostumaram, não fazem nem questão de tentar fazer melhor. E os clientes já se acostumaram a brigar e reclamar. Já é parte da cultura local.

Minha mãe ama Manaus. Foi a cidade em que ela nasceu e cresceu, é um lugar cheio de nostalgia. Não importa quantos fatos nós apresentemos a ela, simplesmente prefere ignorar e se apegar às memórias e impressões que tem do passado. No passado isso me irritava, hoje me dá pena. 

Minha mãe tem todo o direito de gostar desse lugar. Gostar de verdade, sabe? Tem todo direito de ignorar a realidade e ser feliz com as boas coisas que ela encontra. Mas me dá pena. Porque no fundo, eu estou vendo ela viver uma vida penosa, dura. Ela enfrenta as dificuldades da cidade, e enfrenta bem, isso é louvável. Mas me dá pena saber que, ao fazer isso, ela está se gastando, se consumindo, e isso diminui o tempo que eu vou ter com ela.

Me dá pena em saber que, mesmo tendo a opção de ir para o que é bom, ela também já se acostumou com isso. E não só se acostumou, como até prefere. É triste, é triste. Mas é o que temos. 

Espero que eu também não me acostume com as coisas ruins, mas que sempre busque o que é melhor. É claro que não sei o que é melhor, acho que ninguém de fato sabe. Só não quero correr o risco de me acostumar com o que é ruim. Deus, me ajuda.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Resenha — Blanco nocturno

PIGLIA, Ricardo. Blanco nocturno. Caracas: Monte Ávila Editora, 2011.


Comprei este livro há mais de 10 anos, na finada livraria de Santa Elena de Uairén, na Venezuela. Na época, custou-me 10 mil Bolívares (o que, na época, era o equivalente a 1 Real). Li o livro, mas não lembrava mais de quase nada e nem de ter entendido direito (na época meu espanhol não era muito bom). Por isso decidi revisitar a obra. Vamos à resenha.

O livro conta a história de um assassinato que ocorreu numa pequena cidade dos pampas Argentinos. Ali o portoriquenho americano Tony Durán morre, em meio a uma disputa familiar, dólares não declarados, e uma fábrica nos arredores da cidade. Acompanhamos a narrativa primeiro por meio do detetive Croce, e depois pelos olhos do jornalista Renzi, ambos acompanhados pelas gêmeas Belladona e o fiscal Cueto.
La perdición y el mal alegran la vida, pero lentamente llegan los conflictos. (p. 25)
A princípio o ritmo da narrativa me causou certo impacto. É como se fosse uma narrativa policial, mas sem pressa, sem ação, mas ainda com aquela pulga atrás da orelha, tentando descobrir como o crime aconteceu. Porém o autor dá um tiro no pé ao decidir trocar o personagem principal por outro no meio da trama, dando uma quebra terrível pro leitor.

Aliás, o livro todo tem essa morosidade. A impressão que tenho é que o autor não queria de fato escrever uma crônica policial. Ele queria fazer um ensaio sobre os pampas argentinos, sobre as paisagens, a população, a vida do campo e os dramas familiares dos grandes latifundiários. Porém, como isso não vende, ele colocou uma roupagem de trama policial pra enganar os bestas.

Esse é o grande problema do livro, ele quer ser filosófico, profundo, revelador da realidade argentina, mas sem dar o mesmo peso para a trama, justamente para o que leva o leitor a ler o livro. Isso me levou a achar o autor pretensioso, querendo ser o inteligentão, cheio de referências a outros autores e a clássicos. Soa mais como ensaio de um jornalista do que como um livro de ficção.
[...] vendió sus acciones a los inversionistas y nosotros perdimos el controle de la empresa. Lo hizo de buena fe, que es como se justifican todos los delitos. (p. 232)
No fim das contas, é preciso reconhecer que o autor tem certa qualidade na sua escrita. Mas as frases confusas, os personagens sem relevância nenhuma para a trama e, pior, o final sem resolução do crime só "porque sim" são de matar. Não é uma obra que pretendo reler, não creio que vale a pena.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Resenha — Dinheiro

ARANTES, Márcia. Dinheiro. Edição Kindle, 2024.


Estava decidido a não ler esse livro, porque já tinha lido outras coisas da Márcia e nunca fez muito o meu estilo. Comprei para apoiar uma colega escritora. Mas aí terminei um livro, tinha nada pra fazer, abri o app do Kindle e dei uma colher de chá. Li como quem não espera nada. E me peguei lendo, lendo, lendo. Colher de chá virou colher de sopa, de repente era colher de servir. Vamos à resenha.

O livro conta a história de vários personagens que se encontram por acaso na cidade de Affonso Camargo, no interior do Paraná. Ali o corretor de imóveis Marcelo, o coach Lamartine, e os próprios habitantes da cidade terão que enfrentar uns aos outros e seus desejos ocultos por poder, dinheiro e vingança.
"Rico e pobre. Bom e mau. Puta e santa. Aqui, a gente não é nada." (posição 873)
De modo geral, a narrativa é fluida, a escrita da autora é simples e mordaz ao mesmo tempo, dura até. A narrativa é "multi plot", ou seja, tem vários personagens principais e acompanhamos a história pelos olhos deles de modo alternado. Também achei a introdução de personagens bem natural. 

