terça-feira, 31 de dezembro de 2024

2024: o resumo da ópera

E aqui estamos nós de novo. Acabou-se o ano. É a época de rever o que fizemos e ficar triste em ver que não cumprimos quase nada das metas que estabelecemos para nós mesmos. Pra minha sorte, não tive meta nenhuma e ainda assim consegui dobrar a meta de decepção. Vamos ao resumo da ópera.



1. Livros resenhados

Não tive um bom ano literário e, por isso, as leituras sofreram. Conquanto tenham sido melhores que ano passado, não dá pra dizer que menos de dois livros por mês é algo do qual se orgulhar — muito embora a pesquisa oficial sobre leitura no Brasil desse ano tenha mostrado que menos de 50% dos brasileiros sequer folheiam um livro durante o ano todo.
Nesse ano é muito fácil escolher o melhor: La catedral del mar, disparado. Uma ficção histórica de fazer inveja. É o livro que eu sempre quis ler e não sabia. Absurdamente visceral e realista, contando a história de um rapaz que nasce e cresce em Barcelona no contexto da Inquisição espanhola e o período medieval. Até agora ainda consigo lembrar de cenas do livro que me dão arrepios de tão boas.

Por outro lado, também ganha em disparada a pior leitura: Ready Player Two. O autor conseguiu destruir tudo que construiu com o primeiro livro, apenas com o intento de lucrar. É o retrato da nossa época, creio.

Pensando na quantidade de livros, houve uma ligeira recuperação em relação ao ano anterior, mas ainda muito aquém do histórico. O que aconteceu com aquele Gabriel? Será que as prioridades mudaram tanto? Será que simplesmente não encontrei tantos livros bons? Não sei.
2018: 27 livros
2019: 37 livros
2020: 40 livros
2021: 21 livros
2022: 35 livros
2023: 20 livros
2024: 23 livros
 
2. Concursos literários e produções

Este tópico está intimamente ligado com a nova seção que criei abaixo. Por enquanto, basta dizer que estou explorando novos horizontes. 

Acho que aqui oficialmente começa a ladainha da tristeza e do porquê meu ano literário foi tão ruim. Na verdade, os concursos são apenas reflexo do desânimo, não o contrário. Este foi oficialmente meu pior ano (disparado!) em textos aprovados para concursos/revistas literárias. Mas tem o pulo do gato: neste ano não submeti nenhum texto para concursos ou revistas literárias no Brasil.


Minha teoria é que lá fora a competição é muito maior e, do meu ponto de vista, a exigência também. Já percebi no Brasil que tem alguns lugares que se eu mandar texto, quase certeza de que ele será aprovado. O problema é que vai o meu e vários outros que, do meu humilde ponto de vista, não têm qualidade nenhuma. Eu simplesmente queimo um texto para nada. E nada mesmo, porque essas publicações são, em regra, vazias. Lá fora, a história é outra.

Também tem o fato de que não escrevi textos direcionados. No Brasil, via de regra eu olho o edital ou a revista literária e escrevo um texto que se encaixa na proposta deles. Não fiz isso para os EUA. Pela tabela é possível ver que foram praticamente os mesmos textos enviados para revistas diferentes. É bem possível que isso tenha contribuído. Ou é simplesmente a conclusão mais simples: meus textos são uma bosta.
2018: 18 textos enviados, 4 aprovados → 22% de aproveitamento
2019: 17 textos enviados, 4 aprovados → 23% de aproveitamento
2020: 18 textos enviados, 6 aprovados → 33% de aproveitamento
2021: 35 textos enviados, 6 aprovados → 17% de aproveitamento
2022: 46 textos enviados, 7 aprovados → 15% de aproveitamento
2023: 10 textos enviados, 4 aprovados → 40% de aproveitamento
2024: 25 textos enviados, 1 aprovado → 4% de aproveitamento
Sei que os números são apenas números (tenho dito isso em todos esses anos). Mas ainda são a métrica que temos, que posso fazer? Nos resta então o seguinte gráfico:



3. "Carreira" literária

Talvez essa aqui seja a parte mais interessante dessa retrospectiva. Tudo que falei acima está intimamente ligado com o que vou falar agora. 2024 foi um ano bem triste para a minha literatura, em especial para meus livros. 