As transições são bem feitas, a gente pula de um pro outro sem sentir tanto o peso desse salto. A autora deixa a gente constantemente curioso, ela sabe terminar as seções de modo que não fica aquele clichê do "oh, o que será que vai acontecer?", mas, ao mesmo tempo, a gente fica sim querendo saber o que vai acontecer.

Aliás, a narrativa tem o toque da autora. É inquietante, sempre parece que tem algo de errado no ar. O texto é exageradamente autêntico, soa único, soa como a autora (mesmo que eu não a conheça direito). Acho que foi isso que me fisgou tanto e me prendeu no livro, ver que era alguém real, humano, contando uma história. 

Isso fica nítido quando vemos as descrições, por exemplo, que me parecem desnecessárias, e até acho que muitas são supérfluas, mas não sei explicar por que elas me fascinam tanto. Me pego não só lendo, mas saboreando mesmo várias delas, me deixando levar e entrar na história.
Ele quis abrir, e como quis, para encarar os olhos amarelos do maior e mais perigoso arquétipo de poder, a águia que tanto pode levar uma nação ao status de maior do mundo quanto derrubar um homem fraco para baixo do poço mais fundo. (posição 1484)
Alguns erros de digitação passaram batido, mas é normal — e não me refiro aos erros propositais mencionados em trocas de mensagens de texto pelo celular (isso, na verdade, eu achei muito bom). Além disso, a meu ver, as notas de rodapé não acrescentam em nada. Algumas vezes até tiram a graça porque em vez de deixar o leitor deduzir sozinho, vai lá e expõe de mão beijada. Nenhuma das notas de rodapé explicou algo que já não pudesse ser inferido pelo texto — e até quando não dá pra inferir, a contribuição não é necessária porque o leitor não precisava saber daquilo pra entender o que está acontecendo na cena.

O livro é divido em três partes. Devorei a primeira parte, achei muito bem escrito e maravilhoso... até que cheguei na segunda e terceira partes. Aí começaram os problemas.

Primeiro, achei um tiro no pé trazer personagem novo logo no começo da segunda parte. É desgastante ter que se familiarizar de novo com alguém, isso foi um banho de água fria no ritmo do livro, que em vez de se intensificar, desacelerou demais, pra depois turbinar demais na terceira parte. 

A partir da segunda parte, há uma série de eventos forçados, que não têm construção natural ou qualquer indicativo, fica parecendo que foi só por fazer. Aí coisas que eram pra ter vindo pro leitor como um choque, soam como forçada de barra do roteiro. 

Achei grave também as súbitas mudanças psicológicas pelas quais as personagens passam. Do nada metade das pessoas vê o homicídio ou a conspiração como solução razoável para seus problemas. E pior que nem faz tanto sentido, tudo pode ser resolvido de outras formas, embora o roteiro tente mostrar que só tem uma. 

Os personagens que foram tão bem construídos e cativantes na primeira parte, com todas as suas contradições e absurdos, vão gradualmente tornando-se mais e mais caricaturas de si. A coisa se torna tão absurda que o vilão da história no final se torna vítima e a gente quase fica torcendo pra que ele consiga se safar.

Não tenho como negar que na terceira parte a autora soube trazer uma narrativa acelerada, até bem construída. O problema é que isso só intensificou os problemas que já estavam acontecendo na segunda parte, tornando os personagens ainda mais caricatos e os eventos ainda mais forçados. De repente todo mundo tem corda, faca, sabe amordaçar e amarrar o outro, com força e instinto pra matar. Impressionante.

Entendo a escolha da autora com os eventos da terceira parte; mas, pra mim, só teria justificativa se acontecesse no começo do livro e guiasse a trama. Não ajuda a resolver a história, só insere mais confusão. Além disso, quebra um pouco o contrato com o leitor, que do nada se vê imerso num outro tipo de gênero que o livro não se propôs nadinha até então. É interessante sim a mistura de distopia com apocalipse zumbi, até curti... mas não teve nada no decorrer do livro que apontasse pra isso.

Tanto é que as reflexões temáticas da terceira parte são até muito boas, mas desconexas do cerne da história, que saiu da ganância para a vingança, e depois largou toda a construção narrativa que fez e ficou só com um fiozinho da meada pra chegar no final. A terceira parte finge que o livro inteiro foi sobre dinheiro, quando a maior parte das motivações e tramoias foi baseada em vingança. E aí o tema é jogado pelos ares e o livro termina do jeito que dá.
A multidão voa para o dinheiro como águias atrás de sua carninha. (posição 2581)
Qual é a minha conclusão então. Creio que autora fez um excelente trabaho na construção simbólica do livro. As constantes analogias óbvias e implícitas sobre a águia e a galinha, coragem e covardia, dinheiro e poder, até mesmo o detalhe gráfico de usar a imagem de uma galinha nas transições de cena. Faz muito tempo que não vejo algo tão bem trabalhado assim, é nítido como a escritora ganhou maturidade com sua própria forma de escrever. É de ler e ficar com inveja de uma escrita tão poderosa. 