Desde 2019/2020, tenho publicado quase um livro por ano.
  • Personagens não bíblicos e suas histórias (2019) foi meu "debut" e teve uma excelente abertura. Não foi a abertura que a editora esperava, mas dentro das minhas proximidades, saiu muito bem.
  • Meu segundo livro foi É a vida: microcontos de risadas, amor e morte (2021). Esse saiu chorando, mas atribuí isso à pandemia. 
  • Quando chegou meu terceiro livro, Outros personagens não bíblicos e suas histórias (2022), eu esperava uma recepção parecida com o primeiro. Mas foi um tremendo fiasco. Enquanto o primeiro vendeu 600 exemplares tranquilo (só parou por causa da pandemia), esse outro não vendeu nem 300. 
  • Não satisfeito com as derrotas, lancei o Pois é e outros microcontos (2023), na esperança de que os microcontos me dessem alguma abertura em escolas para que eu pudesse fazer oficinas (coisa que o É a vida fez muito bem). Esse também não saiu quase nada.
Esse ano todos os meus livros ficaram encalhados. Resolvi colocá-los na Amazon. Teve trimestre (trimestre!) que meu total de vendas foi de R$0,10 (sim, dez centavos). Comecei a ficar com angústia de ver tantas caixas de livros encalhados no quarto, era um atestado da morte da minha literatura. 

Distribuí sugestões de oficina em escolas. Fiz toda uma formalidade, apresentei um programa por escrito, sugestão de contrapartida, cronograma, tudo. Algumas escolas nem me receberam. Outras disseram que iriam me chamar para seus festivais literários ou para dar a oficina em outro momento. Nenhuma entrou em contato de novo. 

Ano passado escrevi meu primeiro romance, Coisas da vida, que foi contemplado no Concurso “IV Literatura de Circunstâncias” da UFRR, mas que ficou só nisso mesmo e nunca foi publicado. Quando entrei em contato com a editora para ver se havia alguma atualização, se limitaram a dizer que estava previsto no edital que o livro só seria publicado se houvesse possibilidade. E é isso.

Tentei então submeter o livro como projeto no edital da Lei Paulo Gustavo, lançado pela Secretaria de Cultura de RR. Fiz todo o projeto, seria o único romance roraimense que se passa totalmente na cidade de Boa Vista, é uma história que fala da realidade local, no meu projeto coloquei como sugestão a doação de 500 exemplares para escolas de todo o Estado, no cronograma e orçamento coloquei valores condizentes com a realidade do país, pensei em como baratear custos... fiz tudo o que podia. Quando saiu o resultado, meu projeto ficou em último lugar. Ali eu entendi que, de fato, era o fim.
 
Nos meses que se seguiram, doei todo o meu estoque. Tudo. Alguns lugares ainda se solidarizaram comigo e compraram alguns exemplares a preço de custo. Vários outros nunca recebi nem um obrigado, só receberam a doação mesmo e ficou por isso. Quando doei o último exemplar, senti que eram os últimos pregos do caixão. Estava morto, podem elogiá-lo à vontade.

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Pra ser justo, houve dois respiros de literatura esse ano, e os dois graças ao SESC. Fui convidado para palestrar na Semana Literária (é a foto que está acima) e também fui dar oficina no interior de Roraima, em São João da Baliza. Esses momentos foram bem únicos. 

De modo geral, passei (passo?) por um momento bem triste, pensando em desistir mesmo da literatura e talvez voltar para as composições musicais ou até mesmo explorar uma outra arte. Porém ainda surgiu uma luz no fim do túnel: escrever em outro idioma. Foi aí que resolvi enviar textos para o exterior. 

Apesar de apenas 1 ter sido selecionado, encaro isso com bons olhos. Tem escritores nativos do inglês que passam uma vida para conseguirem ser publicados. Eu consegui isso em 2023 e 2024. E olha que o conto de 2023 foi comédia (considerado um dos gêneros mais difíceis de escrever em inglês). Tudo isso me mostrou que talvez haja uma solução.

Esse ano, então, comecei a pensar num romance para escrever diretamente em inglês e publicar no exterior. Estou oficialmente migrando minha literatura para fora. Não pretendo escrever outros textos em português, e nem investir mais na literatura no Brasil de modo geral. Já terminei o plot do meu próximo romance e devo começar a escrevê-lo em meados de Janeiro/2025 pra tentar a sorte por lá. Não sei se vai dar certo, mas sinto que as circunstâncias me empurraram para esse caminho. Quem sabe este não é o futuro?