É justamente por causa disso que os problemas que apontei me doeram tanto, achei uma grande, grande pena (ba-dum-tss). Se tivesse mantido a mão sobre o roteiro e os personagens que teve na primeira parte, esse livro teria sido uma obra-prima, e olha que falo isso de um gênero que eu nem curto direito. Se considerar essas questões, creio que a autora se tornaria referência no seu gênero literário.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Resenha — Crime e castigo

DOISTOIEVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Abril, 2010. (Clássicos Abril Coleções, v. 1 e 2). 


Voltei. Dois meses de desânimo e leitura errante. Mas aqui estou e finalizei a leitura desse clássico de Dostoiévski. Estranho, deve ter sido o primeiro livro que li dele na adolescência. Mais estranho ainda foi ele ter me fascinado à época, coisa que não conseguiu fazer de novo agora. Vamos à resenha.

Primeiro deixa eu falar dessa edição da Abril. Não é o único livro que tenho dessa coleção, mas todos eles têm um ponto em comum pra mim: odeio essa capa áspera. Entendo a ideia dos editores, mas pra mim realmente não colou. O texto é até disposto de maneira agradável, o papel é a bom e a fonte é adequada (ainda mais considerando que dividiram a obra em dois volumes), mas o toque da capa é bem incômodo.

Como o autor dispensa introduções e não nego que sou muito fã dele (já inclusive fiz resenha de outras obras dele como Uma criatura dócil, Noites brancas, Gente pobre, O ladrão honesto e outros contos, O idiota, Notas do subsolo e Os irmãos Karamazovi), vale a pena a gente ir direto pro texto e eu explicar porque essa é a obra dele que menos gostei, embora os críticos a considerem sua obra-prima.

Em Crime e castigo acompanhamos a história do estudante Raskólnikov, que abandonou a universidade por causa da sua situação financeira e de saúde. Vivendo num estado deplorável, ele achou uma solução para mudar sua vida: cometer um crime. O que ele não esperava, porém, era o peso que esse crime traria sobre seu espírito e como isso destruiria-o ainda mais.
Mais tarde compreendi, Sônia, que esperarmos que todos se tornem inteligentes é arriscar-nos a perder muito tempo. Pude, depois, convencer-me de que tal momento jamais chegaria, de que os homens não podeiam mudar, não estando no poder de ninguém modificá-los. Seria inútil perda de tempo tentá-lo. Sim, tudo isso é verdade... É a lei humana... (p. 186)
A princípio, fiquei dividido com o ritmo do texto. Por um lado, noto que Dostoievski não se incomoda com frases longas. Talvez ele fosse um dos últimos espécimes de uma época em que frases curtas não eram necessárias para que livros fossem considerados bons e acessíveis ao público. 

A minha primeira impressão foi de que, uma vez que nos acostumamos com o ritmo de Crimo e castigo, a leitura fica bem mais agradável. A princípio achei-a lenta demais, porém creio que seja apenas reflexo de nossos tempos. Como disse, uma vez acostumado ao ritmo do autor, a história fica (à sua própria maneira) eletrizante.

Porém essa impressão não durou. Não só as frases longas e sem impacto direto na narrativa se tornaram mais comuns, como também o próprio enredo pareceu se perder. 

Na verdade, em alguns momentos me parece que Dostoievski esquece o fio condutor da história e traz várias cenas que me soam mais como "casos de família" do que narrativas que contribuem para o ponto central da história. Aliás, me parece que vários momentos intensos da história sequer se dão com o personagem principal. Certamente os verdadeiros críticos literários terão explicações para isso, mas eu, mero leitor, não fiquei convencido.

Quanto ao tema, bem, não é outro senão o tema central da obra de Dostoiévski: a condição humana. Na verdade, salvo engano Dostoievski era católico, mas me pergunto se ele não leu uma dose cavalar de Nietzsche antes de escrever Crime e castigo, porque em alguns momentos me parece que ele não só retrata a dureza da vida, mas a leva a extremos para reforçar seu ponto (refiro-me à história contada por Marmeládov no começo e todo o desenlace com sua família no decorrer do livro).

Enfim, não dá pra negar que esta é uma obra profunda, que Doistoiévski conseguiu retratar a alma, o espírito abalado de Raskólnikov de uma maneira sensacional. Tendo dito isso, porém, a leitura foi muito chata pra mim. Precisei fazer esforço em vários momentos. O final até anima, os últimos capítulos retomam a narrativa de um jeito interessante; mas pra mim não compensa o livro inteiro. Talvez fosse o caso do editor ter sugerido cortar algumas partes (eita que agora os críticos me crucificam).

Por enquanto, pretendo doar meu exemplar. Triste dizer isso, mas não creio que terei interesse em reler essa obra tão cedo e, quando/se tiver, vou comprar uma edição melhorzinha. Ainda gosto muito de Dostoiévski e ainda planejo ler sua obra completa. Por hora, porém, Crime e castigo não foi a melhor das leituras.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Resenha — The Green Mile / (À espera de um milagre)

KING, Stephen. The Green Mile. New York: Pocket Books, 1999.


Vamos começar essa resenha logo falando a verdade: Stephen King é um safado. Não tem outro jeito de expressar. O cara faz a gente ficar tão envolvido com a história que já não temos escolha senão ler até o fim. Já não é uma questão de vontade, mas de necessidade

The Green Mile, conhecido no Brasil como "À espera de um milagre" é o livro que deu origem ao famoso filme de mesmo nome. Nem sabia que tinha livro, confesso. Foi só quando vi a capa que me interessei. Também nunca tinha assistido ao filme por inteiro, então deu pra curtir o livo tranquilo.

Aqui acompanhamos a história do policial penal (ou carceireiro) Paul Edgecombe, chefe do Bloco E da Penintenciária de Cold Mountain, e responsável pela execução de prisioneiros na cadeira elétrica. Aqui ele tem que lidar com prisioneiros, colega de trabalho incompetente que só está lá por contatos políticos, e ainda com suas próprias lutas pessoais.

É nesse context que ele conhece John Coffey, um homem negro condenado à cadeira elétrica por um crime terrível. Mas quanto mais tempo ele passa com Coffey e quanto mais coisas acontecem, mais ele questiona a si mesmo, no que acredita e defende. 

Confesso que o ritmo do livro me desanimou no começo. Não é que a história se passe num andamento lento, mas é que toda hora King narra dizendo "Olha e você nem imagina o que aconteceu depois" ou então "Eu achava que aquilo era o pior, mas depois foi pior ainda". E fica toda hora nisso de empurrando o leitor pra frente, sem de fato dar alguma boa sustância no meio tempo. 

E aqui eu posso dizer que King é um safado mesmo. Ele enrola, enrola, enrola, até chegar na página 400 pra revelar tudo e aí PAM! Somos fisgados de um jeito terrível. Não queremos continuar, mas já não temos escolha. Me peguei lívido de horror com uma cena e ainda mais horrorizado em perceber que não conseguia parar de ler. 
A man's mouth gets him in more trouble than his peckers ever could, most of the time (p. 23-24)
Enfim, não me surpreende que este livo tenha sido tão bem aclamado pela crítica, muito menos que tenha se transformado em filme. É realmente muito bom. No fim da história, o pilantra faz com que a gente sinta que "valeu a pena" ter esperado e passado por tudo. Eu gosto muito disso em King: ele resolve as coisas, não deixa pontas soltas de mais. Dá uma satisfação em terminar qualquer obra dele.

No fim das contas, não sei dizer se esse livro fica na minha estante ou não. O começo é muito lento e o final talvez seja intenso demais pra mim. Estranho pensar que um autor de livros de terror se deu muito bem aqui com um livro de drama. E ainda me fez chorar. O safado.  

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Resenha — Ultima: The Technocrat War I — Machinations

ANDREWS, Austen. Ultima: The Technocrat War, Book I of III, Machinations. New York: Pocket Books, 2001.


Comprei o livro deveras desconfiado, porque não é sempre que gosto de me aventurar em séries e tenho muito pé atrás com livros que já de cara se propõe a ser uma trilogia. Febres de trilogia, especialmente entre autores desconhecidos, é uma desgraça. Ainda bem que, pelo menos nesse caso, eu estava errado.

No primeiro livro desta série, somos apresentados a um mundo clássico da fantasia. Temos cavaleiros, uma raça humanóide com traços bárbaros, homens-felinos, e humanos. Temos reinos em guerra ou em tentativas de diplomacia; tramas políticas, espiões, artefatos, vilões, mocinhos que não sabemos se são vilões ou não, e, como não podia faltar, magia.

Acompanhamos a história do cavaleiro Sir Gabriel Montenegro, e sua jornada em busca da Virtude e do reestabelecimento do seu título de comandante. Paralelo e concorrente a isso, temos a guerra entre reinos, espiões enviados em missões secretas para sabotar uma tentativa de diplomacia, e personagens que têm segundas intenções com suas atitudes e palavras.

O autor segue a cartilha dos livros de fantasia, com ricas descrições de cenários e personagens. Pra mim até rica demais em alguns momentos, beirando o clichê; mas entendo que isso é parte das regras do jogo da fantasia e provavelmente algo que o público alvo espera de uma obra desse gênero

O enredo do livro foi uma boa surpresa. É uma história sólida, que carrega a gente até o fim, com boas reviravoltas. As cenas são interessantes e bem trabalhadas, mas em algumas ocasiões me pareceu que as arestas delas ficaram muito rudes, poderia ter polido mais algumas transições.

Na verdade, pra mim esse foi o único ponto negativo do livro. É que deveras em mais de uma ocasião as cenas transitam entre fatos de maneira tão desconexa que fica evidente que é forçada do enredo pra fazer a história progredir numa determinada direção. Me parece que o autor queria forçar a conexão entre dois pontos e não se deu ao trabalho de construir uma boa ligação entre eles.

Ao mesmo tempo em que admiro a capacidade do autor em tecer uma teia com várias tramas ao mesmo tempo, me pergunto se ele não exagerou em alguns momentos. Tenho a impressão de que quando estamos investidos em uma linha narrativa, ele coloca outra no caminho e isso mais atrapalha do que ajuda. Todavia, novamente, isso é bem clássico do gênero, então pode ser que a maior parte do público-alvo não se incomode com isso.
"'I ask for nothing,' said Montenegro. 'Rather the Virtues ask something of me. Let us serve Valor and Sacrifice. They are the footsteps of a warrior.'"
O livro é honesto com a gente. O autor diz desde o começo que é parte de uma trilogia, mas não corta a história bem no meio de uma grande revelação. Na verdade, ele prepara bem o terreno pra nos incentivar a continuar a leitura. Senti que houve mesmo honestidade intelectual com o leitor.