#O resumo da ópera
  • Livros lidos: 23
  • Textos escritos: provavelmente nenhum, embora tenha feito umas 3-4 traduções de textos meus. Por outro lado comecei a plotar 3 livros esse ano e um deles vingou, tenho a estrutura dele completinha já.
  • Textos enviados pra concursos literários: 25
  • Textos aprovados: 1
Em 2023 escrevi meu primeiro romance aos trancos, dessa vez fiz com mais técnica, espero que ele saia com mais qualidade. Vamos ver. Pretendo usar meus contatos para me ajudar com a publicação no exterior e talvez até com publicidade — mas vamos ver.

No momento, o único plano é tentar escrever um bom livro. É isso. O que vai ser dele eu não sei. Mas, pelo menos, Deus, me ajuda a contar uma boa história. De tudo que perdi, é disso que sinto mais falta.

Mas vamos ver. 
Amanhã é 2025 e eu não sei o que esperar dele. Alguém sabe?

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Resenha — The Complete Poetical Works of Edgar Allan Poe

INGRAM, John H (ed.). The Complete Poetical Works of Edgar Allan Poe. New York: A. L. Burt Company, 1875. Digital Kindle Edition (2011).


Então, né. Acabou que voltei. É que fiquei tão animado com meu novo Kindle que resolvi pegar alguma coisa de graça na Amazon, só pra estrear ele mesmo. Acabou que encontrei essa coletânea com as obras de Poe e resolvi dar uma chance. Não costumo resenhar livros de poesia, mas depois que terminei de ler percebi que precisava registrar algo sobre ele.

Eu já havia lido Poe há algum tempo. Na verdade, eu havia lido apenas O corvo e não tinha curtido muito. Penso que é porque eu achava que se tratava de uma narrativa em prosa, não de um poema com algum fundo mórbido. Aliás, pensei que seria algo de terror, e não senti medo nenhum lendo o conto. Acontece que eram apenas minhas expectativas que estavam erradas. Poe é sim muito bom.

Nesta obra temos vários de seus poemas e não dá pra negar que ele é um mestre da palavra. O corvo em si é fantástico, muito bom. Relendo agora com outros olhos, realmente entendi que poesia é sinônimo de ritmo. Além disso, achei genial como Poe não tinha medo de repetição de palavras quando elas serviam para fortalecer a ideia do ritmo. Além disso, ao contrário do que me pareceu no começo não é um poeta limitado a um único tema. 
A DREAM WITHIN A DREAM.

Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow—
You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand—
How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep—while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?
Por um lado, enquanto foi possível explorar outras áreas de Poe que eu não conhecia, também não posso dizer que tudo que ele produziu são flores. Uma crítica que ouso fazer é que é uma poesia, acho, exageradamente intelectualizada. Soa como Machado, citando frases em outros idiomas como se o leitor tivesse obrigação de saber do que se trata (claro que no contexto o francês era a língua franca do mundo). 

Além disso, temos as constantes referências a Grécia clássica. Mano, não consigo entender que fascinio é esse que pro cara ser intelectual ele tem que citar ou estar familiarizado com personagens da Grécia antiga. Honestamente me soa como intelectualismo de fachada.

Outra coisa é que achei muito mais interessantes os seus poemas do que os monólogos de filosofia e teologia (não deve ser à toa que ele é conhecido pelos seus poemas e não outros textos). Não obstante, nota-se que ele era um ávido leitor de poesia. Inclusive elogiando outros poetas.

Por outro lado, os comentários dele sobre poesia e escrita são MUITO interessantes. No ensaio The Poetic Principle ele ensina o que entende por "princípio poético" e como isso guia sua própria forma de escrita — absurdamente genial, cheio de insights muito bons. 

No outro, The Philosophy of Composition, Poe praticamente dá uma aula de como escrever. Ele usa seu próprio poema O corvo e explica como ele fez para escrevê-lo. Nossa, o tanto que dá pra gente aprender sobre poesia com esses dois textos... já li livros inteiros que não ensinaram tão bem como ele.