Eu teria algo a falar sobre o sistema de magia do livro, mas talvez isso seja algo a ser dito em outra resenha, quando tiver conhecido mais sobre a obra. Por enquanto, talvez basta dizer que estamos diante de um sistema de magia soft e que tenho a impressão de que a magia vai fazer ainda mais diferença nos próximos capítulos da trama.

Acho que só vou conseguir comprar os próximos exemplares em Janeiro/2025. Não obstante, não vou esquecer dessa série. Acho que tive a boa sorte de encontrar algo bom pra ler. 

sábado, 22 de junho de 2024

Resenha — Hidden child of the Holocaust

CRETZMEYER, Stacy. Hidden child of the Holocaust. New York: Scholastic, 2004.


Outro livro que comprei por apenas 1 dólar. Meu Deus, um único dólar que me trouxe tanta tanta coisa... A gente não tem escolha senão aprender a colocar coisas em perspectivas depois que lê livros como esses. Vamos ao livro.

A obra traz a história real de judia Ruth Kapp, quando esta tinha apenas entre 5 e 6 anos, vivendo na França ocupada pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra. A narrativa é em primeira pessoa e Stacy Cretzmeyer fez um trabalho sensacional em narrar os acontecimentos do ponto de vista de uma criança. Meu Deus, ela era só uma criança.

Acompanhamos Ruth, agora chamada Renée, fugindo com seus pais para o sul da França, onde foram auxiliados por membros da "Resistance", um grupo formado por não-judeus que arriscaram suas vidas para ajudar este grupo que foi injustamente perseguido. 

Segundo a própria Ruth Kapp, este foi o grande motivo que a incentivou a reviver memórias tão horríveis e registrá-las: para que o mundo conhecesse a história desses heróis anônimos aos quais ela deve sua vida

De todos os acontecimentos que o livro traz, acho que o que mais me impactou foi a própria atmosfera de distopia que a Segunda Guerra traz. Não poder sair na rua, ter medo de falar alguma palavra errada, não saber se seu vizinho ou mesmo familiar é amigo ou inimigo, ter que subornar pessoas para conseguir se manter vivo, sobreviver a torturas, passar por mortes horríveis só por ser judeu...

É inacreditável que na história da humanidade uma perseguição tão cega e cruel tenha acontecido, é quase como se não fosse possível, como se não fizesse sentido... e ainda assim aconteceu. 

Esta é uma resenha bem curta porque não tem como eu passar aqui o que o livro traz, simplesmente não tem. É preciso lê-lo. Minha maior tristeza no momento foi descobrir que este livro não foi traduzido para português e muita gente no Brasil talvez nunca chegue a ter conhecimento da vida de Ruth Kapp, uma das muitas crianças escondidas do Holocausto.

sábado, 15 de junho de 2024

Resenha — Incidente em Antares

VERÍSSIMO, Érico. Incidente em Antares. São Paulo: Globo, 1997.


É chocante como um livro permanece o mesmo, mas a gente muda tanto. Devo ter lido Incidente em Antares a primeira vez na adolescência e lembro de ter gostado. Hoje, na vida adulta, ainda gosto muito do livro, mas de uma maneira muito mais profunda.
Há conversa fiada em torno de tudo. Até (e principalmente) de Deus. (p. 144)
Em termos de qualidade literária, neste livro temos Veríssimo mais mordaz que nunca, as ironias não param. Ainda que O tempo e o vento seja considerado o magnus opum de Veríssimo, talvez seja em Incidente em Antares que o autor esteja no ápice da sua capacidade descritiva-narrativa. Consegue construir capítulos inteiros sem nenhum diálogo e ainda assim não temos escolha senão ficar com os olhos grudados porque é simplesmente interessante demais.

Haveria vários, vários momentos no livro que eu poderia transcrever aqui pra mostrar a capacidade descritiva de Érico Veríssimo, mas opto por só duas palavras. Em determinado momento, Veríssimo descreve que o personagem tem uma "voz atenorada". Que maneira elegante de dizer que alguém tem voz de tenor e, por consequência, que o timbre de sua voz é mais agudo. Tá loco, Érico Veríssimo é um exagero de bom.

Em termos de estrutura, no lugar de longos capítulos com várias cenas, Érico Veríssimo opta por fazer vários capítulos de uma única cena. Fico em cima do muro quanto a essa decisão. Se por um lado torna o texto mais dinâmico, por outro o cara é tão bom em fazer cenas que posso facilmente fechar o livro depois de um capítulo sem que pareça que estou interrompendo o ritmo da leitura. Em outras palavras, a decisão do autor ajuda o ritmo e atrapalha o ritmo. Por outro lado, quantas vezes se consegue escrever um livro com exatos 100 capítulos?

Érico Veríssimo destrói todas as máximas da escrita criativa. Tchekhov ficaria decepcionado em ver um capítulo inteiro que não contribui diretamente para a trama, um capítulo que meramente mostra a cena de uma empregada doméstica. Deveras a cena seria totalmente descartável para a trama; mas, meu Deus, que bom que ela está ali. É genial. Os críticos literários que critiquem, eu amo o fato de está cena estar aqui. Traz uma humanidade ao livro que é difícil de explicar.

Além disso, achei muito interessante como depois que o "incidente" acontece, Érico muda o protagonista da história de tal forma que aquele que antes era o herói pelo qual nós acompanhamos o desenrolar dos fatos agora se torna o vilão, de repente o personagem que nos fazia dar pequenos sorrisos com suas aventuras agora se torna alguém que rapidamente identificamos como decaído.

Ainda no quesito estrutura, a primeira parte do livro poderia ser facilmente lida como um ensaio sobre o que é o Brasil. Se em "Um lugar ao sol" eu argumento que Érico Veríssimo descreveu com maestria o espírito da vida; aqui ele fez o mesmo com a alma do Brasil.
— O P Gerôncio me disse que a Matriz está precisando duns consertos e duma pinturinha.
— O Brasil também, Tibé, o Brasil também. (p. 57)
O grande tema do livro não é outro senão o Brasil e suas incongruências. Nesse livro Veríssimo descreve com força o que é a política partidária brasileira desde a sua origem: confusão e discursos pra inglês ver. Como sempre, brilhante descrição do que é o Brasil verdadeiro.

Além disso, ler a história do Brasil sob a narrativa de Érico Veríssimo talvez tenha sido o que me fez gostar tanto de ficção histórica. Li uns 5 capítulos seguidos em que tudo era só narrativa de Getúlio Vargas e seu fim. Pura história do Brasil e eu vidrado em tudo, incapaz de parar de ler.

Veríssimo escreveu o livro em 1971, quando o regime militar ainda estava em vigor (ainda que numa descrescente, deveras), e hoje, já mais maduro, percebo como foi um ato de coragem. O livro não tem pena nenhuma em comentar sua história recente, sobre 1964, sobre atos institucionais... Rapaz, o bicho foi corajoso mesmo.

Aliás, em Incidente em Antares Veríssimo põe pra fora tudo que estava na ponta da língua há anos. Depois que a torrente começa, ele não tem escolha senão deixar ela inundar tudo. O posicionamento do autor perante a realidade da sociedade em que vive é muito clara.
Não, não voltes mais, Tibé. O fim de um homem não é nenhum espetáculo bonito. (p. 106)
[...] se por um lado o homem jamais se habitua à ideia da própria morte, por outro aceita sempre, e com admirável facilidade, a morte alheia. (p. 341)
Como pode um ser humano ser capaz de explicar tão habilmente a vida do brasileiro, quem sabe até mesmo o tão eludido conceito de "brasilidade"? Ele não fala da brasilidade como perspectiva externa, mas a verdadeira brasilidade que está no âmago do que chamamos de Brasil; aquele segredo de família que todo mundo sabe mas ninguém fala e quando chega alguém de fora fazemos de tudo para que não vejam ou descubram.

Enfim, o livro é um admirável conjunto de sátira, ironia, drama, e (veja só) até humor. Em vários momentos gargalhei de rir. No futuro, esse livro ainda me trará novas reflexões. É fácil pra mim ver que ainda haverá um futuro que vou reler isso aqui e ver as coisas sob outra perspectiva, trazendo ainda mais sabor pra história. Sei disso, porque já está acontecendo agora. Mal posso esperar pela próxima vez.
— Você também por aqui?
— Pois é. Coisas da vida. Depois eu explico. Me ajude a abrir os outros quatro caixões. (p. 234)

domingo, 2 de junho de 2024

Crônicas do cotidiano — XV


Veja só, algumas pessoas vão afirmar (e acertadamente, eu imagino) que dentre as tantas opções de lugares nos Estados Unidos, Chicago não é uma cidade boa para se morar. Como disse, elas provavelmente estão certas... mas eu gostei tanto de lá.

É que Chicago é uma cidade americana, não há dúvidas: ela é organizada, limpa até, bem histórica no contexto americano, com todas as lojas, culturas, pessoas tipicamente americanas. Por outro lado, ela é meio zoada. As pessoas que a gente encontra na rua são das mais variadas. O trânsito é meio doido, em alguns pontos ela é mal-cuidada, meio suja. E nisso ela me lembra o Brasil.

Falei isso pro meu amigo George e ele ficou pistola, que Brasil não pode ser sinônimo de desorganização. Mas ele já morou fora e sabe que é verdade, só se recusa a concordar. E fiquei pensativo se o que me lembrou o Brasil foi mesmo a desorganização. Cheguei à conclusão de que não era isso.

Acho que não é a bagunça. Por que viver nos EUA é tão chato? Porque a vida parece artificial. A vida não é limpa e organizada, toda cheia de estrutura, pelo menos não sempre (ou quase nunca). Uma cidade que é sempre "perfeita" não parece humana. Acho que foi isso que me conquistou em Chicago: ela me parece mais humana.


E aí veja você o contraste que faço dela com Minneapolis (na foto acima). Minneapolis é uma cidade "perfeita". Até o mato das esquinas é podado na régua. As árvores todas plantadas com espaçamento perfeito, não se vê um fio de poste nas ruas. Tudo é limpo, organizado. Mas eu nunca vi tanta contradição numa cidade americana como em Minneapolis.