Enfim, como qualquer outro escritor, há textos e textos. Além de O corvo e Dream within a dream, que citei aqui, houve outros poemas que li mais de uma vez, absorvendo as nuances e a profundidade do autor. Honestamente não esperava gostar tanto de Poe, mas a verdade é que o homem cativou. Permanece na estante, o safado.

(Agora sim, acho que esse foi o último de 2024)

sábado, 21 de dezembro de 2024

Resenha — A vida secreta dos grandes autores

SCHNAKENBERG, Robert. A vida secreta dos grandes autores: o que os professores nunca contaram sobre os famosos romancistas, poetas e dramaturgos. São Paulo: Ediouro, 2008.


Eis o que parece ser a minha última leitura de 2024. Um livro que comprei num sebo em Brasília, só pra ter alguma coisa fácil pra ler na viagem de volta. Sem muito o que dizer, vamos à resenha.

Trata-se de um livro de curiosidades, não tem outra coisa. Aqui vemos causos e detalhes sobre a vida de Shakespeare, Byron, Edgar Allan Poe, Charles Dickens, Tolstói, Conan Doyle, Tolkien, Hemingway e vários outros.

O livro em si é interessante, mas, por incrível que pareça, a leitura cansa. Primeiro porque não há uma narrativa que una todos os capítulos, são apenas fascículos independentes cheios de curiosidades sobre grandes personalidades.

Soma-se a isso também o problema de que... bem, perdoe a franqueza e a ignorância... eu sequer conhecia todos os autores listados. Perdão por não lembrar quem era Louisa May Alcott (embora eu soubesse sim do seu livro Mulherzinhas) ou William Faulkner. Honestamente, nem sei porque peço desculpas, não sabia que era obrigado a conhecer todos. 

De qualquer forma, o livro é interessante. Sabia que o "corvo" do famoso poema de Poe era um corvo real cujo dono era Dickens? Sabia que Mark Twain era amigo de Nikola Tesla e chegou até a patentear algumas invenções? Sabia que após a fama Conan Doyle não suportava mais Sherlock Holmes e decidius matá-lo, mas os fãs foram pra frente da casa dele protestar? 

É para isso que o livro serve, para que a gente possa conhecer um pouco mais sobre os autores mas, principalmente, para que a gente possa mostrar nossa sapiência com esses fatos interessantes nas rodas dos amigos que, assim como nós, fingem que leram todos esses autores. 

Bom, mas acho que valeu a leitura, já que a finalidade era ser simples e ter algum entretenimento. Gostaria de finalizar citando parte do apêndice do livro, que traz as últimas palavras de algumas dessas grandes celebridades. 

As últimas palavras de Lord Byron foram "Agora vou dormir. Boa noite." Oscar Wilde disse: "Meu papel de parede e eu estamos lutando um duelo mortal. Um de nós dois terá de sair daqui." Mas os dois que mais me chamaram a atenção foram H. G. Wells, que disse: "Vá embora. Estou bem."; e Walt Whitman, cujas últimas palavras foram: "Me segure, eu quero cagar."

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Resenha — Chernobyl

LEATHERBARROW, Andrew. Chernobyl: 01:23:40. Porto Alegre: L&PM, 2020.


Ganhei este livro porque um amigo mudou-se e resolveu se livrar de coisa parada presentar-me com parte de seu acervo. Como estou viajando, resolvi que seria uma boa oportunidade pra me dedicar à leitura sem grandes interrupções, e deu certo.

Este livro é uma não-ficção escrita por um entusiasta, um aficcionado do acidente de Chernobyl. Andrew Leatherbarrow nada mais é do que um fã e, depois de tanto pesquisar sobre Chernobyl, percebeu que tinha reunido um poderoso arsenal de dados sobre o caso e foi convencido a publicá-los em livro.

A estrutura do livro segue um padrão estranho. No começo temos uma exposição e introdução ao tema. A seguir, cada capítulo ora fala do acidente em si e suas consequências, ora da viagem que o autor fez ao local do acidente e como isso marcou sua vida. 

Confesso que não vi tanta utilidade no relato pessoal do autor, me interessaram mesmo as partes que falaram do acidente e das dificuldades absurdas que as pessoas tiveram para lidar com as consequências do mesmo. Dizer que ele foi até o telhado de um prédio pra bater umas fotos e isso deixou ele nostálgico, bem... já não sei.