Peguei o metrô e um ônibus ontem pra passear. O tanto de cracudo que eu encontrei tanto no metrô quanto nos ônibus fez eu me sentir inseguro. As pessoas falando alto, rudes, sem nenhuma empatia ou consideração pelos outros. O grama nos canteiros era verdinha, mas o cheiro dentro do ônibus me fez lembrar outro país que não os EUA. 

E fiquei pensando que talvez Minneapolis seja ainda mais humana que Chicago, que ali estão realidades que demonstram mais quem é uma boa parcela dos americanos. Mas enquanto Chicago não quer (ou, mais provavelmente, não consegue) esconder isso, Minneapolis faz um esforço colossal e mascara, maquia, toda uma realidade que é palpável. 

Chega a ser ridículo. Uma parada de ônibus com um letreiro luminoso, indicando quantos minutos faltam para o próximo ônibus. E logo abaixo dela um homem fumando, carregando um saco de tecido com, o que presumo, tratava-se da totalidade de seus bens.

Às vezes, creio que prefiro estar num lugar onde os problemas são visíveis e escrachados do que num lugar onde as pessoas fingem que está tudo bem. No primeiro, talvez ainda haja quem queira olhar para os problemas e resolvê-los, enquanto no segundo muitos vão só fazer vista grossa e olhar para a grama cortada na régua.

sábado, 11 de maio de 2024

Resenha — O segredo do best-seller

ARCHER, Jodie; JOCKERS, Matthew L. O segredo do best-seller. Bauru: Alto Astral, 2017.


Comprei o livro já pensando que seria ruim. Afinal, não tem como um título desse estar certo, né? Mas devo confessar que o livro foi surpreendentemente útil. É que os autores não estão querendo vender uma ideia, eles estão só apresentando resultados de uma pesquisa de doutorado.

Os autores criaram um modelo compuacional para analisar os best-sellers da lista do The New York Times e, a partir da análise, tirar conclusões e tentar responder à pergunta: "O que faz de um best-seller... um best-seller?"

Como esse livro é praticamente acadêmico, não vou fazer uma resenha completa, mas vou destacar aqui os tópicos que achei essenciais:

#Cap. 1
  • O best-seller não é escolhido pela crítica, mas pelo público. Sucesso de vendas.
  • O sucesso não é aleatório, há um conjunto de características que os tornam best-sellers
#Cap. 2 – Tópico
  • Não há um tópico de sucesso maior, o que há é maior foco
    • Todos os best-sellers tem um único tópico componto 30% do livro
    • Os outros 70% ficam divididos entre outros 2 ou no máximo 3 tópicos
      • Esses outros tópicos necessariamente dialogam com o primeiro e o reforçam
      • Escritores não-best-sellers colocam 6 tópicos ou mais nos seus livros
  • Análise dos autores
    • Tópicos mais presentes em best-sellers: casamento, morte, impostos, tecnologia, enterros, armas, médicos, trabalho, escolas, presidentes, jornais, crianças, mães, imprensa. Mercado financeiro, laboratório, espiritualidade (mas não igreja), faculdades, cachorro. Pessoas reais.
    • Tópicos que quase nunca se tornam best-sellers: sexo, drogas, descrições de corpo que não seja em contexto de dor ou crime, cigarros, álcool, deuses, emoções exageradas, revoluções, negociatas, viagens existenciais/filosóficas, jogos de cartas, danças, jantares.
    • O local preferido é a cidade, de preferência casas comuns.
      • Lugares que não emplacam: deserto, mar, floresta, rancho
#Cap. 3 – Trama
  • Os best-sellers tem reviravoltas constantes e um ritmo acelerado de trama
    • Na minha contagem, os best-sellers tem pelo menos 8-9 grandes reviravoltas
    • E todas elas com espaçamento mais ou menos igual
  • As tramas seguem o básico de preparação, confronto, resolução
  • 7 linhas narrativas principais, cada uma com um gráfico que aponta o tipo de história
  • As tramas sempre se relacionam com o leitor fisicamente ou emocionalmente
    • Não apenas intelectualmente
    • Muitos críticos dizem que best-sellers não são bons porque estão acostumados a uma experiência intelectual com livros, não emocional ou física
#Cap. 4 – Estilo
  • Estilo é o DNA do escritor (não tem como mudar, individualidade do autor)
    • Se traduz em hábitos (uso de expressões, substantivos, pronomes, etc.)
  • Característica do estilos estilos mais presentes em best-sellers
    • MAIS IMPORTANTE é o uso da "linguagem diária do homem comum"
    • A voz do narrador sempre parece de uma pessoa real
    • Uso de contrações é bem forte (n't ou -d)
    • Pontos de interrogação são bem mais preferíveis a pontos de exclamação
    • Reticências são bem-vindas
    • Frases curtas, sem palavras desnecessárias
  • Estilo que permita a compreensão do público
#Cap. 5 – Personagens
  • Bons personagens são ativos, sempre estão fazendo alguma coisa
    • É isso que leva a trama pra frente e faz a gente se envolver com eles
    • Personagens estão ligados a verbos (especialmente os que tenham a ver com estados mentais ou emocionais
      • "Precisar" e "querer" são os dois principais
      • "Sentir", "amar", "fazer", "pensar", "perguntar", "olhar", "segurar", "contar", "gostar", "ver", "saber", "começar", "trabalhar", entre outros
    • Por contraste, personagens ruins são muito passivos
      • Geralmente acompanhados de verbos como "parar", "largar", "parecer", "esperar", "interromper", "hesitar", "murmurar", "protestar", "perder", entre outros
#Conclusão

O livro é sensacional por sua abordagem. Foram mais de 2500 livros analisados, compreendendo os últimos 30 anos da lista de best-sellers do The New York Times. No fim do livro, os autores explicam com mais detalhes qual foi a metodologia de pesquisa deles e não temos escolha senão ficarmos admirados com o trabalho que isso deve ter dado.

Vou deixar o livro na estante, porque no futuro quero consultar de novo essa lista de verbos e substantivos. Não garanto que um dia terei um best-seller, mas não vejo motivo pra não me esforçar em consegui-lo. 

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Resenha — Vidas secas

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Jandira: Principis, 2024.


Sei nem por onde começar. É que tenho algumas opiniões bem formadas sobre a obra e ainda não entendi como organizar os pensamentos direitos. Vamos ver o que sai.

Vidas secas é um marco da literatura brasileira e quando o vi por R$10 eu sabia que deveria comprar. Ainda não tinha lido Graciliano Ramos e precisava desse nome no meu currículo de leitor. Eu queria realmente aprender um pouco mais e conhecer melhor o cara.

Neste livro, estamos diante de uma obra em que fica bem evidente o espírito modernista. O livro é facilmente comparado a Macunaíma de Mário de Andrade. Não só o uso de regionalismos ou termos próprios a uma etnia, mas especialmente a narrativa não-linear e cheia de rododendros que parece refletir a mente do personagem e das situações que ele enfrenta. 

Até as repetições por parte dos personagens, o jeito que eles se comportam refletindo de modo muito forte a caboquice, o jeito bruto e até mesmo obtuso do estereótipo sertanejo, está tudo aqui. 

Assim, eu compreendo as escolhas do autor, o estilo... mas não gosto. Já vou dar o teor da minha resenha logo de cara aqui: Vidas secas é um excelente livro para estudo da literatura, mas não para se divertir com a literatura. Pra mim ele está muito próximo de A moreninha neste sentido.

O livro tem um quê de romance, mas a organização da história e a divisão me faz pensar que este livro está mais próximo de uma antologia de contos. Embora no primeiro capítulo tenhamos de fato uma apresentação da temática e dos personagens (coisa que vemos repetida no último), no meio o que temos de fato é uma coletânea de causos e estudos de personagem.

(Aliás, que primeiro capítulo! Nosso coração vai lá em baixo e sobe de novo. Graciliano realmente nos conquista, nós torcemos para o Fabiano, para sinha Vitória, pela Baleia... ficamos com medo da seca, torcemos pela sobrevivência dos nossos heróis... talvez o erro de Graciliano foi ter gastado muita munição nessa abertura, e o resto sofre um pouco em comparação).
Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Faziam-se carrancudo e evitava conversas. [...] Todos lhe davam prejuízo." (p. 58)
Certamente estamos diante de uma obra realista, não há dúvidas. Aqui o autor faz questão de mostrar o sertão nordestino tal como ele é. Com direito a sertanejos fugindo da seca e urubus rondando eles nos céus, só esperando eles definharem e morrerem. 

Agora, falando de personagens, de longe e sem medo de errar, a personagem mais interessante é a cachorra Baleia, porque ela simplesmente vive. Nós conhecemos as suas vontades, os seus desejos, e até nos identificamos com eles. Ela é simples. É uma personagem na qual o autor não sente a necessidade de incluir algum regionalismo ponto ela foge da premissa de usar nomes ou expressões regionais que tornam a narrativa cheia de lombadas.

Isso é um problema que vejo nos capítulos que funcionam como estudo de personagem. A necessidade da regionalização sem apresentação dela ao leitor, torna o texto desnecessariamente truncado. Me parece que o objetivo do autor não é deveras envolver o leitor, senão fazer uso de uma terminologia pouco explorada na literatura e dizer "Olha como seu diferentão". O que, se pararmos pra pensar, é bem o espírito do modernismo mesmo.

Some-se a isso que o livro quase não tem diálogos, isso torna a narrativa pesada. Não temos a oportunidade de desvendar os personagens por nós mesmos. Quando muito, conhecemos sua psiquê, mas sempre de fora. Além disso, somos sempre apresentados a uma sucessão de narrativas e descrições que englobam cenas e diálogos inteiros que poderiam ter sido explorados para dar lugar aos próprios personagens. 
Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. (p. 70)
Sei que deveria elogiar o livro por ser um marco da literatura brasileira. Mas a verdade é que ele é só muito chato. E não creio que a premissa do livro fosse ser legal mesmo, acho que ele foi feito para ser um estudo de literatura. Não nego a originalidade disso, mas pra mim o real valor está na exploração acadêmica do assunto, não no conteúdo em si.
(embora o capítulo sobre a cachorra Baleia me faça reconsiderar essa posição — não sei, quem sabe no futuro reconsidere tudo).

Enfim, concluo dizendo que está no meu currículo de leitor, mas não ficará na minha estante.