Sobre os fatos em si, o livro trouxe muitos detalhes que eu não conhecia. O autor aponta duas grandes causas para o acidente: problemas na própria construção e estrutura do reator de Chernobyl, e erro humano, devido à falta de consideração que Anatoly Dyatlov, vice-engenheiro-chefe da Usina Nuclear de Chernobil, teve por procedimentos de segurança e a vida humana.

Eu não tinha noção de como se deram os reparos e como foi o processo de contenção. Fiquei muito impressionado em ver que muitos dos que trabalharam nos esforços sabiam muito bem que não voltariam, realmente se sacrificaram para salvar a humanidade. Ou pior: muitos que foram e nem sabiam a que estavam se submetendo. Era gritante a corrupção e o descaso que a União Soviética tinham pela própria população. Triste e revoltante.

Destaco aqui o trabalho dos Liquidadores, dos Biorrobôs, dos bombeiros e dos mineradores — os verdadeiros heróis dessa história.. Mas de todos os detalhes que o livro traz, quero transcrever aqui um relato que o autor faz de outos acidentes radioativos em diferentes lugares no mundo. Os grifos são meus:
[...] mais de 240 pessoas foram expostas à radiação em Goiânia, no Brasil, em setembro de 1987, depois que uma dupla de ladrões desmontou uma cápsula de aço e chumbo que haviam roubado de um hospital meio abandonado ali próximo. 

A cápsula, que fazia parte de um aparelho de radioterapia e continha césio, ficou guardada no quintal da casa de um deles. Lá, os dois ladrões ficaram batendo vários dias na cápsula para perfurar a proteção externa de aço, ao mesmo tempo em que adoeciam. Atribuíram seus sintomas a algum alimento que tivessem ingerido, sem suspeitar do objeto roubado, e depois venderam a cápsula danificada a um sucateiro chamado Devair Ferreira.

Naquela noite, Devair notou que o material interno soltava uma luminosidade azulada e imaginou que devia ser valioso — até sobrenatural. Para protegê-lo, guardou a cápsula na casa onde morava com a esposa, Gabriela, e distribuiu pó e fragmentos de material entre amigos e parentes. 

Um deles foi o irmão de Devair, que deu um pouco do pó de césio para a filha de seis anos de idade. Encantada com aquele brilho mágico azul, a menina ficou brincando com o pó de césio, passando em si mesma como se fosse purpurina e ingerindo partículas radioativas. Dois empregados de Devair ficaram alguns dias mais tentando desmontar a cápsula para extrair o chumbo que continha.

Gabriela foi a primeira a perceber que ela e todos os seus próximos estavam adoecendo gravemente. Um médico lhe disse que era uma reação alérgica a alguma coisa que comera, mas ela estava convicta de que a culpa era do material estranho que tanto fascinara a família. 

Gabriela pegou de volta a cápsula que tinham revendido a outro ferro-velho, levou-a — de ônibus — até um hospital local e lá declarou que aquilo estava “matando [sua] família”. Essa providência impediu que o episódio tivesse uma gravidade muito maior.

O césio então ficou num pátio até o dia seguinte, sem ser identificado, até que um radioterapeuta, a quem um médico do hospital pedira que fosse examinar a cápsula, “chegou bem a tempo de demover os bombeiros de sua intenção inicial de pegarem a fonte e jogarem num rio.”

Gabriela, a menina e os dois empregados de Devair morreram. Devair sobreviveu, mesmo tendo absorvido uma dose maior do que os outros quatro. Como a cápsula tinha sido aberta e transportada várias vezes naquelas duas semanas, diversas áreas da cidade ficaram contaminadas, exigindo a demolição de muitos edifícios. (p. 24-25)
Não há como negar que essas histórias fascinam. São interessantes porque são absurdamente reais. Ainda que a energia nuclear seja a mais eficaz entre todas as energias limpas disponíveis hoje, o risco que ela traz ainda é muito grande. O mundo tem medo demais de um inimigo invisível. Chernobyl certamente não será o último acidente energético, mas espero que seja o último dessas proporções.

Enfim, o livro vale a leitura, ensina demais sobre o que é o ser humano e os limites da ciência. Pelo menos por enquanto, vai sim ficar na estante.